sexta-feira, 9 de julho de 2010

Proteu ou: A Arte das transmutações

PROTEU

OU: A ARTE DAS TRANSMUTAÇÕES

LEITURAS, AUDIÇÕES E VISÕES DA OBRA DE JORGE MAUTNER

Luís Carlos de Morais Junior

 2ª Edição

Revista e Ampliada

- 2011 -

Dedico este trabalho à Lia, meu amor



Apresentação
Introdução
Prefácio
Capítulo 1: à volta do Kaos
Capítulo 2: cebola
Capítulo 3: o dançarino do abismo
Capítulo 4: amor amazônico
Capítulo 5: máscaras
Capítulo 6: o prazer de pensar (Mautner com K)
Entrevistas
Fontes
ü  livros
ü  periódicos
ü  discografia
Notas

  
  

A arte é uma deusa à qual eu dediquei a minha vida.
                                                         Jorge Mautner 

Orelha de Proteu

Escrevi Proteu ou: A arte das transmutações – Leituras, audições e visões da obra de Jorge Mautner, como dissertação de mestrado, que defendi em 1992.
Ao longo dos anos, todavia, eu sempre refundia o texto, a cada releitura dos livros e das músicas de Mautner, a cada lançamento novo que ele fazia, vinham-me novas iluminações sobre a sua arte e o seu pensamento, tão fundamentais para o nosso país e o mundo.
Veja bem, Jorge Mautner é muito mais que um cantor de música popular. Ele é um dos grandes pensadores do planeta, e a sua missão é ser a ligação, a devida valoração e a tradução de tantas faces da humanidade que aqui no Brasil se encontraram: a pré-histórica, a grega, a romana, a judaica, a medieval, a ibérica, a negra, a indígena... e muitas, muitas outras!
O livro que construí a partir da tese foi publicado em 2004, porém, a defesa, como falei, foi em 1992; logo, este relançamento marca os (quase) vinte anos desta obra! E também é uma comemoração pelo nonagésimo aniversário da Semana de Arte Moderna de 22.
Mas, mais importante de tudo, esta edição, revista, ampliada e atualizada, com sete novas entrevistas inéditas, análises extras, e muitas outras coisas boas, é a minha forma de me rejubilar pelo aniversário de 70 anos deste grande filósofo e poeta do mundo, graças a Deus, nascido entre nós, para nós, aqui, no Brasil, no bendito dia 17 de janeiro de 1941!



Luis Carlos de Morais Junior é carioca e professor, e já publicou quinze livros de poesia, romance, contos e estudos culturais; entre eles, O Sol Nasceu pra Todos - A História Secreta do Samba, pela Litteris Editora (2011).


Em Proteu ou: A arte das transmutações o escritor e poeta Luís Carlos de Morais Jr dá um mergulho profundo na obra de Jorge Mautner e faz uma investigação atenta e inteligente, em suas múltiplas manifestações (prosas, poesias, ensaios, canções, cinema, shows, entrevistas etc), das origens filosóficas e históricas, dos conteúdos, das sínteses originais, dos fios condutores que permeiam os diversos aspectos da arte, da postura e do pensamento de Jorge Mautner e de sua fenomenologia do Kaos. Nas suas leituras, audições e visões Luís Carlos realça a vitalidade energética, o irracionalismo, ou ultra-racionalismo mítico romântico radical, contidos na genial e original obra do Mautner.

Nelson Jacobina


                                     Apresentação

 

Quando Luís Carlos de Morais Junior mostrou-me seu trabalho analisando e reinterpretando a minha obra, tanto a literária e filosófica assim como a musical, fiquei boquiaberto de espanto maravilhoso, pois não apenas o autor destes ensaios interconectava a todo instante a minha obra literária com a musical, enxergando com a máxima correção que uma era a extensão e a continuação da outra, inserindo nisso tudo a minha própria existência tumultuada, desencadeada pelo holocausto nazista, a felicidade infinita de ter nascido no Brasil, e tudo isso coroado por um novo caos intitulado de Kaos.
Geralmente teses e ensaios não são muito instigantes de se ler. Estes ensaios porém, possuem além do imenso talento literário e da capacidade de reinterpretar e comunicar características do autor, um sabor extraordinário de suspense e ritmo dramático, trágico, de profundo humor das paixões humanas e a suprema importância para mim por destacar o fato de que toda minha obra, literária e musical, formava um todo ideológico, um Universo Mitológico a proclamar ao lado de desespero humano, da beleza das paixões humanas, das eternas discussões sobre quase todos os tipos de pensamentos e ideologias num vendaval de ideias criando harmonias, construindo e destruindo sínteses com voracidade amazônica, e sendo um longo testemunho e radical manifesto da importância vital e abençoada pela graça divina que é a cultura brasileira. Este jovem e genial autor ao interpretar meu Kaos, vai criando e penetrando em novas e inesperadas sendas perdidas o tempo todo. Soube captar e realçar este aspecto profético e messiânico de minha extensa obra em toda a sua extensão, numa proclamação de nossa tremenda importância cultural, para a vida e a convivência de todos os seres deste planeta. Além de estudioso e ensaísta ele tinha que ser poeta e escritor também. Seus livros de poesia e prosa em breve estarão circulando entre nós; de minha parte, recomendo fervorosamente a leitura destas páginas tão profundas quanto emocionantes, tão cheias de beleza quanto de revelação.
Quando Luís Carlos apareceu em minha casa com seus manuscritos ora publicados, contou-me que seu interesse por mim e minha obra nasceram da seguinte maneira. Luís Carlos tinha dezesseis anos e estava tão deprimido que havia resolvido suicidar-se. Por acaso antes de cometer este lamentável ato, resolveu assistir a um show meu lá na cidade. Saiu do show com a ideia de suicídio bem longe da casa do seu ser e passou a estudar e absorver tudo aquilo que aquele estranho Jorge Mautner tocando acompanhado pelo ainda adolescente Nelson Jacobina lhe inspirara com os eflúvios de vida e graça divina que absorvera durante aquele show. Muito obrigado Luís Carlos de Morais Junior, do fundo do meu coração.

Jorge Mautner

                             Capítulo 1: à volta do Kaos


O simulacro é precisamente uma imagem demoníaca, destituída de semelhança; ou, antes, contrariamente ao ícone, ele colocou a semelhança no exterior e vive da diferença.
/.../
O próprio sofista é o ser do simulacro, o sátiro ou centauro, o Proteu que se imiscui por toda parte.

                                                           Gilles Deleuze[1]

São Paulo, 1990. Um caos de carros, berros, cores, medos, bares, edifícios; pessoas passando correndo sem olhar em volta. Acima de tudo um céu do mais puro azul de abril. Pelos muros, pelas paredes dos prédios, nas praças, nos viadutos, grafites coloridas saídas das misturas velozes das caras das cidades com imagens da mass media e sonhos e pesadelos dos dédalos da mente de cada cidadão (ícaro em potência).
Ouroboros salta feroz do concreto e grita:


  



  EAT SE
Alquimia?[2]
Traços simples fazem coreografias de aves raras, querendo comunicar o incomunicável, e se aproximam (sem querer?) do símbolo do Kaos que o jovem Jorge Mautner criou, na década de 50.
Inconsciência?
Na cidade grande parece que tudo é inconsciente, seres autômatos funcionam junto com todo o resto, ou dão defeito, sem saber e sem querer saber de nada. E quase sem poder, também.
Loucura?
Nas lojas de São Paulo os boyzinhos debocham se você pedir um disco de Jorge Mautner, porém nas do Rio de Janeiro eles vão procurar algum cd do artista no escaninho dos cantores internacionais.
Falei para o poeta: o Brasil está nesta miséria PORQUE não te conhece.
Ele é bom, e sorriu agradecido. Depois fiquei meio sem jeito, isto é coisa que se diga a um grande artista, que seu país não o conhece?
Se ele mesmo fez um lp intitulado Antimaldito, e que ainda frisa, na canção “Zona Fantasma”:
Estou na lona
Sou quase um ectoplasma
Prisioneiro da zona fantasma[3]
Paranóia? Mistificação?
Ignorado pelas rádios, pela crítica, pela tv (o que num país tão dependente da “cultura de massa” é artisticamente letal), ridicularizado pelos neo-pedantes e negociáveis (sutilmente ou não) intelectuais tupiniquins (se o fossem realmente, é claro, não seriam vendidos e submissos, como o entendeu Oswald de Andrade, que aliás foi quem forjou as expressões sintomáticas para caracterizá-los: “chato-boys” e “burrítsia”), boicotado descaradamente (onde já se viu um lp, isso aconteceu na época do lp, com a participação especial de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Pepeu Gomes, Moraes Moreira, Robertinho do Recife, Zé Ramalho, Amelinha e o indefectível apoio melódico e harmônico de um músico, compositor, arranjador e maestro do gabarito de Nelson Jacobina, não tocar, não vender, não acontecer? O simples nome de Caetano ou de Gil deveria garantir a divulgação do trabalho. Tal lp foi lançado em 1981, e se intitula Bomba de Estrelas), Mautner produz empatia imediata com qualquer tipo de público, do mais popular ao mais sofisticado, e, quando se abre algum espaço para suas composições tocarem no rádio (como aconteceu por exemplo com “Maracatu Atômico”, gravado por Gilberto Gil, “O Vampiro”, na voz de Caetano Veloso e “Orquídea Negra” com a interpretação de Zé Ramalho, entre outras), elas se tornam grandes sucessos.
Então por que a chamada media é tão ciosa em evitar divulgar o trabalho de Jorge Mautner?
Boicotado, cortado, podado, como não o merece alguém de tão boas intenções. E sempre mesmo por parte de quem me apóia há sempre uma certa “desconfiança” que deve nascer do medo de coisa tão grandiosa que apresento e proponho e que é a totalização em nível do maior adensamento no nosso explicitamente regionalístico, étnico, só nosso como o samba e a palhoça da coisa nossa do Noel Rosa, até a mais universal, a começar pelo meu sobrenome Mautner, meu violino (depois transformado em violino a serviço do batuque negro) e a mestiçagem iugoslava e judaica merecendo por isso mesmo também o boicote e podação até mesmo da comunidade judaica, e os “goys” que são anti-semitas (de todas as nuances... jamais me perdoaram nem o brilho nem a inteligência) e além do mais sou produto em mutação de refugiados da 2ª Guerra Mundial, professora e fábrica do existencialismo, da moral e do Humanismo que devem ser tão fortes a ponto de resistir às piores tiranias, a guerra nuclear e continuar ensinando a ser otimista, mesmo que isto às vezes apenas signifique o estar-aí em expectativa como na antevéspera de um sonho sempre dourado.[4]
Fui pesquisar no Museu da Imagem e do Som e eles confessaram deter um bom acervo audiovisual sobre nosso autor; contudo nada ali poderia ser consultado, por algum motivo obscuro, até que, dentro de um prazo de tempo indeterminado, acontecesse alguma coisa não sabida, que mudaria a situação de exceção. Não desisti.
Tentei utilizar o subdesenvolvido “jeitinho brasileiro”, conversando com todos os funcionários que aceitassem ouvir as minhas explicações e os meus rogos.
Um deles, que se disse músico também, opinou: - “É, o Mautner é que nem Bob Dylan, apenas um bom poeta, porém suas músicas são muito banais, às vezes têm só dois acordes.”
Opiniões preconceituosas e unilaterais como esta (a respeito de Mautner e até de Bob Dylan!) só podem ter como fundamento o incômodo que a novidade e a riqueza das composições desses autores trazem.
Como eu não sou Mário de Andrade, que conhecia teoria musical, porém não pesquisava Música Popular Brasileira (que não é folclore, canções pra inglês ver), pedi a uma amiga que estudava composição e regência na UFRJ para transcrever algumas melodias (partituras que eu acrescentaria no final do trabalho, à guisa de argumento e ilustração).
Levei-lhe uma fita, que ela ouviu e devolveu, recusando-se terminantemente a fazer o que eu lhe pedira, sem mais explicações. Algo como seu violino, que, dizem os entendidos, semitona, assustou-a.
Será se essa gente não conhece música atonal? Música hindu? Viola e rebeca nordestinas (que conhecem a música atonal e a hindu)? Pois o violino e a voz personalíssimos de Jorge Mautner se informam de tudo isso, com grande sofisticação.
E devemos ainda lembrar que além de tocar violino, bandolim e violão e de cantar, Mautner compôs sozinho dezenas de canções, em vários estilos, algumas com melodias e harmoniosas, ricas e inusitadas, com dissonâncias e modulações, como “Olhar bestial”, “Chuva princesa” e “Quando a tarde vem”, entre outras.
Percebe-se que o que incomoda em Mautner são basicamente dois fatores: o primeiro é o seu furor dionisíaco, a sua alegria descabida e a sua afinidade com tudo que é nômade e anti-estatal (e anti-burocrático); o outro é a sua “universalidade” de interesses, o seu conhecimento enciclopédico de uma infinidade de fatos históricos, dados científicos, obras  de arte, filmes, pessoas, fatos de coxia da política, bem como seu conhecimento de vários idiomas (e tanta cultura em alguém tão parecido com um marginal ou um vagabundo), além da prolixidade de sua verve inesgotável, capaz de ficar falando horas ou intercalar discursos quilométricos em “breques” de suas canções, sendo sempre ouvido com interesse por públicos sofisticados ou populares, igualmente, e ainda seu fôlego de escritor, de funda cultura e de ampla inspiração, alguém capaz de fazer poesia em moto contínuo, e suas amizades importantes etc. etc. etc.
Mautner se apresenta como um profeta da Nova Era, falando sobre todos os temas sociais, históricos, artísticos, culturais, científicos, técnicos com a mesma desenvoltura. Um exemplo é este texto, publicado em 1980 (e escrito três ou quatro anos antes disto):
A automação e o computador são duas locomotivas atômicas já desencadeadas em sua irresistível marcha para o infinito dos progressos sem fim.
Estamos assistindo às últimas guerras clássicas: as guerras do petróleo. Ainda não ultrapassamos totalmente o umbral do mundo das ideologias, mas já estamos na metade do caminho, o linguajar político-ideológico começa a ser demolido (na velocidade da luz com que caminha a Humanidade) e substituído por terminologia científica (códigos básicos retirados do relativismo e pós-relativismo e da ecologia). Felizes tempos, pois em menos de 30 anos, extintas estarão as guerras clássicas e a supremacia do petróleo, e o hominóide desse planeta-terra estará cavalgando no bojo de mais quatro novas fontes de energia: 1ª) a energia solar 2ª) a das marés dos oceanos 3ª) a do raio laser (luz domesticada em precisão de fileiras) 4ª) energia da gravidade a ser descoberta nos alvores do século vindouro.
Todos nos falam desse século XXI da mutação, os judeus em tom um tanto superdramático e emocional tão característico dos meus ancestrais por parte paterna, no “Apocalipse” de João, onde a besta nasceria do torvelinho das paixões políticas. Até a visão mais amena e pagã da astrologia ao descrever e anunciar Aquarius, é bem mais hip. O Tempo é uma pulsação cíclica num universo cíclico? Descoberta recente de astrônomos alemães nos informa que o Universo deu mais uma prova de que é finito, e portanto anulando possibilidades dos que defendem a teoria de que o Universo está em permanente expansão, e um ponto a mais na teoria de que ele é cíclico, pulsa, indo e voltando, como um imenso coração a pulsar feito de campos eletromagnéticos em suas augustas fronteiras elípticas, feitas de matéria e energia segundo Einstein.
Sendo assim chamo a atenção mais uma vez para os negligenciadíssimos aspectos científico-culturais e tecnológicos que nos circundam, já nos anunciam hoje o século XXI, nos impõem (ainda bem!) novos hábitos de vida, visões, antevisões, paisagens mentais, mas são ignoradíssimos pela maior parte de nossos intelectuais, que ao invés de anunciarem, estudarem, informarem o povo sobre estas coisas, ficam afundados na velha poltrona da amargura, choramingando, lamentando-se sobre o passado, e presos na armadilha, teia de aranha das ideologias e do antigo complexo de culpa.[5]
“Eu acho que você bateu em porta errada” - essa foi apenas uma das tantas admoestações que ouvi na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro[6], diante de minha pretensão de estudar e levar a sério não só um poeta que faz letras de música, como também um escritor que aos dezessete anos de idade escreveu um romance de fôlego que ganhou o Prêmio Jaboti de revelação literária de 1962, foi amigo do escritor Paul Goodman e secretário do poeta Robert Lowell em Nova York, elogiado e admirado por pensadores do gabarito de Mário Schenberg, Glauber Rocha, José Roberto Aguilar, Paulo Leminski, Luiz Carlos Maciel, Caetano Veloso e Gilberto Gil, e que já publicou doze livros (com milhares de páginas ainda inéditas) de ficção, poesia e ensaio, além de escrever artigos para a imprensa e roteiros de filmes.
Tudo isso e mais (dirigiu o filme O Demiurgo em Londres, com ele mesmo, Caetano, Gil, Dedé, Sandra, Ruth, Leilah Assunção e Jards Macalé como atores; escreveu o argumento do filme Jardim de Guerra, de Neville de Almeida; trabalhou como ator em vários outros longas; criou os movimentos político-culturais do Kaos e da Figa-Brasil, este com Gilberto Gil; foi apresentado como filósofo por Mário Schenberg na introdução de Vigarista Jorge; foi candidato a vereador pelo Partido Verde de São Paulo em 1988; teve intensa atuação política através de apoio e participação em movimentos transversais de minorias, através de discursos em “showmícios” de campanhas políticas para o Partido Verde, o Partido dos Trabalhadores e o Partido Democrático Trabalhista, e em discursos super-políticos em seus próprios shows, e em seus ensaios e artigos na imprensa etc.) fazem de Jorge Mautner, no mínimo, um caso curiosíssimo e muito especial em nossas letras.
Dentro de um estilo tradicional judaico (do qual Jorge, como aconteceu também a Albert Einstein[7], com o passar do tempo, cada vez se orgulha mais) JM demonstra a sua “predestinação” em várias genealogias que nele se encontram, como um ponto fulcral:
- genealogia poética - T. S. Eliot teve como secretário Ezra Pound, que por sua vez foi secretariado por Robert Lowell, que teve como secretário literário JM;
- genealogia performática - o inciador da performance e vanguarda da vanguarda brasileira, o oswaldiano Flávio de Carvalho, declarou que os textos de Jorge Mautner eram textos indígenas[8];
- genealogia filosófica - Oswald de Andrade (o primeiro e o único na primeira metade do século XX a produzir uma filosofia original brasileira em A Crise da Filosofia Messiânica e A Marcha das Utopias) indicou o heideggeriano Vicente Ferreira da Silva como o “único filósofo brasileiro”; este, por sua vez, descobre o jovem escritor e ensaísta JM, e trata de publicá-lo na revista Diálogo e introduzi-lo nos círculos intelectuais;
- genealogia científica - o discípulo de Einstein, Mário Schenberg, tem um grande respeito e admiração pelo pensador JM;
- genealogia musical - o padrasto de JM tocava viola e era spalla da Orquestra Sinfônica da cidade de São Paulo, e foi com ele que JM aprendeu teoria e prática musical;
- genealogia racial - a mais importante, pois, além de se orgulhar de sua descendência de pai judeu vienense e mãe católica macedônico-irlandesa, e da influência teutônica de seu padrasto alemão, JM se considera um caso cada vez menos raro de “branco anegralhado”, já que aprendeu com os pais o alemão (sua língua materna), o inglês e o francês, e só posteriormente passou a falar português, muito influenciado (neste e em todos os aspectos culturais e religiosos) pela babá que realmente o criou, e que detinha o importante título de Ialorixá (Jorge declara que não fez a cabeça mas tem o corpo fechado e é filho de Oxóssi) de um centro de candomblé, no bairro da Glória no Rio de Janeiro; Gilberto Gil ao conhecer JM no exílio declarou que ele era o primeiro intelectual branco a realmente entender e levar a sério a cultura negra; tal fato adquire muita importância porque para nosso autor a cultura negra tem o mesmo peso e valor que a cultura grega, e o Brasil, miscigenado, com suas rodas de candomblé e umbanda e seus Orixás, é o único lugar do mundo onde existe atualmente a experiência dionisíaca dos antigos gregos (que ele retoma em suas canções, que são novos ditirambos a Dionísios);
- além disso, há toda uma admiração de criadores de primeira linha de nossas artes por JM, podendo citar como exemplo o artista plástico José Roberto Aguilar, o cineasta Glauber Rocha (que, segundo JM revela no encarte do cd O Ser da Tempestade, afirmou: “Se eu fosse me definir, eu diria que eu sou do Kaos com K, do Jorge Mautner, isto é, se o Jorge Mautner o permitir.”) e os compositores e cantores Gilberto Gil e Caetano Veloso. Quanto a Glauber cabe ainda registrar que, em 1962, sua irmã Anecy lhe deu para ler na Bahia Deus da Chuva e da Morte, título que inspiraria mais tarde Deus e o Diabo na Terra do Sol (e na textura da narrativa deste filme e de outros como Terra em Transe e A Idade da Terra percebe-se a influência do esquizofrênico texto de Mautner); o título do filme é uma espécie de inversão do título do romance: o Deus da Chuva em um, Deus e o Diabo na Terra do Sol, em outro.
São Paulo, 1962. Jorge Mautner estreia com a publicação do romance Deus da Chuva e da Morte (que foi reeditado em 1999 e na Mitologia do Kaos em 2002), e que traz a marca de seu devir imtempestiva tempestade:
Ela revirou os olhos e fingiu-se de enfastiada. Mas ela sabia que não adiantava fingir mas continuava a fingir. Não quero mais discutir com ela. Não quero mais discutir com ninguém porque é inútil um entendimento. Além de ser impossível o entendimento é inútil. Ela olhou para mim e com aqueles lábios grossos que cheiram a sexo ela disse:
- “Você é o deus da chuva e da morte. Só fala nisso. Eu não sou mais tua.” E depois ela afastou-se cada vez mais de mim e sumiu lá no fim da rua. Acho que havia lágrimas nos olhos dela.
Depois eu fui para casa e me deitei na cama. Liguei o toca-discos e o Rock existiu[9]. Eu fiquei alguns minutos sem olhar qualquer coisa definida. Depois pouco a pouco comecei a olhar a veneziana do meu quarto e ela é verde e cinzenta. Não estava chovendo mas eu olhava a veneziana e comecei a pensar no que ela me tinha dito: “deus da chuva e da morte”. Era um título dado a mim e eu comecei a separar as letras e a brincar com as palavras. Era bonito e triste brincar com as palavras e dizer: “deus da morte e da chuva” ou “da morte deus da chuva e” e assim por diante. Depois eu percebi tudo. Foi só aí que eu percebi tudo. Foi de repente que eu percebi tudo. A razão da vida está na tragédia e no misticismo sexual! E a tragédia e o misticismo têm a sua base no nada. Tudo isto me cansou. Mas eu adormeci por causa do sono e havia percebido tudo.
Lá fora escureceu porque veio a noite e eu dormi a noite toda com o toca-discos ligado. Durante a noite começou a soprar um vento frio estranho e diferente dos ventos de verão e que vinha de lugares distantes. Foi ele que trouxe a chuva e foi com a chuva que veio a tempestade.[10]
Seguiram-se Kaos (1963) e Narciso em Tarde Cinza (1965, 2ª ed de 1978, relançado em 1985). No mesmo ano de 1965 é publicado também Vigarista Jorge (que serviu como chamariz para que Jorge fosse o primeiro intelectual incluso na Lei de Segurança Nacional). O romance Sexo do Crepúsculo foi escrito no mesmo período, porém só foi editado em 1983. O volume de contos Miséria Dourada vem à luz em 1993.
Não é possível separar perfeitamente os gêneros em Mautner, no entanto podemos a princípio dizer que sua lírica está nas letras da canções dos lps e cds: Para Iluminar a Cidade (1972), Jorge Mautner (1974), Mil e Uma Noites de Bagdá (1976), Bomba de Estrelas (1981), Antimaldito (1985), A Árvore da Vida (1988), Pedra Bruta (1992), Estilhaços de Paixão (1997), O Ser da Tempestade (cd duplo coletânea de quarenta anos de carreira do compositor-cantor - o cd um é uma antologia de canções interpretadas pelo próprio Mautner, o cd dois é outra seleta, contendo composições de Mautner cantadas por alguns dos grandes cantores nacionais: Gilberto Gil, Gal Costa, Moraes Moreira, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Fagner, Vânia Bastos, Caetano Veloso, Lulu Santos, Chico Science e Nação Zumbi e o próprio Jorge Mautner em dueto com Celso Sim; o trabalho é de 1999), Eu Não Peço Desculpa, com Caetano Veloso (2002), e Revirão (2007); além de compactos de vinil e participações em lps mistos; em seus livros de poemas: Fragmentos de Sabonete (que também podem ser considerados ensaios, edição de 1976, reedição ampliada de 1995) e Poesias de Amor e de Morte (1981, 2ª edição 1983).
São mais nitidamente livros de ensaios os Panfletos da Nova Era, volume 1, de 1880, e Fundamentos do Kaos, de 1985. Floresta Verde Esmeralda, inédito incluído em Mitologia do Kaos, 2002, inicia com uma ficção que desencadeia duas partes, ensaios e poemas.
Hiroshima, Japão, 8:15 da manhã de 6 de agosto de 1945. Os EUA explodem a primeira bomba atômica não-experimental sobre a população civil da cidade, para fechar com chave de ouro a 2ª Guerra Mundial (ou para a estreia bombástica da 3ª). No Brasil Jorge foi indiscutivelmente o primeiro cidadão a se dar conta da importância do fato, tendo inclusive uma música em seu compacto de duas faixas de estreia com o título de “Radioatividade”, além de ter composto aos dezessete anos de idade a canção “Hiroshima-Brasil”[11]
Sobre o que o próprio Mautner entende por Kaos, temos uma pista na canção não gravada e apresentada na USP em 1959:
O que é Kaos?
eu vou responder:
Kaos com K
não é caos com C[12]
A respeito de seu estilo tão incomum e a proposta de romper com as fronteiras entre os gêneros literários e até entre os gêneros artísticos, e ainda sobre sua relação de adolescente com a arte, Mautner dá este depoimento à revista Bizz:
Voltando a 58, foi nesse ano que elaborei a síntese de todos esses elementos. Eu pintava, fazia cerâmica, fazia atletismo, tentava me expressar pela música, estudando violino, e literatura. Mas aquilo tudo ainda era muito dividido. Foi num dia de chuva - eu odiava a chuva, muito ligada a São Paulo, para onde eu vim quando minha mãe casou-se novamente e eu fiquei separado da minha mãe negra. Eu ia possivelmente enlouquecer quando consegui, através da arte, fundir, com toda a dor de filho de refugiado de guerra, de várias separações e loucuras, numa síntese, tanto a minha linguagem musical, a linguagem literária, a linguagem pictórica, numa só. Foi num dia de iluminação. Foi por isso que fiz a música “Iluminação”, que eu gravei no final de 58. Também adquiri um estilo literário. Foi tudo ao mesmo tempo. Fantástico.[13]
É interessante notar que a tendência criadora de Mautner está relacionada ao que ele chama de dimensões para além da terceira dimensão, isto é, uma nova relação da cognição humana com o tempo, quando supera a sua condição de temporalidade causativa, consecutiva, cronológica, engajada e humana, e ascende a uma nova forma de pensar e produzir conhecimento, que funde na prática as anteriormente conhecidas, e supõe uma nova, que mal podemos entender, mas que é tendência do futuro de nossa espécie. Isto quer dizer que, em um texto aparentemente em prosa ficcional de Mautner, podemos sentir a presença da poesia, da música, do visual, da teoria, da ciência, da filosofia, do corpo todo se pensando.
Em conferência pronunciada na “Roda de Leitura” do Centro Cultural Banco do Brasil em 6 de setembro de 2000, Mautner leu um trecho de Floresta Verde Esmeralda, ainda inédito, que misturava de maneira vertiginosa filosofia, ciência, música, artes visuais, tudo feito em aparente prosa, que deixou muitas pessoas presentes tontas e assustadas, ainda no ano 2000 sem saber como catalogar aquilo, preferindo às vezes fugir do que tentar desvendar o mistério.
O escritor-cantor afirmou coisas como “tudo para mim é literatura”, “depois de Treblinka, Auschwitz, Dachau, Buchenwald e Hiroshima eu estava preparado para metralhar multidões”, “eu cometi todos os crimes e pecados e estou aqui, vivo, com sessenta anos de idade”, “eu sou essa formiga atômica”, e lamentou-se várias vezes por não ter se tornado funcionário público de elite, oportunidade que teve, ofereciada em 1962 por Paulo Bonfim, e recusou.
Pedi o microfone e fiz comentário e pergunta, diante principalmente do entusiasmo com que ele se refere a Jesus Cristo e a Martin Heidegger:
“Mautner, primeiro eu quero dizer que entendo como ironia e sarcasmo você dizer que gostaria de ter sido funcionário público. Axé! Graças a Deus que você não se tornou isso, você é um pensador nômade, eu sei o quanto a burocracia estatal é insidiosa e burrificante.
“Deleuze e Guattari afirmam que a filosofia, a arte e a ciência são três formas de pensamento diferente, mas as três são pensamento.
“Você em seus textos e em suas falas parece misturar tudo, você é um pensador, você fala tanto em outras dimensões, e eu entendo que essas outras dimensões (onde esses conhecimentos se fundem de forma desconhecida, e que são acessadas por essas fusões) têm que ver com o tempo não cronológico, não utilitário, são uma nova concepção e uma nova problematização do tempo; assim você me parece um pensador do tempo.
“No entanto você se liga muito com Heidegger, que parece que tem “alergia” ao tempo, o qual, segundo ele, nos afastaria da experiência do ser. Como você coaduna tal interesse com a sua maneira de pensar? Como você pensa o tempo?”
Mautner respondeu:
“Quando eu conheci Mário Schenberg e cheguei ao PCB, fui falando de Nietzsche e Heidegger. O Mário Schenberg me disse: ‘Isso tudo não tem importância. O que importa é o Tao.’ Eu entendo tudo unificado, através do pensamento zen e do Tao.”
Lembrei-me de sua canção “Bumba-meu-boi de Beijing”, do cd Pedra Bruta, que diz:
E a mensagem final
É o caminho do Tao
Também me recordei do Tao da Física Fritjoff Capra, que já era, segundo Mautner, uma concepção presente em Mário Schenberg.
E pensei em Heidegger mostrando que Parmênides dizendo que o Ser não muda e Heráclito dizendo que tudo muda o tempo todo estavam na verdade dizendo a mesma coisa; talvez haja uma complementaridade especular (detectável em outra dimensão além da quarta) entre Nietzsche, afirmando o tempo e recusando o ser, e Heidegger, que recusa o tempo em nome do ser (oxímoro e quiasma figurados no título O Ser da Tempestade).
Brasil, 1° de abril de 1964. Deflagrado o golpe militar que tomaria o poder no país por cerca de vinte anos; com o golpe, toda a efervescência cultural e política, que, nas décadas de 50 e 60, aumentava no Brasil como uma bola de neve, é dizimada, todos os importantes movimentos artísticos e de pesquisa são decepados, os grandes intelectuais são perseguidos, presos, torturados exilados ou assassinados, e o povo é levado a uma nova “educação” (conteúdos isolados, não críticos, mínimo ou nada de leitura, provas de múltipla escolha etc.) e a uma nova “arte” (presença massiva da televisão como fonte de informação e divertimento, o reinado das várias telenovelas anestesiantes e inacabáveis)[14].
Rio de Janeiro, 1990. Publicada a tradução brasileira de Chaos - Making a New Science, edição original americana de 1987, de autoria de James Gleick, sob o título de Caos - a Criação de uma Nova Ciência; grande repercussão entre os leitores de vulgarização científica, pois, pela primeira vez, a ciência passava a considerar a possibilidade de levar o caos a sério.
Atenas, século IV a.C. Platão afirma a existência da causa racional (as ideias reguladoras, imateriais, perfeitas, eternas e imutáveis, que seriam o paradigma de todos os seres do mundo material) e a causa errante (o devir louco, a matéria caótica e quântica, anterior à formalização das ideias e subjacente a ela) e condena a causa errante ao mesmo castigo que os olímpicos concederam aos Titãs: ser acorrentada no fundo do oceano (do devir).
Ao longo da História, à sua margem, intempestiva, a filosofia trágica não para de brotar por entre as frestas do pensamento do estado e do rebanho humano; arriscadíssimo empreendimento de pensar a vida num universo sem substância, sem essência, sem natureza, sem finalidade e sem ordem transcendente ou transcendental, realizado por pensadores como Heráclito, Lucrécio, Hume, Espinosa, Nietzsche, Deleuze e Clément Rosset.
Alguns artistas (autistas para não serem idiotas, que, segundo o grego, são os indivíduos que se isolam do meio social) também se auto-exilam no puro fora, além de todo o conhecido com suas regras, leis, juízos e burocracia, provocando a ira do estado, da moral, da religião e do rebanho humano. São os “suicidados da sociedade”: Lucrécio, Maiakovski, Kafka, Van Gogh, Artaud, Oswald de Andrade e Kurt Cobain servem de exemplo.
O próprio Mautner se coloca o tempo todo como um artista pensador do fora:
A noite é escura
E o caminho é tão longo
Que me leva à loucura[15]
Acredito que há três importantes imbricações na obra de Mautner:
1 - Com o pensamento da expressão (ou da diferença), contra o estado, que tem alguns de seus formuladores contemporâneos em Friedrich Nietzsche, Henri Bergson (com sua máscara de espiritualismo) e Gilles Deleuze.
2 - Com o pensamento estético-ontológico-social da devoração e da síntese do homem tecnológico com o homem primitivo num novo matriarcado, o que faz de Jorge Mautner o legítimo e mais importante continuador (e não imitador ou diluidor como alguns festejados, e sim continuador mesmo, no sentido de fazer a diferenciação daquilo que vai continuar e só pode continuar se modificando) de Oswald de Andrade, o mais sintomático e revolucionário escritor que o Brasil teve antes da década de 60.
3 - Com o pensamento nômade e revolucionário da contracultura, em todas as suas manifestações, aqui e alhures.
Porém tudo isso são aspectos da tese central deste trabalho, expressa mesmo em seu título: Mautner é o grande mestre das transmutações em nossa cultura, sua arte se apresenta sempre variando de meio, de estilo (ele mesmo se orgulha de se exercitar na imitação proposital de todos os estilos de época, como um exercício de escritura, fazendo com que seus grandes romances, como Deus da Chuva e da Morte, sejam colchas de retalhos de todas as formas de enunciação literária ocidental, o que já tinha sido realizado em Ulisses de James Joyce[16]), confundindo gêneros[17], mudando de cara, alterando e falsificando seu estilo, afirmando teoricamente as coisas mais contraditórias (sem nenhuma tolice), sempre mutante, para poder dizer sempre a mesma coisa.
  

                            Capítulo 2: cebola

Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante
      Friedrich Nietzsche[18]
                                                                                                     
Jorge Mautner é também um mitólogo.
Ou melhor, ele é um anti-mitólogo.
E por quê? Vamos pensar.
As mitologias indo-europeias são as narrativas de como o poder estatal (e patriarcal) dominou as forças contra o estado, e são sempre também a camada de terreno onde se pode fazer arqueologia dessas forças titânicas, que deixam ali um resíduo, uma memória. Georges Dumezil trabalha o levantamento desses estratos na comunidade mitológica indo-europeia[19].
Tomemos o clássico exemplo de Hesíodo em sua Teogonia, cujos versos 116-117 nos dizem:
Em verdade, no princípio houve Caos, mas depois veio Gaia /Terra/ de amplos seios, base segura para sempre oferecida a todos os seres vivos.
Um pouco adiante, vemos nos versos 154-156:
Os Titãs foram os mais terríveis filhos de Gaia e de Urano, e seu pai lhes tinha ódio desde o nascimento.
E ainda, temos os versos 207-210:
O imenso Urano, a todos esses filhos que tinha gerado dava o nome de Titãs, insultando-os, pois eles tinham, dizia ele, cometido em sua loucura uma horrível perversidade, e logo teriam justo castigo.
Finalmente, nos versos 713-735, Hesíodo conta como Zeus e seus aliados venceram e acorrentaram os Titãs “tão longe sob Gaia quanto Urano distancia-se dela”, e:
De lá eles não podem sair: Poseidon fechou as portas de bronze sobre eles, a muralha se estende de todos os lados. [20]
A partir daí pode-se falar.
Separou-se o todo em caos e cosmos, e instituiu-se o cosmos como a ordem do mundo; a partir desse ovo saem as histórias que vão se repetindo e enredando os homens, as mitologias (que teriam, assim, uma dupla face: servem para banir o caos e consagrar o estado, e também podem ser lidas como o noticiário de semelhante feito).
Quanto ao mais, a proposta ocidental pode ser resumida na tremenda sétima proposição do Tractatus Lógico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein:
Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio.[21]
Por outro lado, o mitólogo romeno Mircea Eliade demonstra que nas sociedades arcaicas há dois tempos: o mítico e o atual, e este, o tempo da vida dos homens, tem que imitar aquele, que foi quando os deuses atuaram modelarmente[22].
A partir das afirmações de Mircea Eliade, Clément Rosset, dentro de seu programa de mostrar que a ideia de natureza é teológica e, como toda teologia, impede de pensar - e propondo a filosofia como remédio contra a loucura humana e para a filosofia o remédio do pensamento trágico, que não representa a natureza nem a finalidade, e sim apenas vê o mundo como artifício e acaso -, entende o mito como
uma instância que não se confunde mais com a repetição: representa um princípio original a partir do qual a repetição somente é considerada por ter começado a repetir.[23]
Segundo Rosset a filosofia platônica traz a mesma estrutura da “ontologia” mítica: o real imita (ou deveria imitar) o melhor possível as ideias que estão em outro mundo, no passado.
Ainda em Clément Rosset podemos ver que, assim como nas narrativas míticas, a filosofia começa a murmurar só depois que vê morto e enterrado o caos e o acaso:
A história da filosofia ocidental abre-se por uma constatação de luto: a desaparição das noções de acaso, de desordem, de caos. Disso é testemunha a palavra de Anaxágoras: “No começo era o caos; depois vem a inteligência, que arruma tudo.” Uma das primeiras palavras de importância a ter ressoado na consciência filosófica do homem ocidental foi então para dizer que o acaso não era mais /.../[24]
Em Jorge Mautner o mito é muito importante, como em outros escritores, poetas ou filósofos, que utilizam crítica e criativamente a mitologia literária tradicional, ou a reformulam, a partir de pesquisas descentralizantes que inserem outras estruturas míticas além das comuns no cenário tradicional euroariano; sem que estas duas atitudes no entanto cheguem realmente a reverter a potência organizadora e modeladora do mito.
Há ainda a postura analítica, como a encontrada em Roland Barthes, que não se atém aos mitos literários, mas procura os mitemas básicos e o esquema modelar nos signos da sociedade contemporânea. Feito que aparenta ser desconstrutivista e que vai ter um matiz na verdade conservador, pois, em nome de uma suposta atitude crítica e analítica, esparge paranoicamente o mito modelador pelas nossas relações sociais, fazendo uma apropriação do inconsciente pelo mito, cabendo aqui a crítica que Deleuze e Guattari fazem ao Édipo freudiano, que transforma em teatro (onde se repete eternamente a cena do parricídio e do incesto) o que é (ou tem a potência de ser) uma usina geradora, o inconsciente, vale repetir.
Todavia Mautner aborda o mito de uma maneira totalmente diferente da comumente feita, uma quinta dimensão mítica, que não se confunde com as costumeiras iconofílicas:
1 - usar o mito conforme as regras clássicas do jogo, exemplo: Camões e Olavo Bilac;
2 - tentar reverter o mito pela mera inversão de seu significado, exemplo: Chico Buarque (no conto “Ulisses”, na canção em parceria com Augusto Boal “Mulheres de Atenas”, na peça de teatro escrita com Paulo Pontes a partir de uma ideia de Oduvaldo Vianna Filho, Gota d’Água etc.);
3 - tentar reverter o modelo mítico pela procura de mitologias “alternativas”, por exemplo, no romance-rapsódia Macunaíma de Mário de Andrade e na obra de Jorge Amado;
4 - tentar vencer o mito pela análise, pela desmontagem, pelo realinhamento funcional entre o significante e o seu suposto significado, dimensão mítica pretensamente iconoclasta e até por isso a mais perigosa roupagem da iconofilia mítica, como no já citado exemplo de Roland Barthes (o que também poderia ser afirmado sobre outros autores estruturalistas).
A iconofilia se caracteriza por querer que a cópia imite o modelo; a iconoclastia, por querer que não haja cópias, apenas modelos.
Porém há uma outra via: aquela que destrói os modelos e só convive com as cópias, as únicas a realmente existirem, sem nenhum modelo, e que nada mais têm a copiar, os simulacros.
A questão do mito em JM aparece então sob os signos de reversão do modelo e de produção assignificante. Ante a falsa alternativa de não tratar do mito (e fugir desse fundo da letra ocidental que a tantaliza e ronda) ou tratar do mito aceitando-o como modelo ou não o aceitando como modelo (o que seria a mesma coisa, a iconofilia e a iconoclastia pressupondo o modelo), surge um novo tipo (talvez milenar) de mitólogo, que não aceita nem rejeita o mito, mas o recria em um anti-mito não modelar e não significante.
E JM não seria o único anti-mitólogo. Ele tem parceiros ilustres, como Jorge de Lima (A Invenção de Orfeu), William Blake (O casamento do Céu e do Inferno), Herman Hesse (Demian), David Hebert Lawrence (A Serpente Emplumada) e Raul Seixas e Paulo Coelho (“Eu nasci há dez mil anos atrás”), entre outros.
Tomemos como exemplo a letra do “Samba dos Animais”, que está no segundo lp, Jorge Mautner.[25]
Nesta, como em muitas outras canções de JM, a primeira coisa que chama a atenção do ouvinte (e do leitor, apesar de muitos dos elementos vocais, rítmicos, melódicos, harmônicos, plásticos, cromáticos, teatrais etc. se perderem na mera transcrição da letra) é o hilariante humor que ela instaura, um tipo de humor que, ao mesmo tempo que aplaca (em sua atração popular e carnavalesca), irrita (no sentido de provocar a excitação da sensibilidade, enquanto também provoca o mais assustador estranhamento). Porém depois do efeito humorístico, que pode passar como unitário ao ouvinte menos atento, há outro bem mais óbvio, e que de certa forma se contrapõe a esse humor, ao que ele tem de velório e carnaval.
Aparentemente, nesta letra JM está produzindo um mito originário: haveria um momento puro da humanidade, quando ela não era tão racional e idiota quanto hoje em dia e conseguia entender e se comunicar com os outros animais[26].
No entanto é o próprio humor que nos faz desconfiar logo de início da originalidade do mito: “Olha o macaco na selva! Onde? Onde? Ali no coqueiro!/Mas não é macaco, baby!/É meu irmão!”.
Outro elemento anti-mitológico do texto é a falta de eminência do humano, que “decaiu” justamente por ter se tornado separado dos outros seres, e que não é superior por isso, nem o era antes, antes ele era feliz: “Porém durou pouquíssimo tempo/Essa incrível curtição”. E a expressão “rei do planeta”, que aparece no verso subsequente, vem repleta de ironia, e é complementada por/e rima com: “Logo fez sua careta”, que é, essa careta - ridícula, caricatural - a própria face da civilização humana; isto é, a “civilização” é “careta”.
Qualquer tentativa de ver aí uma preleção moral reacionária e passadista cai por terra diante dos versos: “Agora já é tarde/Ninguém nunca volta jamais”, onde a impossibilidade física e psicológica da volta a um estado anterior de coisas é esteticamente expressa pela tripla negativa.
Os versos seguintes colocam uma questão que atravessa toda a obra de JM: a necessidade da tekhné, entendida sob todas suas formas, tanto artísticas quanto industriais, assim como a superação dessas tolas dicotomias também, natureza/artifício, novo/antigo, humano/bestial, terreno/divino. “Aquela paz” dando a impressão de que não se trata aí de nada que na nossa sociedade e na nossa mentalidade se entenda como paz.
As onomatopeias do final da canção, além do seu lado cômico, já são a interferência do animal no homem - e uma estranha fusão entre os dois, centauro ou minotauro, se dá na frase falada final: “Bom dia Dona Cabrita/Como é que vaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai?”, onde o “o” da segunda sílada de “como” faz crase com o verbo “é”, e o som fica: “co-mé”, sendo a sílaba “mé” produzida com o tremor característico do balido da cabra, o que ainda se acentua no ditongo da palavra “vai”, como se o eu lírico tivesse conseguido a síntese da fala humana e da fala animal.
Na gravação original do samba, no lp produzido por Gilberto Gil, a música é tocada e repetida uma vez: primeiro, ela é cantada pela voz solo de JM; depois, é novamente cantada pela mesma voz de JM acompanhada de sua própria voz oitavada (ou bem aguda), distorcida, com a velocidade e o timbre de uma voz normal gravada em 33 e 1/3 e reproduzida em 45 rotações[27].
 A duplicação diferenciada (e sempre humorística) da voz do cantor nos evoca o animal, o inumano, o bichinho, o infantil, o desarrazoado.
Sendo duas vozes diferentes vindas da mesma fonte, uma apontando o homem, outra o animal, podemos ouvi-las como dois aspectos do mesmo corpo, o humano e o animal, o que nos faz lembrar da filosofia imanentista e unívoca de Espinosa e da biologia de Saint-Hilaire (onde todos os animais têm a mesma estrutura e apenas realçam alguns traços ao se especializarem, o que foi posteriormente confirmado pela embriologia), que falam do indivíduo como uma intensificação de um modo do corpo complexo (que Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo vão chamar de CsO: Corpo sem Órgãos).
No entanto uma pergunta ainda se impõe: por que o mito?
Manifestação de sociedades com mentalidade arcaica, ou arcaísmo que alimenta a paranóia reacionária de certos clássicos (Freud e seu Édipo, por exemplo), o que faz o mito na música, na poesia, na escritura, no filme e nos desenhos e pinturas de um artista que se coloca dentro de todos niilismos e problematizações da sociedade atual?
Quais são os mitos em JM?
Há ali mitos?
Ou anti-mitos, caso seja ele realmente um anti-mitólogo?
E o que significa isso, anti-mito?
Há (ou houve ou haverá) necessidade de tal construção?
Ou é bizarra?
É bizarra.
Porém necessária. Lendo/vendo/ouvindo JM temos a impressão de que ele é um historiador[28], mas um historiador a-histórico, ou meta-histórico, pois parece que toda a história é um momento só de equívoco humano, e uma volta foi completada, estamos sobre o ponto de partida, e agora cumpre inventar um diferencial para essa curva, para que ela não se volte sobre si mesma, o que seria um absurdo, o que seria a morte para a espécie.
Neste sentido sua arte (que é um pensamento e uma investigação) aproxima-se de outras manifestações que, no século XX, também estiveram interessadas em realmente produzir a história, e sair do pretendido círculo vicioso e viciado a que nos querem prender os pensamentos messiânicos, estatais, humanísticos, históricos, teológicos e naturalísticos.
Numa linguagem de pura e rigorosa filosofia: é preciso produzir o super-homem.
Em parte a esta conjuntura se pode atribuir o anti-mito recorrente na obra de JM: a tecnologia da era pós-industrial e informática aproxima o homem de seus estágios iniciais, até mesmo porque ele nunca de lá saiu, e significa o colapso do projeto da edificação do homem, que se vê aberto à comunicação com cérebros eletrônicos e com animais, procurando um interlocutor racional no espaço sideral, forçado a reconhecer a curtíssima eficácia de sua razão, lançado (conscientemente) no mais medonho obscurantismo (cultural, social, político e econômico; produzidos justamente pelo humanismo e seus corolários, a sociedade liberal e o capitalismo ateu e antiético), de onde nós pretenderíamos ter saído justamente quando mais nele nos entranhávamos (a partir da “Era das Luzes”).
Com o final da Segunda Guerra Mundial, a entrada do mundo na era atômica e espacial, a revolução informática e cibernética e a ativação global daquilo que Guattari chama de CMI (Capitalismo Mundial Integrado)[29], ao lado de um crescimento nunca visto da alienação das massas populacionais, da imbecilização e da robotização das pessoas (como uma forma de suportar um planeta em curto-circuito mental, pronto a explodir ou a entrar numa crise ecológica de proporções intoleráveis, e imerso na apatia da descrença absoluta sem qualquer tipo de alternativa, descrença esta produzida e que favorece a esse modo de produção); ao lado desse pesadelo orwelliano tornado realidade, e como consequência mesmo dele (ou melhor, em retroalimentação com ele), potencializa-se como nunca antes também se vira na história ocidental uma guerrilha superinformada contra o estado, contra o centro de poder, e o apoderamento e processamento capitalístico das subjetividades e da energia das pessoas: é a geração beat, os hippies, o underground, a contracultura, as experiências de expansão de consciência (através de drogas, técnicas orientais de meditação, sonhos lúcidos experimentais[30], com ou sem a parafernália laboratorial científica de apoio, nas universidades ou nos “barracos precários” daqueles que Deleuze e Guattari denominam “esquizo-experimentais”[31]).
A todas essas experiências liga-se o trabalho de JM.
Na sua adolescência, na década de 50, enquanto os beatniks estavam atuando nos EUA, ele parece também um beatnik (único, solitário, alienígena), aqui no Brasil. Mas na verdade não é, ele mesmo recusa tal rótulo, afirmando que nunca foi beatnik, sua viagem era ainda mais solitária, na medida em que ele fundia o que estava acontecendo em vários níveis culturais e artísticos, de uma forma absolutamente original, com a qual ninguém se parece.
Seus pais se chamavam Annie e Paul, e viviam em Viena durante a Segunda Guerra mundial. Todavia Paul era judeu, e os judeus estavam sendo perseguidos.
O que seria do amor, naquele tempo de loucas tempestades?
O amor tinha sido emulsificado em gotículas, entre o caldo de uma outra coisa que fingia que era amor e que se fazia passar por paixão, mas que não era nada disso, era simplesmente o ódio, contra a gente do leste, do norte, do oeste e do sul. Era o ódio central, fictício porque se supunha o centro quando no máximo existe um centro de elocução mas mesmo assim nunca o mesmo, e real porque fabricado como fosse era efetivamente um ódio que sabia disseminar suas sementes e fazer castelos, reinos, impérios, tanques, bombas e aviões.
A gotícula de amor que nas margens do rio Danúbio os dois fugitivos de tantas gerações tinham misturado alquimicamente sozinhos no escuro de seu amor sem limites, ela tinha se tornado um pequeno ser que iria nascer e vir à luz dentro de poucos meses.
Paul e Annie tomaram um navio, tiveram que fugir.
O pai de Mautner era um judeu austríaco intelectual (foi professor de matemática e humanista em Viena) que chegou a ser preso num campo de concentração nazista, de onde escapou com a ajuda da esposa - a mãe de Jorge -, uma gói de ascendência eslava. Jorge contava que ela, uma mulher muito vital e instintiva, nunca deixou de admirar Hitler. Aparentemente seu marido judeu entendia com irônico amor essa admiração que de resto não turbava o ódio que ela nutrira pelos algozes de seu marido, os comandados do para ela fascinante Führer. Com a mesma intensidade ela se sentia grata ao país que os acolhera em sua fuga: a figura de Getúlio Vargas se impôs sobre sua imaginação como representante dessa hospitalidade. Evidentemente ela era sensível às lideranças carismáticas. Seu marido, ao contrário, era refinadamente sábio e irônico como só um judeu pode ser. Jorge jogava com os elementos contraditórios dessa formação de um modo que comovia e assustava. Mas sobretudo estimulava e interessava.[32]
A viagem para Paul e Annie era pior do que a morte porque tudo que eles acreditavam e conheciam tinha acabado ou se revelado uma mascarada absurda, e o terror e a violência da guerra iam de encontro a tudo que se entendia como humano. Annie era muito religiosa, e todos os horrores da guerra não conseguiram minar seu catolicismo, na verdade só o fizeram fortalecer, mas foi tudo isso um evento que a enfraqueceu e a fez menor a cada dia, como se o mundo fosse uma energia muito além do que o ser humano pode suportar, uma luz ultra violenta para o limitado olho humano.
/.../ Minha mãe desquitada de meu pai e os dois são criaturas estranhas. Ele judeu de uma cultura refinadíssima e aristrocrata, (e por isto mesmo fraco, e niilista). Minha mãe austríaca de nascimento e eslava de descendência. Minha mãe abandona a Áustria por causa de Adolf Hitler e por causa de meu pai. Ela não o precisava ter feito, ela poderia ter permanecido na Áustria, mas ela o fez por amor. Isto para ela representou um grande sacrifício: deixar toda a família dela, pais, irmãos (muitos) e um grande número de primos e primas porque os eslavos costumam ter famílias grandes. Ainda por cima ela manda a minha irmã Susi (que agora está na África) para a Inglaterra morar na casa da irmã de meu pai. Antes de subir para o navio roubaram todo o dinheiro de meu pai, e ele aristocrata e fraco e niilista e a minha mãe, eslava com os nervos à flor da pele e um filho na barriga. Este filho sou eu. Imagine um navio de imigrantes, 3ª classe, miséria e agonias. Eis o ser humano despido de tudo, de todos os seus artificialismos e desculpas, e defronte a si próprio! Os dois chegam no Rio de Janeiro completamente pobres. Os outros imigrantes haviam também empobrecido mas não eram que nem o meu pai. Um niilismo oriental grassava nele, uma amargura, ele, pessoa sensível ao máximo e dotado de uma cultura que lhe confirmava a inutilidade de tudo, descambou. Minha mãe grávida, sem um tostão, longe dos seus (e ela tinha uma verdadeira adoração fanática pelo pai e pela mãe e pelos irmãos como os eslavos costumam ter.) Ela é obrigada a dormir em pensões coletivas. Meu pai obtém emprego mas gasta todo o dinheiro que ganha jogando no Cassino e na loteria[33]. Minha mãe está no auge do desespero e diz para ele: “É para isto que eu saí da Áustria?” Ele ganha bastante porque trabalha na Interamericana junto com o David Nasser e o Carlos Lacerda. Ele compra um apartamento. Mas continua jogando e jogando. /.../ Ele chega ao ponto de jogar o próprio apartamento que comprara. Aí minha mãe chega ao auge do desespero. /.../ Dias depois ela recebe uma carta notificando a morte por fuzilamento da irmã dela, pessoa de quem ela mais gostava. (Compreenda a família eslava.) E depois recebe uma carta anunciando a morte do pai e da mãe dela. Um outro irmão é enforcado por batalhar na resistência Iugoslava. E finalmente a filha dela que está na Inglaterra, minha irmã Susi manda uma carta dizendo que não quer mais saber da mãe dela que a deixa na Inglaterra, enquanto se diverte no Brasil /.../. Esse choque é demais para a minha mãe. Minha mãe grávida, na miséria, desprezada pela filha, enganda pelo marido, com os parentes e os pais trucidados quer se suicidar. Impedem-na de se suicidar e ela é recolhida por muitos dias numa Clínica de doentes Nervosos. É verão. O Rio de Janeiro fervilha. É janeiro. Já é Carnaval. Minha mãe se torna paralítica e não consegue se mover nem um pouco. O doutor Rosenstein médico estrangeiro conhecido e também imigrante diz a ela: “Tua doença, tua paralisia é um caso essencialmente teu. Eu não posso fazer nada. Se você não tiver forças por si própria eu não posso fazer nada. Mas lembre-se do filho que vai nascer.” E minha mãe rezou porque ela é muito católica e eslava e levantou-se e moveu-se. Eu nasci dias depois no dia 17 de janeiro de 1941.[34]
Devido ao estado físico e psicológico de sua mãe, JM foi criado por uma babá negra de nome Lúcia, que era ialorixá de um terreiro de candomblé na Lapa, e sempre que tinha culto o levava com ela, e ele ficava lá até dormir na camarinha: foi com Lúcia que JM aprendeu a doçura, o amor de mãe, o circuito da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a riqueza milenar do ritmo humano e todas as minúcias do pensamento negro mascarado na forma de mito.
Em 1945, quando Jorge Mautner tinha quatro anos, seu pai que havia sido recebido por Getúlio como representante da comunidade judaica, procurando convencer o presidente a se juntar aos aliados contra o eixo, fala na “Hora do Brasil” e é homenageado. No mesmo ano, Lúcia levava Jorge para brincar nos jardins do Palácio do Catete. Um dia Gregório Fortunato aparece e se ajoelha diante dela, saudando-a, pois ele era frequentador do seu terreiro. Outro dia, apresenta o menininho a Getúlio Vargas, que lhe pergunta se sabe quem ele é, e Jorge bate continência e fala: “O senhor é o presidente do Brasil”.
JM morou no Rio de Janeiro até os sete para os oito anos; depois
Minha mãe se desquita de meu pai e conhece um violinista pobre mas é amor e casa-se com ele. Ele é o meu padrasto. Meu pai no seu niilismo vai trabalhar como caixeiro viajante e por mais de doze anos viaja pelo interior lendo e dormindo no seu niilismo de derrotado. Minha mãe e meu padrasto vão para São Paulo. A irmã de meu padrasto é rica, ele é pobre. Aqui em São Paulo surge o meu segundo complexo. As brigas entre o meu padrasto e minha mãe sucediam-se. As brigas eram estranhas e fortes. Eu sei que em todas as famílias e casais há brigas mas as brigas que eu presenciei eram trágicas e demais. Minha mãe, nunca completamente restabelecida dos choques nervosos e emotivos e meu padrasto na sua atitude característica de alemão não compreendendo a verdadeira causa das brigas da minha mãe. E também foi no verão /.../ que quando meu padrasto foi tocar à noite numa cidadezinha do interior eu encontrei minha mãe desmaiada no corredor. Eu não fiz nada, olhei-a estendida no chão e tive ódio dela. Acho que eu amo minha mãe demais e também a odeio demais. Por três vezes esta cena se repetiu.[35]
Judeu sem pátria, alma de negro entre nórdicos, um alemão entre os tupis, um eslavo desterritorializado, cigano errante, refugiado de guerra, filho da fuga do ódio e do amor entre desiguais, menino pobre circulando no meio da elite paulista, literato e violonista no meio de entusiastas telespectadores violeiros (ou melhor: violonistas, ainda não era a guitarra não, teria que se esperar por Roberto Carlos e Caetano Veloso), sério ou profundo demais para as massas, dionisíaco e intuitivo demais para os intelectuais (o que quer que entre nós queira essa palavra dizer, posição social, referendo governamental, passe em igrejinha etc.), um eterno carioca em São Paulo, paulista no Rio.
Em 1957 funda juntamente com João Quartim de Moraes e João Roberto Piva, o movimento niilista, “que era contra todos os partidos, era um movimento anarquista radical”[36].
Aos dezessete anos de idade (ele sempre afirma que “a data de partida é 1958”) JM escreve Deus da Chuva e da Morte, obra profunda e de fôlego, da qual ele mesmo dirá que primeiro a escreveu e depois foi viver tudo o que ali escrevera[37].
Com a mesma idade também compôs muitas de suas canções importantes, como “O Vampiro”, “Iluminação”, “A Bandeira do meu Partido”, entre outras, e cria o Partido do Kaos, juntamente com o pintor José Roberto Aguilar[38].
A esquerda geralmente não aceitava JM, e ele também não conseguia se sentir confortável dentro da mal-humorada e sectária esquerda política da época, apesar de sua grande atração pelo marxismo e de suas inquietações de cunho social.
Sua preocupação com um novo socialismo (que faça a síntese dialética entre o capitalismo e o que agora chamamos de comunismo) está brilhantemente expressa na canção “A Bandeira de meu Partido”[39]:
A bandeira do meu Partido
É vermelha de um sonho antigo
Cor da hora que se levanta
Levanta agora, levanta aurora![40]
Quem pôde compreender e aceitar a literatura de JM então foram os heideggerianos Vicente Ferreira da Silva, que era ligado à direita, e Miguel Reale, que tinha inventado o integralismo, os quais, segundo Jorge, tinham pelo menos alguma abertura para temas como o inconsciente.
Estranhamente, quem foi o primeiro a acolher a literatura do quase refugiado de guerra - eu nasci aqui quase que por acaso, eu sou filho de refugiados de guerra, da Viena Judaica - foram esses nazistas.[41]
O amigo “niilista” João Quartim de Moraes apresentou JM a Paulo Bonfim, que por sua vez o apresentou a Vicente Ferreira da Silva, o qual publicou os primeiros originais de JM, no número 13 da revista Diálogo, com apresentação de Dora Ferreira da Silva, esposa de Vicente.
Em 1958, conheci o filósofo Vicente Ferreira da Silva /.../ incompreendido até hoje, talentosíssimo pensador nacional que misturava Heidegger e teorias suas de altíssima originalidade (justiça lhe foi feita com a publicação de suas sobras após sua morte pelo IBF, e pelos artigos do judeu-brasileiro-filósofo Wilhelm Flusser fenomenólogo Husserliano). Além dos outros incríveis intelectuais que com Vicente sempre trabalharam e fabricaram a revista “Diálogo”. Foi este Vicente quem me disse ser eu o 1° verdadeiro bárbaro da nova cultura. Porque em mim sintetizavam-se entre outros fatores: informação de código-genético que incluía malabarismos pós-campo de concentração, o mestiço judeu que escapou, o jovem com casaca de couro que cantava rock e lia Heidegger. Heidegger sua paixão: lembro do dia que chegaram da Alemanha 2 grossos volumes de Heidegger sobre Nietzsche. Chovia. Ele perguntava: “sobre o que você quer falar?” E ele falava de qualquer coisa. Da coca-cola ao futebol, passando por Lorca e Raul Bopp. Na véspera de Vicente apresentar-me a Flusser como o 1° bárbaro das cidades novas, faleceu em desastre absurdo na rodovia Santos-São Paulo. Paralelos com Camus. Foi em sua casa que conheci Paulo Bonfim meu maior incentivador. E esposa de Vicente, que se chama Dora Ferreira da Silva (tradutora e estudiosa de Rilke & Lawrence) me perguntava obsessivamente: “mas você é mesmo o bárbaro novo? Aquele que já não pensa sobre, premedita, ensaia, escreve, academiciza, mas é sua primeira aparição real?”[42]
Logo depois veio o contato com Mário Schenberg, que mostrou a JM que
o partido não era burro, e, além de Nietzsche, ele ficou lendo Zen Budismo e Heidegger para mim, direto. E eu fiquei fissurado.[43]
Schenberg o levou para o Partido Comunista e lhe ensinou o zen. JM se sentiu como o companheiro artista do genial cientista, como ele mesmo nos conta:
  • Lá (casa do Vicente) conheci Mario Matoso (arquétipos e Jung), Paulo Bonfim, Paulo Edmur de Souza Queirós, que apesar de rápidas conversas muito me instruiu, inclusive um papo de suma importância depois (2 dias depois, 5 dias?) dos tumultuados eventos de 1964, quando ele me hospedou em sua fazenda, ele, um dos ideólogos do exército que estava transformando a república! hospedando um “subversivo”! Gesto de abertura, consideração à valorização acima de ideologias, da arte, mais antiga e nova que a Política das sombras maquiavélicas. Foi no momento mais criativo dos eventos, em sua dureza máxima o fato Histórico já apontava para seu oposto: a tolerância. Ilha de esperança. Distensão gradativa? Em seus embriões? Isso se me apresentou como antevisão de toda nossa atual História /.../. Mário Schenberg, cientista atômico, teve destino semelhante, as forças que o processavam por subversão também o defendiam por ser ele precioso para construir a bomba A nacional. Eu e ele. O artista e o cientista. O artista apaixonado pela ciência Einstein e o cientista apaixonado pelo zen, misticismo, artes modernas e telepatias místicas, e seu culto ao “primitivismo” na pintura. Ambos descendentes da longínqua Israel, ambos internacionalizados. Simultaneidade? Ambiguidadde? Ele de Permambuco eu nascido no Rio, ambos em São Paulo. Historicamente a História me apresentou um fato ambiguamente paradoxal, um Sim e Não tão aglomerados como muitas vezes mais tarde isso se repetiu. Passivo e ativo, branco e negro, guerra e paz. Tao = kaos brasiliano? /.../[44]

Já os beatniks eram americanos jovens, cujo lema era “Se ligue, sintonize, caia fora” (“Turn on, tune in, drop out”) - a partir do final da década de quarenta, filhos do pós-guerra, a primeira geração depois da criação da bomba atômica, cujo apogeu foi na década de cinquenta, e que frutificou em vários movimentos, na década de sessenta.
Eles caíam na estrada, sem destino (“easy rider”). Muitos eram artistas, cultos, com preferência pela poesia e pela literatura. Tentavam recuperar a oralidade original dessas manifestações, através de shows e discos (o que era chamado de beat scene).
Eram apaixonados pelo jazz e tentavam incorporar seu ritmo e sensualidade à poesia - o que os fez alvo da esquerda, que os chamava de “niilistas, românticos e boêmios”, e condenava a sua ligação com os grupos lumpen dentro da sociedade (minorias étnicas, drogados, músicos de jazz etc.).
Eram sofisticados e simples: Keneth Rexdoth, por exemplo, vivia num barraco de vinte dólares, enquanto possuía e nele guardava uma biblioteca estimada em dez mil dólares.
Além disso, os livros também costumavam ser nômades, e circular entre eles.
Outro forte ponto referencial para os beats foi o zen-budismo e sua meta de superação do homem através da expansão da consciência[45].
Tais propostas aparecem claramente nos versos e no depoimento de Michel McClure cujos fragmentos citamos (o primeiro é o início do “Poema do Peyote”):
Livre - os sentidos livres - na cadeira preta - de balanço
as paredes brancas refletindo a cor das nuvens
movendo-se sobre o sol.
Intimidades! Os quartos
não importam - senão como divisões de todo o espaço
de toda a beleza e feiúra.
Ouço a música de mim e escrevo-a
para ninguém. Passo fantasias
que se cantam com Vozes de Circe...
/.../
Meu conceito de poesia era intensamente alquímico, em parte por causa da época. Era como estar num elevador contendo um monte de gente com cabelos de recruta e calças apertadas. Ao encará-los, percebia que não poderia sair fora do elevador a não ser que eu descobrisse alguma forma alquímica ou super-humana. A maneira de escapar era criar poemas que fossem criaturas vivas. Minha esperança era que meus poemas pudessem ganhar vida, tornar-se organismos vivos através da energia que eu jogava neles. Eu queria poemas que tivessem seus próprios olhos, ouvidos, narizes, pernas e dentes.[46]
Ao tentar recuperar o ritmo do corpo em movimento em seus escritos, os beatniks confundiram as fronteiras entre prosa e poesia, fazendo uma literatura mais rítmica e mais oral, e uma poesia mais discursiva; além disso, procuravam captar o fluxo da consciência, sem atrapalhá-lo com censuras estéticas, morais, racionais etc. Um exemplo muito interessante é Jack Kerouac escrevendo On the Road em três semanas, colocando rolos de telex na máquina de escrever, para não ter que interromper o fluxo da consciência com a troca das laudas de papel, e poder bater direto, sem parar[47]. Kerouac pareceu antever a situação do escritor que digita seu texto no computador e não precisa mais se preocupar com a troca das folhas de papel.
A imagem do jovem beatnik (de Sputnik, primeiro satélite soviético que orbitou a Terra, e beat, em inglês, batidaritmo e também beatificar; uma verdadeira palavra-valise, uma sonora palavra esotérica que cria novas séries disjuntas a partir de séries pré-existentes[48]), vestido com jaqueta de couro e calças jeans, viajando sem parar, afetivamente ligado à moto e ao carro, à velocidade, à música (jazz e depois rock) e à sua gang, uma máquina de guerra, profundo e angustiado, pode ser lida com grandiosa beleza em Juventude Transviada, filme estrelado por James Jean, O Selvagem, com Marlon Brando e Easy Rider com Peter Fonda.
Todos as temáticas beatnik são encontradas nos livros de JM, principalmente nos primeiros, um espelho do modo de vida do próprio autor à época.
Deus da Chuva e da MorteKaosNarciso em Tarde CinzaVigarista Jorge O Sexo do Crepúsculo têm a mesma estranha estruturação, tratam-se de romances, todavia seus capítulos são contos, só que as linhas diegéticas vão se repetindo, se cruzando, longas novelas de um enredo único, que vai se metamorfoseando em vários pseudo-alternativos enredos, sempre retornando ao tema proposto, os personagens morrendo e partindo com muita facilidade, e sempre reaparecendo sob um outro nome, o eterno personagem Jorge situado como um nervo, um radar, às vezes na primeira pessoa, às vezes na terceira, sentindo, sentindo tudo (e para complicar tudo mais ainda, seus dois roteiros de filmes, Jardim de Guerra e O Demiurgo, fazem parte da continuação infinita desses “romances” publicados).
E além disso mais uma “confusão”: de repente a narrativa pode virar poesia (em linha reta ou não), e até mesmo letra de música, carta, discurso, manifesto etc., e depois volta à narrativa, em movimento cíclico de Ouroboros[49].
Assim é com a poesia/capítulo/conto de Vigarista Jorge intitulado “A Gang”, que mostra muitos elementos beatnik, misturados ao degenerado “existencialismo” de JM:
Nós éramos uma gang. O mar era negro e as nuvens carregavam em seu corpo o ódio, os relâmpagos. E quando a chuva começasse a cair ela iria molhar o corpo no mar que era tão parecido com as nuvens negras que de tão negras chegavam até a brilhar lá em cima em sua marcha pavorosa de cavalos negros a galopar ruidosamente!
A amargura existia tanto na terra como no sexo dos heróis e dos ratos. Eu cuspia no chão furioso. Eu bebia coca-cola. A corrida ia começar. Estávamos numa cidadezinha de veraneio. Meus companheiros todos eram ricos, filhos de gente milionária. Eram fanáticos por corridas de automóvel. E só eu dentre os homens da gang é que não tinha carro pois eu não era filho de gente rica. Eu era o poeta da gang. Eu que fazia discursos quando algum dos nossos morria gloriosamente como herói molhando o asfalto com sangue e ungindo seu sangue com a chuva que cai sempre em tal região umidíssima em que estamos. E choveu. E iniciou-se a corrida. E correram. Correram muito. Eram relâmpagos os automóveis. Eu e as mulheres olhando a corrida. Elas nervosas. Eu calmo, irônico com um sorriso de inveja nos lábios e de satisfação ao mesmo tempo. Eu era o mais complexado.[50]
O velho axioma alquímico - “o que está no alto é como o que está embaixo”[51] - pode ser relembrado diante da “proesia”[52] de JM: os relâmpagos estão nas nuvens e são os carros na estrada[53], o brilho da prata em meio ao negror está no céu e no mar (peixes, espuma), chove dentro e fora do poeta, ele está carregado com a tempestade, ele vibra com as máquinas que voam como os raios.
Em “O Vampiro” vemos os temas retornarem com a agudeza da lâmina, o poeta alinígena a tudo, com seus óculos escuros e sua sina de vampiro, seu desamor e sua paixão, e também o macrocosmos e o microcosmos alquímicos, uma hiperestesia[54] do eu lírico que não se entende nem domina, “tamanho inimigo de mim”, e que tem todas as percepções elevadas à enésima potência[55], como na canção de Jorge Mautner “Cinco Bombas Atômicas”, que, além de mostrar novamente a preocupação do jovem Mautner com a questão nuclear já na década de 50, enquanto o Brasil quase que inteiro vivia os seus sonhos dourados letárgicos induzidos, também traz essa sensibilidade potencializada de um eu lírico para o qual cada um dos cinco sentidos é uma bomba atômica.
JM fez esta canção aos dezessete anos, com apenas três acordes do violão, dó maior, fá maior e sol maior (ele diz que no início aprendeu três acordes e saiu fazendo dezenas de músicas com eles), na época ele estava impressionado com a Revolução Mexicana, por isso as citações do “soldado revolucionário”, em espanhol no texto da música, que Caetano, além de ter gravado em Cinema Transcendental, já havia cantado junto com ele em Londres O Demiurgo.
“E com meu cavalo negro eu apronto”, como no mito platônico do Fedro, as almas são constituídas de três partes: a razão (o cocheiro), a coragem (cavalo branco) e o desejo (cavalo negro). As que têm o cavalo negro indócil caem no mundo material e não têm propensão para se lembrar do desfile das ideias (os filósofos também caíram, porém os cavalos negros deles são menos indóceis, pois eles podem pelo menos fazer a anamnese ou reminiscência do mundo das ideias).
Em uma posição antiplatônica, JM se orgulha e assume seu “cavalo negro”.
O amor e o desejo são temas que aparecem ao longo de toda a obra, com mais abertura até do que na maioria dos escritores beat, e, sem dúvida, com uma liberdade praticamente inexistente na literatura brasileira, que, mesmo entre os modernistas, é machista, e trata o amor sempre como amor heterossexual, e aborda com muito preconceito a homossexualidade (veja-se como exemplo Jorge Amado, que adota uma atitude libertária no campo da moralidade e da sexualidade, porém se mostra preconceituoso quando se refere ao amor homossexual). As grandes exceções estariam justamente em Oswald de Andrade (no entanto de forma discreta, como no episódio em que o escultor Jorge de Os Condenados leva um rapaz de rua para seu apartamento, e passa a noite com ele - não existe no texto nenhum sinal de condenação de sua atitude, apenas nos olhos de alguns passantes, que representam a moral burguesa paulistana) e Caetano Veloso (em várias letras, com leveza e despreocupação; em Caetano a bissexualidade não é um assunto polêmico, ela é encarada com naturalidade)[56].
JM vai além: para ele o amor é pansexual e dionisíaco, é o próprio amor com a natureza[57] dos elementos em fúria: o mar, o vento, a terra, a chuva e a tempestade:
Ele estava numa estrada e havia relâmpagos. As flores vermelhas cheiravam a perfume embriagador: cheiro de sexo e sal do mar. Lá ao longe o mar leitoso e grosso e quente e azulino. E um vento gelado e úmido. Gotas passeando pelo céu, pelo espaço, batendo na carne, na terra. Flores vermelhas dentro da vegetação verde-escura praiana. Lama, areia. Rochas ao longe lambidas pelo mar. Uma casa ao lado de uma rocha enorme e velha e que tinha um buraco que era uma caverna e por onde o mar entrava com uma espuma branca e selvagem.
Ele estava sozinho. A areia é gostosa quando é cor cinza e quando está molhada. Ele correu até o mar. Pisou na areia. E as gotinhas voaram de encontro ao seu rosto e seu corpo. Pareciam luzinhas e eram gotinhas que vinham lá do alto e que o vento levava. O vento forte do mar. Tudo estava cinza. Ele antes de entrar no mar parou. Tirou o sapato, a meia, a camisa, a calça, a cueca e se banhou nu.[58]
O amor é presença constante em suas produções, é a força que anima a vida, e a vida é tudo o que existe. O amor aparece misturado ao ódio, misturado à morte, amor narcísico, carnal, floral, inorgânico, emergindo e sumindo em toda parte.
Em “Cinco Bombas Atômicos” o eu lírico, que tem “saudades eletrônicas”, como se fosse um ciborg ou um andróide, um misto de homem e máquina, quer engolir a pessoa amada no próximo beijo.
Já na canção-mantra “Bolinhas de Gude” (que repete o estribilho “E que Deus me ajude”), é dito que:
O mistério do amor
Eu não pude entender por mais que estude
Eu só sei que este beijo
Me faz tão bem à saúde[59]
E na canção-título do mesmo lp, “Mil e Uma Noites de Bagdá”:
A lua vive da luz do sol
O sol vive da luz de Deus
E Deus vive do amor que fez
Que ele derramou em forma de chuva celestial[60]
Outro importante tema mitológico é a chuva. Desde o título dos dois primeiros romances, Deus da Chuva e da Morte e Narciso em Tarde Cinza, às frequentes ambientações das narrativas na chuva, até a sua presença como agente lírico, a chuva é o veículo do amor, a chuva é a água em estado de fúria, é o caos feminino, a fluidez em movimentação máxima.
É uma chuva negra, fria e quente lá por dentro, chuva que dá vontade de comer. Anda sempre ao lado da morte e do amor.
Você sabe o que é a chuva meu bem?
É uma princesa que cai do céu
É a tristeza em forma de véu[61]
Sobre seu amor pela chuva o eu lírico chega a perguntar:
Oh, oh, por que
Eu gosto da chuva
Mais do que de você?[62]
E voltando ao Vigarista Jorge:
Tudo é música, ritmo. Vou para onde chove com todos vocês no meu coração e eu já não sou eu mas sou todos. Chuva! Recebe-me em teus braços e me faça ficar fluindo eternamente sempre morrendo e nascendo que nem tuas gotas. Vou para onde chove, e chove em cima das flores. Do palanque de Fidel, e das flores à beira da estrada perto do mato incomensurável do Brasil. Chove em cima das flores e dentro de mim. É para lá que eu vou. Onde chove chuva azul e cinzenta e em cima das flores brancas e vermelhas.[63]
Um trecho como este traz inúmeros problemas (apesar da pretendida simplicidade que ali veriam os néscios); o tema beat e pop (e homérico e medieval e moderno etc.) do permanente deslocamento, do nômade que viaja sem parar; o tema tão europeu (por negação ou por rendição) e tão terceiro mundo do ritmo, “tudo é ritmo”; a renovação da natureza, Dionísos e Osíris, e tantos outros mitos congêneres; as flores como princípio vegetal, capacidade de renascer, sexualidade, aspiração à elevação; a floração como estágio de coroamento de uma obra, e da obra alquímica[64]: a “chuva azul e cinzenta” sobre as “flores brancas e vermelhas” são imagens misteriosas que remetem ao inconsciente, a símbolos sanguíneos e carnais, ao esperma e aos órgãos genitais, à transmutação como a única via de renascimento, às fases sucessivas e bem-sucedidas da obra.
E os exemplos seriam inúmeros.
Um bom trabalho à antiga seria fazer o levantamento estatístico e estocástico de quantas vezes a palavra chuva, e outras do mesmo contexto: tempestade, trovão, raio, vento, mar[65] etc. aparecem ao longo de sua obra.
JM é um fenomenólogo lírico, e mais especialmente um fenomenólogo da chuva. Exemplos (entre tantos):
/.../ Chega num ponto em que a gente não separa mais o corpo do vento e o corpo da chuva. Estão tão grudados como os seres humanos no ato sexual.
O vento se abatia e possuía a floresta. Arrancava a chuva de algum lugar, de algum lugar do oceano onde a princesa chuva tinha nascido, evaporado, em que ela era vapor diáfano. Agora ela era mulher, era gotas de chuva e nuvens negras maduras.
/.../
A chuva nasce em muitos lugares, em muitos lugares do oceano, em todo o oceano pode ser, em algum lago, lagoa, rio. Tudo isto dá vapor. E da própria chuva nasce chuva. E das peças de água.
O vento vem e cata este vapor e transforma o corpo da chuva princesa em água, e aí nasce a chuva-mulher pronta para dar gotas para os homens, o gado, a terra. E da chuva nasce a chuva como do amor o amor.
/.../
A chuva era monótona mas tinha variações de ritmo. Caía por cima das plantas fazia um ruído. Caía por cima da terra outro. Por cima do metal e do mar e outros ruídos nasciam destes contatos diferentes. E havia a mudança de velocidade.[66]
Ainda um anti-mito: JM se repatria como um atlante, ou como a volta do povo de Atlântida, continente que fazia a ligação entre a Europa e as Américas e a África (ligação que ele procura recuperar em seu pensamento e em sua arte); quando a Atlântida afundou teria acontecido o corte entre os continentes (e suas zonas de intensiades variadas, complementares, como partes de um corpo), continuidade que é preciso refazer:
/.../ flores do mediterrâneo e flores tropicais beijando-se na geografia impossível do encontro de dois continentes separados por uma Atlântida que afundou nas águas do mito e da memória, encontro súbito de borboletas confusas e metamorfoseadas, acostumadas com o mistério da transformação, camaleões e dragões ocultos, atrás de luas e vitórias-régias, orquídeas e gestos de carnaval com confete e serpentinas, cheiro de lança-perfume, embriaguês e delírio, êxtase de Dionísius, da Bahia até São Sebastião do Rio de Janeiro, masoquisticamente flechado, a beleza na morte, a sedução da tortura, a dor como prazer, cidade-perfume-embriaguês sensualmente santificada, aqui em nossa terra o cristianismo é sensual /.../[67]
Durante a década de 60, JM atuou em vários níveis, publicou romances, gravou um compacto e fez política dentro e fora de partidos, ou dentro de seu Partido do Kaos. Escreveu também nos primeiros meses de 1964 a coluna Bilhetes do Kaos no jornal Ultima Hora de São Paulo. Com o golpe militar de 1° de abril, JM passou a ser perseguido: Vigarista Jorge teve toda a sua tiragem apreendida pela polícia (o primeiro livro proibido no Brasil, pós-64), e o mesmo aconteceu com o seu compacto de estreia, Não, não, não-Radiotividade, de 1965, que, devido a uma campanha radiofônica de Sérgio Bittencourt[68] (que acusava pelo rádio JM de trotskista e exigia o seu enquadramento pela LSN), foi também apreendido e sumiu totalmente de circulação.
Em 1965 JM é forçado a se exilar e vai para os Estados Unidos, onde trabalha, entre outras coisas, como secretário literário do poeta americano Robert Lowell (o comediante e entrevistador Jô Soares contou em seu programa de entrevistas na televisão que também esteve nos EUA no mesmo período que JM, com quem tinha grandes discussões sobre política nas calçadas de Nova York, e ainda que JM trabalhou no prédio da ONU, onde era - entre tantos representantes de culturas diferentes, cada um com seu jeito próprio de vestir - o indivíduo mais estranhamente trajado, e o que de longe chamava mais a atenção).
Cena: Jorge pega o caminhão e vai pelo Brasil inteiro procurando algo que ele não sabe bem, porém procura. Trata-se de Jardim de Guerra (1969), filme de Neville de Almeida, argumento, roteiro e diálogos de JM (que veio ao Brasil clandestinamente nessa época, apenas para trabalhar como ator na película, na qual interpreta o caminhoneiro que conversa por alguns segundos com Edson, e que fala sobre o amor pelo Brasil e por seu povo, que deseja conhecer). Edson é um jovem descompromissado e curioso, com sede de vida, é como um personagem saído da Mitologia do Kaos. Cenas em descontinuidade temporal nos dão conta de dois amores, um por uma jovem de sociedade, que vai lhe dar o contato de Basbaum, traficante de armas. Outro, uma aspirante a cineasta, que encontra casualmente na rua e com quem conversa de maneira solta sobre os temas mais caros ao autor, morte, amor, vida, cultura, a guerra, a bomba, a arte... Brincam de fazer cenas com a super 8 que ela traz nas mãos, e ele lhe promete arranjar o dinheiro para seu filme de verdade (o que o levará a encontrar e trabalhar para o bandido), que ela pensa intitular O Amor Amazônico, explicando que “amazônico” é um novo adjetivo que significa muito grande, cheio de vida, amor, riquezas naturais, quente, úmido, bauxita, manganês, quartzo, fauna e flora (o tema está sempre presente em Mautner, desde então até Floresta Verde Esmeralda publicado em 2002, passando pela parte falada da canção “Os Marcianos” no cd Pedra Bruta e pela série de artigos intitulados Fenomenologia Tropical[69]). Em uma festa Edson conhece um físico nuclear que gosta de zen e estética, e que lhe dá abrigo (lembrando a influência de Schenberg até mesmo como símbolo de tantos outros intelectuais que o influenciaram). É pego com uma metralhadora que não sabia que portava, mas quem o prende não é polícia, e sim um grupo encarregado de manter a ordem do lado de cá, aliado a outro grupo, encarregado de manter a ordem do lado de lá (capitalistas e comunistas, aliados). Interrogatórios e torturas figuradas, (como em Kafka) não saber nada nunca foi desculpa, várias alternativas de prosseguimento: Edson é desovado na mesma praia onde marcou encontro com a aspirante a cineasta (e onde ela lera sua mão e lhe pedira para não ir ver o gângster), um happy end em que os dois jovens se encontram e falam sobre o amor e se beijam ou ele foi levado para outro país que não sabe qual é e lá mantido prisioneiro, até que um misterioso homem o auxilia na fuga, e Edson o mata, e cai na estrada.[70]
Jorge olhava para tudo da janela de sua mônada e pensava que mundo louco que exige que cada um seja no mínimo o melhor trapezista de si mesmo, o melhor equilibrista do mundo, para pular sobre si mesmo e alcançar a outra dimensão que é simplesmente o próximo instante mutante.
A viagem nunca termina, seu caminhão vai pelo Brasil na cena apenas de um filme, quando ele não está no Brasil, mas está, e o Brasil está nele, como o amor. O Brasil (de quintal da paz) virou um jardim de guerra como tinha acontecido antes com sua doce Viena, e no entanto ele fugia para dentro de si mesmo e para fora de seu mundo, nunca foi o mapa do que acontecia a sua viagem sem sentido certo e com todo o sentido do mundo, foi a invenção de um novo mundo, o mapa do que tem mais potência se acontecer. O mundo todo estava agora virando uma Áustria e os judeus nem precisavam mais ser israelitas como era o seu pai.
Foi por isso que ele colocou o personagem do filme brincando de Hitler, fazendo o bigodinho com um pente de plástico, e saudando sem parar, na frente de um out-door que tinha escrito em toda sua dimensão a palavra “Coca-cola”.
Depois ele foi para Londres, onde conheceu Caetano Veloso e Gilberto Gil, que atuaram juntamente com Dedé Veloso, Sandra Passos Moreira, Ruth dos Santos, Leilah Assunçãq, Jards Macalé e José Roberto Aguilar no filme que Mautner dirigiu: O Demiurgo.
  • Em Londres, Mautner chegou a nossa casa de Chelsea trazido por Arthur e Maria Helena Guimarães. A esse casal, que me deu tantos ensinamentos de urbanidade, devo também o contato direto com a chama mautneriana. Jorge era um nietzscheano desde a adolescência. Surgiu na Capela Sixteena com um guarda-chuva, sentou-se na sala com um ar suspeitamente modesto de velho chinês, falando muito baixinho e em tom de interrogação. Em pouco tempo, encorajado com a receptividade, estava bradando como um profeta de Israel. Ele misturava a Jovem Guarda de Roberto Carlos com a guarda vermelha de Mao, descrevia a revolução por que estávamos passando como se fosse um cataclismo universal, voltava a seu velho sonho de casar Marx com Nietzsche, e, depois de passar por um deprimido cenário em que o ressentimento do terceiro mundo e a arrogância do primeiro terminariam por produzir uma opressão maior do que a vivida no segundo, chegava a profecias mais precisas - e aqui ele realmente mudava de tom, como se tudo o mais que estivera dizendo tivesse sido mera retórica de choque -, afirmando que as lutas políticas do futuro se definiriam, a partir dos Estados Unidos, como lutas de minorias sexuais inspiradas na ideia de direitos civis. Ele de fato descrevia com muita exatidão o que vemos hoje. E era tão entusiástico em relação a uma cena assim quanto se podia ser então - e tão irônico em relação à mesma quanto se pode ser hoje. Ao mesmo tempo que dizia: "O futuro é nosso, a velha política de esquerda e direita, de luta de classes, de guerra fria, vai acabar: Marcuse não é nada comparado com o que vem", ria diabólico: "Vai ser chatíssimo: as lésbicas negras sadomasoquistas vão disputar direitos com os pais gays brancos protestantes etc. etc."[71]

Como uma cebola o ser tem muitas camadas, conforme disse em aula o filósofo Cláudio Ulpiano, e o “ser da tempestade” também.
O Demiurgo tem várias implicações e dimensões. Uma delas a ponte para o underground genuíno a partir da arte brasileira, coisa que não teria sido feita, pois o nosso cinema tinha sua própria margem no Cinema Novo e seu submundo no udigrudi, como foi denominado por Glauber, que era marginal mas essencialmente brasileiro. Outra dimensão do filme de Mautner é a transmutação da tristeza que ele e os outros exilados (principalmente seus amigos instantâneos Caetano e Gil) sentiam em alegria carnavalizadora de uma ultrachanchada místico-filosófica. E ainda a questão da valoração do terceiro mundo, de elementos considerados marginais como sendo tão importantes quanto os centrais, a mitologia e a filosofia gregas se encontrando com o pensamento negro (visualisado pela imagem de Gil) e mulato (como Caetano) - quem fez a antropofagia foi o Brasil, que produz seu próprio europeu branco, Jorge, ao lado dos outros dois, “brasilificado”.
Gilberto Gil é o deus Pã, e ao tocar um atabaque ele o faz com a minúcia e a precisão, o cuidado e controle de um cientista preparando seus instrumentos de laboratório, mostrando que há ali uma química também, uma prática produtora científica, e uma racionalidade alternativa.
Outra das muitas dimensões do filme, a posição filosófica nova e independente, a citação das tradições culturais ocidentais não é meramente erudição, nem a visão que um poeta tem da razão, mas a fusão nova de razão com poesia e uma genuína forma de pensar que antes não havia, ligada ao que o país tropical e sua natureza e a miscigenação trouxeram de novo para o pensamento.
JM não cita os filósofos e escritores como um mero admirador, ele o faz como um pensador que utiliza as citações em uma construção própria, oriunda de fontes que seriam chamadas de irracionais, pois não são europeias, mas que são sim uma outra forma de razão, e de sua fusão, numa auto-valoração que metamorfoseia toda a angústia e melancolia de ser terceiro mundo ou marginal até mesmo em sua terra, não mais “tristes trópicos”, mas “trastes típicos” como falou o Demiurgo (Caetano), discípulo incorruptível de Sócrates (Aguilar), adorador da razão versus misticismo.
Satã (Mautner) faz uma aposta com Sócrates, que julga ter produzido com seu aprendiz o único ser humano incorruptível, e tenta seduzir o Demirugo, mas descobre que este é também um demônio, ladrão das almas das mulheres que vão com ele se consultar, e que acabam se rebelando lideradas por Cassandra (Leilah Assunção) e uma rainha amazona interpretada por Dedé, mulher de Caetano na época, e que cercam o Demiurgo aos gritos, o esfaqueiam e devoram (apenas para que ele ressuscite depois, um dos seus mais simples truques; diferentemente do deus Pã, que quis morrer bebendo cicuta em pós despejada numa lata de coca cola para conhecer a verdadeira beleza de ser humano e amar).
O tempo todo a ideia de voltar para os trópicos como a grande felicidade (é marcante a cena de todos os atores do filme, com pesadas e coloridas roupas de hippie no frio, dançando no Hyde Park em Londres a ciranda de Lia da ilha de Itamarcacá, como um ritual mágico que atravessa eras e terras bárbaros, celtas, algo da origem da própria humanidade).
De volta ao Brasil Jorge consegue finalmente gravar um lp, Para Iluminar a Cidade, pela gravadora Polydor; a capa traz um selo com o desenho de uma caveira e a palavra escrita: “Pirata”, sem o ser (e, no entanto, sendo). Disco pirata é o terror da indústria fonográfica e dos artistas do disco; é muito fácil e barato copiar vinil, cassete ou cd, e vender no camelô por muito menos do que preço de loja, roubando uma boa fatia dos lucros e dos impostos. A qualidade da reprodução não é ótima, e às vezes o trabalho sai truncado, porém, para o proletário de baixa renda, que importa? Para Iluminar a Cidade não é um disco pirata neste sentido, pois foi lançado por uma gravadora, era um selo novo, experimental, que não foi adiante, pois, por trazer o preço impresso, foi boicatado pelos vendedores. Há também os que gravam o show do artista e lançam um disco sem o seu consentimento, também não foi o caso, o disco era do próprio autor. O “Pirata” na capa é um lance de humor espontâneo, sincroniciade quântica, que permitiu que sua obra pudesse trazer de cara o seu lema e brincar com a paranóia capitalista que cerca o mercado artístico no mundo, e também a afirmação de uma identidade, uma profissão de fé, JM é um pirata e um cigano, assim é sua alma.
Para Iluminar a Cidade é a gravação de um show ao vivo que JM fez no Teatro Opinião, nos dias 27 e 30 de abril de 1972. Deste trabalho já participa Nelson Jacobina tocando violão, apesar de ainda não haver ali músicas feitas pelos dois em parceria. Traz uma sonoridade única (aliás, Mautner sempre sabe se cercar de excelentes instrumentistas, e cada álbum seu tem uma ambientação sonora e de arranjo totalmente diferente dos outros), é o seu trabalho musical mais “cigano” e com mais clima de contracultura.
Gil, Caetano e Gal Costa, também gravam um lp ao vivo na Bahia, em 1974, Temporada de Verão, assim que voltam do exílio. Neste lp Gil canta a música “O Relógio Quebrou” de Jorge Mautner, e Caetano o cita entre outros Jorges na canção “Conteúdo” [72].
No mesmo ano de 1974 a Rede Globo de Televisão promoveu o Festival Abertura, que tentava augurar a abertura política que só viria a se realizar muitos anos depois. À época ele pareceu a retomada efetiva do movimento dos grandes festivais dos anos 60 e início dos anos 70, nos quais apareceram Caetano, Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Ivan Lins, Geraldo Vandré etc. Hoje há gente que o entende como o último dos grandes festivais, como se não tivesse havido solução de continuidade entre ele e os que o precederam até três anos antes.
No Abertura Caetano Veloso fez um show especial, em que cantou exatamente esta música, repetindo-a inteira uma vez, o que perfez mais de quatorze minutos; além de tudo ele vestia um bustiê tomara que caia, e usava batom. O público foi ao delírio de impaciência e indignação.
Aliás, aquele era um público bastante agitado (diferente do que a ditadura econômica e cultural moldou para o final do século XX no Brasil): ficou confuso e barulhento diante de Hermeto Paschoal cantando que “O mocotó tá duro pra danar/Eu vou pedir de novo pra cozinhar/Só vou sair hoje daqui quando comer o mocotó”; irritou-se e vaiou muito Jards Macalé que cantava em “Princípio do Prazer”: “Eu estou aqui e ali e você não pode me bodear/Não entro na sua trip, não entro no seu bode eu quero é sambar”, e que reagiu batucando com uma colher num prato até o quebrar, depois mordendo, mastigando e cuspindo pedaços de uma maçã, enquanto cantava, e comia uma rosa para o público ver; ficou estupefato com os experimentalismos de Ednardo (“Vaila”), Alceu Valença (“Vou danado pra Catende”, tendo o então desconhecido Zé Ramalho na viola) e a novidade de Djavan (“Fato Consumado”); protextou veementemente contra a letra e o astral nada otimista de Burnier e Cartier (“Foram pra São Paulo pra fazer dinheiro/Tava na cara, ficaram nus”); tentou encobrir com urros a inquietante “Muito Tudo” de Walter Franco, que, diante da reação da plateia, ficou jogando dados imaginários com Júlio Medaglia, o brilhante maestro e arranjador que generosamente trabalhou nas harmonias de todos os concorrentes. O maestro também fez um desafio de violinos, ele no violino acústico, com Jorge Mautner, que tocava um violino elétrico, e cantava a música dele e Nelson Jacobina, concorrente que ficou entre as dez finalistas, um frevo que carnavaliza o amor e a vida, “Bem-te-viu”:
O que ele viu e assistiu
Com olhos de passarinho
Foi o beijo mais gamado
E alucinado do Brasil!!![73]
Em seu “Manifesto do Movimento Qualquer Coisa”, bem-humorada paródia dos textos polêmicos de vanguarda, porém texto muito sério, que propõe a continuidade da estética antropofágica do tropicalismo na nova arte do país na época, uma MPB superinformada e hiper-sensível como alternativa à barra pesada da época (1976) e como construção de uma identidade brasileira, Caetano refere a obra de JM como exemplar, ao lado de alguns dos mais ilustres nomes de primeira grandeza da nossa música popular:
XII exemplos: a obra de jorge mautner. a pessoa de donato. o papo de gil. O significante em maria betânia. o significado em elis regina. baiano e os novos caetanos etc.[74]
Caetano também escreveu um artigo para a revista Ta-Ta-Ta que Jorge Mautner editou em 1976.
Na canção “Sampa” do lp Muito, de 1978, Caetano alude a JM entre tantas figuras mitológicas da Cidade de São Paulo (Mutantes, Concretistas, Zé Agripino, Paulo Vanzoline e ainda os honorários Vinícius, Zé Celso Martinez Corrêa, Novos Baianos etc.):
Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
Tuas oficinas de florestas
Teus deuses da chuva
Panaméricas de áfricas utópicas
Em 1979 Caetano grava “O Vampiro” em Cinema Transcendental, e no ano de 1981, canta com JM duas canções no lp deste, Bomba de Estrelas: “Cidadão-Cidadã” e “Vida Cotidiana” (ambas de Jorge Mautner e Nelson Jacobina). Caetano produziu o lp de JM Antimaldito, em 1985. Em seu trabalho Estrangeiro, de 1989, que tem como capa a pintura de Hélio Eichbauer para o cenário da peça O Rei da Vela de Oswald de Andrade na montagem dirigida por José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina de São Paulo em 1967, há uma canção, “Os Outros Românticos”[75], dedicada a JM (e que ele imita sutilmente com uma risadinha, depois do verso: “Na voz de algum cantor de rock alemão”). A canção trata dos meninos de rua e cita “Anjos sobre Berlim”. E gravam juntos, dos dois, o cd Eu Não Peço Desculpa, que é de 2002. Já na música “Cidadão-Cidadã” (que Caetano canta junto com ele em Bomba de Estrelas), Mautner fala dos anjos “tocando suas trombetas e derrubando a Muralha de Jericó”, e pergunta “quem a não ser o som poderia derrubar a muralha dos ódios etc., e do nazismo universal?”É interessante ainda recordar o show The Wall de Roger Waters em Berlim sobre as ruínas do Muro, onde ele mandou construir um outro muro colossal e cenográfico, para ambientar ali a execução integral e ao vivo das músicas do álbum duplo The Wall do Pink Floyd, muro que foi derrubado ao final do show pela força do som de seus rocks progressivos.
Em 1987, Roger Waters lança o lp Radio K.A.O.S., uma obra conceitual, disco-projeto, que explora todas as facetas da ideia de rádio, ideia que detona sons, músicas, vozes humanas e cibernéticas (e às vezes é difícil distingui-las); Billy, um “vegetal”, um paraplégico, cuja única forma de comunicação é o telefone de sua cadeira de rodas, recebe ondas de rádio em sua mente, e mantém diálogos (pelo telefone que contata computadores, através dos quais sintetiza uma voz para si) com o locutor da rádio pirata K.A.O.S., até que, com o desenvolviemento das estranhas faculdades de Billy, anuncia-se que o botão da terceira guerra mundial foi acionado.
E nada acontece, pois Billy estava no comando telepático tanto do alarme quanto do não-funcionamento, e o coro perene das vozes dos homens comuns que Billy sempre ouve vindo de sua cidade natal comemora cantando “The tide is turning”, a maré está virando.
No seriado de televisão norte-americano da década de 60 (logo, posterior à redação do primeiro volume da trilogia do Kaos) criado por Mel Brooks Get Smart (Agente 86), o inimigo é sempre a organização subversiva K.A.O.S., síntese caricata de todas as subversões que a paranóia ianque alimenta, e que queria dominar o mundo (ambiguidade proposital).
Voltando a Caetano, em sua canção “Ele me deu um beijo na boca”, do lp Cores Nomes, aparecem os versos:
Ela vem e instaura o seu cosmético caótico
Você começa a olhar com olho gótico
De cristão legítimo[76]
Ora, o que é um “cosmético caótico”?
Em Finnegans Wake, James Joyce subverte todas as mitologias, criando, através de palavras-valise, um complicatio das séries, um caos gerador que não se restringe a n cosmos, mas instaura a possibilidade de n cosmos diferentes. A palavra que designa essa realização é caosmos, palavra-valise que funde caos e cosmos, num paradoxo gerador de sentido.
Joyce apresenta o vicus of recirculation como aquilo que faz girar um caosmos; e Nietzsche já dizia que o caos e o eterno retorno não eram duas coisas distintas, mas uma mesma afirmação.
/.../
Através de técnicas muito diversas, desenvolve-se a identidade joyceana última, aquela que se reencontra em Borges ou em Gombrowicz, caos = cosmos.[77]
Note-se que cháoschásco e charma têm a mesma raiz, e começam com a letra chi, ao passo que kósmos se escreve com kappa[78].
Etimologicamente, caos seria escrito com c (ou ch, como no inglês, chaos), enquanto que cosmos poderia ser escrito com k (kosmos). A inversão, ou melhor, o quiásma, o cruzamento, o crossing over, dos dois radicais gregos, na palavra Kaos, sugere a mistura de dois conceitos: kósmos e cháos, ordem e ilimitado, mundo e abertura, céu e abismo, adorno e garganta profunda (ou “caosmos”, ou “gérmen-caos” ou “cosmético caótico”).
Kaos = aparente repetição, é como o ato sexual; deixaria de ser gostoso por ser sempre aparentemente a mesma coisa?
Kaos = introdução da monotonia oriental no proceder e na arte do homem ocidental. Nova noção do tempo.
Kaos = avanço em espiral, rebelião pura e permanente. Luta contra a IIIª guerra mundial absorvendo-a, dormindo com ela, tornando-a comestível, realidade sexual, palpável, gustável.
Kaos = tensão dramática, enlouquecedora, purificadora da existência. Tensão que aumenta sempre, tensão contraditória com estados de alma os mais opostos e diversos, convergindo sempre para uma tensão maior e para uma ampliação maior dos opostos em intensidade e fúria, aumentando assim a intensidade da tensão. Sado-masoquismo, depois um supra sado-masoquismo, e depois um supra-supra sado-masoquismo, e assim por diante, consciência-intuição, razão-irracional, triste-alegre, luz-escuridão, Yang-Yin, tudo aumentando sem cessar, em intensidade e crescimento contínuo, crescimento que inclui recuos, mortes, não-crescimentos, assassinatos.
Kaos = o que eu sou. Ilegível e legível, sábio e burro, queimação, fogo que arde dentro da gente, necessidade de dizer, de dizer, de roubar o segredo dos deuses. E depois de cada roubo, a certeza de que há um segredo maior e que é preciso roubá-lo também, e assim por diante[79].
Neste verdadeiro Manifesto do Kaos (um entre muitos), que está no livro de 1985 Fundamentos do Kaos, podem-se ver claramente a proposta auto-consciente da superação da consciência e a abordagem de um novo mundo para lá de caos e cosmos, “aparente repetição”, “nova ordem do tempo”, “avanço em espiral” (que vai retornando diferencialmente para os mesmos pontos anteriores, sempre aumentando em abrangência, a espiral é a anti-dialética por natureza). Um poeta trágico consciente e/ou superconsciente de tal.
Parte do elemento fogo: a teoria mautneriana, nos ensaios, artigos e em toda parte, em toda sua arte; além do elemento água de sua prosa chuvosa, e de sua música ar e de seu corpo terra (os quatro elementos estão sempre misturados em qualquer manifestação, em diferentes proporções, como as assim chamadas por Aristóteles homeomerias de Anaxágoras de Clazômenas).
Formas, ideias feitas a fogo, o poeta de Proteu que é se torna Prometeu[80], como ele mesmo o afirma no manifesto, roubando as verdades dos deuses. Kaos é a pretensão orgulhosa e antropoteodemoníaca de tornar-se deus.
O que é o Movimento do Kaos?
O movimento sempre foi observado pelo homem, na natureza circundante, e no seu próprio espírito.
Desde a Antiguidade o homem tem buscado uma regularidade e uma racionalidade no movimento, para entendê-lo e dominá-lo, utilizá-lo, domá-lo. A física newtoniana foi o grande marco deste investimento, pois possibilitou o domínio sobre movimentos mecânicos de máquinas fabricantes e máquinas de deslocamento.
Evidentemente este movimento newtoniano e moderno elide e domina o caos dos movimentos naturais, para o rio a hidroelétrica, para o mar os diques, para o vento moinhos, para as chuvas açudes, para os corpos móveis gráficos e funções. É a física caótica aparentemente domada, dominada, domesticada.
Porém o século XX viu nascer também a física quântica, que nos prova que no seu mais profundo ser a matéria é caótica e não regida pelo princípio de contradição e sim pelo princípio de indeterminação de Heisenberg[81]: de uma partícula sub-atômica é impossível determinar concomitantemente o momentum e a posição em que está.
Na década de 60 o movimento mecânico domesticado recebe um ataque ainda mais decisivo na Teoria do Caos que mostra que sempre há uma complexíssima ordem na desordem e a desordem na ordem.
Em 1987[82] é publicado nos EUA o livro Chaos - making a new science, de James Gleick, que saiu no Brasil só em 1990, com o título de Caos - a criação de uma nova ciência.
O lançamento tupiniquim do livro é precedido de reportagem da revista Superinteressante, cuja manchete dizia: “Caos - A ciência descobre ordem na desordem”. O artigo se chama “A face oculta do caos”, de autoria do próprio Gleick, é uma resenha do livro, que trata de um grupo de novos cientistas americanos que, por força de suas descobertas em campos como a física, a matemática, a metereologia, a astronomia, a biologia e outros, e usando computadores, foram forçados a se tornar transdisciplinares e acabaram formulando a proposta de uma nova ciência que eles chamam de Caos, e que investiga a ordem na desordem e a desordem na ordem.
Agora que a ciência está atenta, o caos parece estar por toda parte. /.../
O caos rompe as fronteiras que separavam as disciplinas científicas. /.../
Os mais ardentes defensores da nova ciência chegam ao ponto de dizer que a ciência do século XX será lembrada por três coisas: a relatividade, a mecânica quântica e o caos.[83]
Ao investimento mecânico poderíamos chamar de cosmético, pois não exorciza realmente as forças ciclópicas do caos e do acaso, apenas as mascara, maquia, com uma finíssima camada de razoabilidade. À Teoria do Caos podemos chamar, num tributo a Joyce, Deleuze e Guattari, de caosmótica, pois o cosmos tem aí uma certa existência, com a qual convive eternamente a subsistência de um caos profundo, criador, semeador, Apolo e Dionísio de Nietzsche.
Enquanto os primeiros, incertos e anônimos passos da Teoria do Caos eram dados nos EUA, ao mesmo tempo no Brasil JM criava independentemente o seu Movimento do Kaos com K, para propor e até explicar em termos poéticos este tipo de movimento que tem sido o grande pavor dos paranóicos, o movimento de Dionísio.
Mautner se alinha, enquanto poeta e pensador, através de sua teoria do Kaos com K, entre os pioneiros da Teoria do Caos, da ciência que vai remodelar o aldeamento ou aldeísmo global do século XXI.
Para o poeta essa “Gaia ciência” é condição de possibilidade para reais e sérias investigações, pois a sua questão é outra, seu trabalho, pelo qual quase nada recebe, e que não haveria dinheiro suficiente para pagar, é um só: “aumentar a intensidade das tensões”.

  

                                      Capítulo 3: o dançarino do abismo

Estou profundamente abatido, desiludido, porque meu chamado não teve resposta.
Oswald de Andrade[84]

Jorge Mautner é um antinarrador.
E até aí tudo seria comum, Joyce instituiu o mito da antinarrativa.
Porém há algo de inquietante em nosso autor, afora sua contemporaneidade (que já o é bastante, pois estamos nos confins da Terra): estamos no país de Oswald de Andrade.
Esse algo mais de JM: ele é também um antiescritor.
E não por uma disseminação de “antis” sem distinção, pela moda individual de alguém de ser contrário: não, no seu caso, ser antiescritor é uma consequência lógica de sua atitude primeira: anti-mitólogo, logo, antiescritor.
Porque o escritor é o enredador, aquele que faz uma armadilha para pegar alguém que abra a obra (ou de algum modo entre em contato com o texto, o tecido, a trama, a teia - o livro). No entanto em JM (oroboros) tudo é livre, não há trama.
A antiescritura mautneriana é um dos três vértices de um triângulo fundamental que faz dele o grande continuador da proposta de Oswald de Andrade no universo brasílico.
A inteligência brasileira tem sofrido ao longo de nossa história inúmeros atentados, por causa do interesse dos países do primeiro mundo em que o povo brasileiro viva na ignorância e conceda com todo o tipo de espoliações e genocídios de que temos sido palco e atores há quinhentos anos.
Um dos lances mais importantes desses atentados contra a nossa cultura é toda a confusão e desinformação que se criam em torno de Oswald de Andrade, de suas ideias e de suas produções. Desinformação (exemplo: Oswald seria um dândi humorístico, o mito do poema-piada[85] etc.), censura (o caso, por exemplo, de O Santeiro do Mangue), perseguição (intelectual, política, policial - como quando os estudantes de direito empastelaram o jornal que Oswald escrevia com Pagu, tentando linchá-los, e estes dois é que foram presos “por perturbarem a ordem pública”), campanha de silêncio etc.
A difusão nos anos 90 de uma “redescoberta” de Oswald (que na verdade se deveu, a partir dos anos 60, em grande parte a Zé Celso, os Campos e Caetano) faz parte da campanha de diluição e banalização (a tv anunciando-o como “o primeiro multimídia”, quando esta expressão já está tão surrada e ligada a todo tipo de geleia cultural): assim qualquer letrista ou escritor é facilmente rotulado de “oswaldiano” e “antropofágico” como um elogio fácil, vazio e descartável para bobagens sem o crivo e a profundidade dos textos de OA (coisa parecida acontece com “carnavalização” e “polifonia”, dois conceitos que Bakhtin criou e com os quais leu as obras de Rabelais, e que, hoje em dia, juntamente com “antropofagia”, são utilizados sem o menor critério para etiquetar qualquer coisa).
No entanto, pretendo demonstrar que há três vértices que sustentam o pensamento de OA, e que JM é um dos raros no Brasil que toca esses três vértices com a mesma agudeza.
São eles:
  1. A antropofagia estética - a antropofagia é o princípio que embasa toda a produção literária de OA; sua antiescritura, sua invasão de gêneros e de prosa/poesia, sua antiliterariedade: o texto de OA pula da página e põe-se em pé, fragmentário, plural, polissêmico, e realiza com rara eficácia o ideal de “obra aberta” de que fala Umberto Eco (e, cronologicamente antes dele, Haroldo de Campos), dando a sua versão original a muitas propostas artísticas da contemporaneidade.
  2. A antropofagia política - outro princípio que surge do caldeirão de lutas, confusões, culturas e contradições do terceiro mundo (expressão que marcou época, e que, juntamente com o fim da União Soviética, foi substituída por “países periféricos”; gosto de utilizá-la em parte como zombaria, “países periféricos” consegue ser ainda pior e mais fascista, e também com um outro sentido, de terceira via, “terceira margem”, além do binário e das dicotomias; por outro lado há um perigo aí talvez ainda maior, o de uma leitura hegeliana, que nunca poderia sair do binaristo euroariano culturocêntrico, e que vai sempre considerar essa terceira coisa como subproduto e epifenômeno das duas primeiras; não há termo isento de racismo e ódio econômico na geopolítica mundial atual).
  3. A antropofagia filosófica - e que seria melhor dizer ontológica, já que o filosófico engloba o estético e o político - é uma visão muito semelhante à dos magos, dos alquimistas e dos filósofos pré-socráticos[86]. OA e JM veem ser é plural e metamorfo, não para de desaparecer e aparecer, uma eterna produção e consumo eterno, onde a única “lei” (pura abstração num mundo de concretudes tão contingentes) é (não ter lei): a devoração.
Damos a palavra ao próprio Oswald:
Tendi e tendo cada vez mais para uma filosofia que chamo de filosofia da devoração. A vida é devoração pura e só há uma conduta a seguir: o estoicismo. É verdade que outro conceito da existência divide a humanidade. É o conceito messiânico e salvacionista. Os que se enfileiram debaixo dessa bandeira são os que acreditam que há qualquer coisa a salvar dentro deste mundo ou fora dele. O primeiro pensamento é que presidiu a vida das sociedades primitivas tão superiores às sociedades civilizadas. Estas servem-se do messianismo para criar as servidões do corpo e do espírito e as ilusões de toda a espécie.[87]
O homem é, para Oswald, uma pobre besta vaidosa, impedida de pensar pelas inúmeras amarras devidas à dolorosa e mórbida fantasia da posse e da importância pessoal. Tudo é desigualmente desimportante neste universo da devoração, não há coroamento criacionista, o homem não representa nada, nem deus representa, nem o animal. Não há evolução, pois não há um estágio melhor para onde evoluir, e a tão decantada razão humana, capaz de criar ideias e conceitos, não é melhor que a teia da aranha, uma boa ideia, mais eficiente e complexa do que muitas de nossas teias.
O homem produz teias para prender a si mesmo, é geralmente um triste, um curvado, um rancoroso. Mautner fala em “Cidadão-Cidadã” da “muralha dos ódios, dos preconceitos, das intolerâncias, das tiranias, das ditaduras, dos totalitarismos, das patrulhas ideológicas e do nazismo universal[88]”.
O homem é “logocêntrico”[89], está centrado no logos, no conceito de centro, de “justa medida” que “justamente” corrige, ordena, subjuga, destroi[90].
Leiamos ainda Oswald antropófago político:
Direita e esquerda são termos que não representam mais nada. Perderam toda a significação que outrora lhes era emprestada, não exprimem mais as características anteriores, de ideias e ideais. O que prevalece em nossos dias é o canhoto político, que faz com a mão esquerda o que deveria fazer com a direita e vice-versa... Sou por uma revisão geral dos conceitos e terminologias anteriores à guerra[91]. É preciso estruturar uma nova terminologia para o socialismo, que é a única doutrina que prevalecerá no final[92]. Não importa se da “direita” ou da “esquerda”, como atualmente são enquadradas, dentro de fórmulas obsoletas. No fundo é sempre um retorno ao primitivismo...[93]
Considerações sobre o suposto “messianismo” de JM: pode-se argumentar que Mautner não abraça o pensamento artificialista no estilo de Clément Rosset ou trágico da filosofia de Nietzsche, e que dentro da divisão que OA estabelece entre pensamento antropofágico e messianismo JM estaria perfilado a este último, pois se afirma a toda hora um “seguidor de Jesus Cristo” e aposta numa “melhoria” da sociedade através da crítica e das previsões de Karl Marx. “A Bandeira do Meu Partido” serve como exemplo de messianismo social, já como argumento a favor do messianismo espiritualista de JM podemos citar o “hino evangélico” por ele composto, “Yeshua Ben Joseph” [94].
A fusão de marxismo e cristianismo não espanta, já estava em Bloch e inspirou a teologia da libertação (à qual Mautner dá vivas em “Corações-Corações-Corações”, cantando e falando: “Foi um judeu alemão internacional/Quem disse que a religião é o coração/De um mundo sem coração/O que é diferente de dizer/Que a religião é o ópio do povo/Viva a teologia da libertação!”, o judeu alemão é Marx, o outro, o do ópio, é Stalin). Outra fonte inspiradora neste sentido é Dostoievski, autor de Humilhados e Ofendidos,e que faz o personagem assassino de Crime e Castigo se ajoelhar aos pés da prostituta e dizer que estava se ajoelhando aos pés de toda a humanidade.
No entanto devemos levar em conta que nenhum cristão ortodoxo aceitaria a visão de Cristo que tem JM, assim como Cristo não aceitaria a religião que fabricaram em seu nome. As mesmíssimas coisas podem ser ditas substituindo o nome por Karl Marx.
Há ainda a identificação de Jesus com o dionisíaco e com o taoísmo:
Um dia descobriram uma estátua de Cristo num porão e começou uma nova renascença. Os sábios da época se equivocaram e confundiram Jesus com Lao Tse e com Dionísius.
Ou então a potência fáustica judaica:
/.../ e Jesus guia do meu coração. Ele também, filho de Israel, internacionalizou a mensagem. Kafka, Bob Dylan, Gingsberg, Freud, Einstein, Marx, Lévy-Strauss e eu. Só que comigo vai o que de melhor aprendi nascendo no Brasil, coisas que a maioria dos meus patrícios ignora.[95]
“E eu me deixo influenciar/Por tudo que existe por aí”:
OA e JM são nossos dois escritores/poetas trágicos, na acepção pré-filosófica do termo.
Oswald escreveu no “Manifesto Antropófago”:
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.
De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question.[96]
O trágico, também no sentido dos filósofos pré-socráticos, ou do cantor negro de blues que disse: “blues é quando o seu carro enguiça, de noite, num lugar deserto, blues é o inevitável”.
E foi Mautner quem percebeu que “a filosofia negra é tão importante quanto a filosofia grega”. E nos diz ainda:
P. S. O KAOS É A LUZ E A HARMONIA. NO KAOS AS COISAS SÃO LIVRES TREMENDAMENTE LIVRES E SÃO O QUE SÃO E TUDO É UMA DANÇA TRÁGICA E ALEGRE; É A HARMONIA RADICAL E INTRÍNSECA DOS CONTRASTES! ESCREVI ESTE P. S. PARA EXPLICAR O KAOS ESCRITO NOS POSTES E PAREDES E OUTROS LUGARES. O PÁSSARO É A RESSURREIÇÃO POIS QUEM VOA É PÁSSARO, QUER SUBIR AO CÉU E AO MESMO TEMPO É UMA ALMA PENADA QUE QUER SE SALVAR E QUE SOMOS NÓS.[97]
Este trecho, do romance Kaos, também serve como exemplo do modo de compor o seu trabalho, que inscreve Mautner na mesma antropofagia estética de Oswald.
O livro Kaos, classificado como romance, abre-se em narrativas que se encontram e se separam, e que às vezes ressurgem e sugerem a mesma história, de Jorge, o personagem nem sempre narrador, e outras vezes supõem-se contos, histórias independentes.
De repente a prosa, sem interromper seu fluxo rítmico e imagístico, vira poesia na acepção tradicional do termo - versos, linhas cortadas, que não ocupam toda a página[98] - que podem ser ou não letras de música, além de aparecerem cartas para mulheres, panfletos que foram realmente (segundo o narrador o afirma[99]) panfletados, discursos, delírios, crítica, filosofia etc.
Assim foram os panfletos. Alguns erros na feitura deles mas nada de grave. Por que só em alguns dos segundos panfletos é que saíram palavras atrás? Resposta: é porque acabou o carbono, faltou material[100], não havia dinheiro nem tempo para comprar o carbono. Falha técnica. /.../ Depois da ação, da pintura e da distribuição dos panfletos fomos todos até a casa de Mário.  Lá estava o psicólogo e grande amigo meu me esperando com um sorriso louco e disse: “- Então você passou para a práxis hem?” E eu disse: “- É”.[101]
Vigarista Jorge, romance (?) em abismo infinitesimal (isto é, não infinito sem fim na mesma linha, uma ideia teológica, mas infinitesimal como o cálculo, algo que tem fim sim, só que a gente nunca chega a ele, por causa do movimento - e esse labirinto imbricado de narrativas - uma introdução com um conto que cai num outro que se torna confissões que acabam virando uma outra narrativa ficcional, onde surge uma carta dentro de outra carta etc. - sugere mesmo o movimento - aliás, é ele mesmo quem nos diz: “Sou alguém barroco”[102]), a intromissão de uma carta, rasgando a “narrativa” sem rasgar o texto:
Faço bem em copiar cartas de amor? Sim, minha literatura é vivencial. Algumas eu copio outras não. Mas para ilustrar muita coisa a seguinte carta servirá. Fotografias de cada segundo de uma tempestade. /.../ Volta o turbilhão, a lenda, a névoa, o misticismo! Renovado. Mas eterno!

CARTA

Relú, teus olhos são lindos que nem duas rosas. Eu vi a tristeza nadando dentro deles. Todo mundo tem tristeza nos olhos, mas a tua me pareceu tão grande! Por quê?[103]
E a carta vai seguindo por oito páginas, acaba, o poeta se despede, assina, recomeça, vira manifesto, fala da Trilogia, e acaba virando história, para depois voltar a ser carta de novo:
O QUE É O AMOR? O QUE É? O QUE É? Ora, é isto que a gente sente e fica louco e já então não sabe o que fazer nas próximas vinte e quatro horas ou sabe muito bem mas não pode porque porque... ouço o Ray Charles e ele canta com a Betty Cartes takes two to tango. Estranho mas carta de amor está virando história. E era uma vez um escritor que escrevia muito e que quando se apaixonava escrevia da mulher que gostava /.../[104]
...e vai por aí, a confissão vira historinha, a historinha vira confissão, de repente a poesia, e o eterno personagem Jorge, na praia, no mar, na chuva, chorando, sozinho, discursando, messias, pregando a revolução.
Ora - poderia dizer o leitor -, que me importa? Eu quero diegese! Eu quero fabulação! Quero tempo e espaço, estado e eu líricos (ou personagens e narrador, ou um ou outro)!
Que me importam as vacilações e angústias ingênuas de um eterno personagem cabotino autoproclamado gênio, chamado Jorge?
E nós outros perguntamos: - Não seria essa leitura bastante ingênua?
Não haveria fundamentalmente um preconceito arraigado e subconsciente determinando nossos julgamentos enquanto indivíduos do “mundo periférico” a respeito de nós mesmos, de nosso mundo e do que não o é?
Explico melhor: não seria a vergonha não declarada de ser brasileiro que faz com que nós pré-julguemos como fraqueza certas coisas estranhas, certos “homens incertos”[105] cujas artimanhas concluímos apressadamente como sendo falta de domínio da arte, quando pode ser que seja excesso, quando, não fôssemos nós brasileiros e brasileiro o nosso autor[106], talvez suspeitássemos de mil significados ocultos e de outras intenções?
Ao sair do Brasil fugindo da ditadura militar, como o retorno da perseguição histórica do povo judeu e do povo cigano, e do genocídio nazista que fez com que ele nascesse no Brasil, Mautner nos EUA vai encontrar a capital do capitalismo mundial, e as imagens cotidianas que redobram todos os seus delírios visionários.
Da fusão desta nova experiência com o tipo de literatura que ele já escrevia nascem os textos de Fragmentos de Sabonete, que dão um passo adiante no seu projeto permanente de escritos do Kaos, trazendo sua angústia, sua revolta, sua alegria, sua indiscernibilidade, sua eterna adolescência e sua afirmação nietzscheana, e mesclando-as com a nova volta da espiral, de sua vida e da vida da humanidade, os EUA são a imagem do mundo futuro em seu claro-escuro, um pouco como a experiência de Monteiro Lobato, e muito como a de Sousândrade, que, juntando-a à sua genialidade de maior poeta romântico brasileiro, vai produzir O Guesa, o homem latino e sul-americano em seu embate de amor e ódio com o povo que usurpou o nome do continente para si.
Para Mauter, como já tinha sido para Sousândrade, o exílio nos EUA vai trazer o encontro dos dois oceanos, o Atlântico e o Pacífico, e, como acontecera a Oswald de Andrade ao voltar da Europa, a (rede)scoberta do Brasil.
Há ainda muito de Macunaíma nesse personagem Jorge, quando ele cruza os dois trópicos e a linha do Equador e avança sobre a metade norte de nosso continente:
O futuro é um pássaro que vem, já cansado de ser avião.
É a humanidade cristalizada numa pílula imortal. É o futuro do Brasil, tão falado e vindouro. Esta sensação que o Brasil provoca de um constante vir a ser, vir a acontecer, é vertigem, embriaguês, abismo de delícias.
Que Europa pode ter isso? Que Ásia? Nem a África, que tem peso negro e faraós a lhe pesar. Nós somos os filhos inocentes de velhos assassinos e nosso balbucio é o samba.
Nosso terremoto é o carnaval.
Dionisius foi encaixotado na Grécia e mandado para cá, onde se casou com uma índia e virou índio.
Dionisius teve uma filhinha e costumava passear com ela sob as sombras das árvores gigantescas do Amazonas. Colhia orquídeas para ela e cantava canções trágicas.
Ao conhecer uma linda índia cantadora foi que Dionisius inventou o carnaval. Os dois se amaram durante muitas noites de lua ao lado de vitórias-régias. Foi depois desse amor com a índia Iremi que Dionisius inventou o carnaval carioca: mistura de cortejo dionisíaco e festa de índio, mais algumas recordações africanas e frenesis de êxtase heleno.
Dionisius amou muito tempo a índia Iremi e os dois passeavam de mãos dadas pela floresta amazônica, ensinando à pequena Arará, filha de Dionisius, todos os complicados nomes de plantas e jacarés e orquídeas.
/.../
As imagens se confundiam, as noivas e as luas, a saudade era feita de barro antigo e adolescente, havia um dançarino que interligava as imagens e que dançava segurando uma tocha. Caía, ininterrupta, uma chuva.
Foi aí que eu encontrei o duende que discutiu comigo sobre tantas coisas - e com tamanha inteligência - que eu adormeci. E foi nesta noite que fui afogado nas águas de Dona Janaína.
Meus cabelos viraram caracóis e eu cavalguei os peixes.
Voltei à tona num lago do México e foi com os duendes que eu falei, mas o tédio me dominava e uma incrível vontade de ver televisão se apoderava de mim.
Foi só aí que eu percebi o quanto já havia mudado.
Percebi isto olhando distraidamente para uma mosca que continuava a sobrevoar aquela flor com zumbido de verão.
Toda a lógica foi escrava da precisão, mas quando chegaram os impressionistas e Georges Bracque com seu cubismo clássico, houve um estremecimento e até os gatos de Paris miaram seu desespero.
No entanto, as palmeiras do meu país continuam falicamente a me atrair como trombas de elefantes, como obeliscos vegetais, quentes, tropicais.
Aurora, aurora, repito teu nome mágico, momento do sol novo, eu andando pela manhã, indo ao colégio em algum lugar do Brasil, onde as cores e as araras eram tão comuns como as palmeiras e o mar. Existe um mar atlântico no meu coração. Lambuzado de água de coco, azeite de dendê, embrulhado em papel celofane e com cheiro de açucenas. Rio de Janeiro é o lugar mais bonito do Universo. O fascínio anda pelo ar e a tragédia existe em sua pureza helênica, tupi-guarani, corte querida de Dom João! Ah, doce embalo das palmeiras a requebrar, dengosamente, sobre a praia iluminada pelo sol dos trópicos, beijo direto de Deus e dos deuses, dizendo que esta terra foi escolhida![107]
Já tratamos da literatura confessional da geração beat (e que também pode ser encontrada em seu epígono cantor e compositor folk norte-americano): On the Road de Jack Kerouac, Naked Lunch de William Burroughs e Tarantula de Bob Dylan. Ainda que seja uma produção que em seu próprio país não é bem aceita, pelo menos já chegamos a uma situação em que alguém que a acuse de besteira ou loucura fica ele mesmo suspeito das classificações que lhe impõe.
E o que temos aí? Que espécie de memória é essa, que espécie de passado repete, tão estranho, tão suspeito e inquietante?
Vamos sugerir adiante algumas respostas em conceitos da filosofia de Henri Bergson. Por agora, vamos considerar esta espécie de precursor da geração beat, figura fundamental da literatura do século XX, Henry Miller.
Em Henry Miller temos o homem que é sufocado pelo força do escritor, que aparece à força, não provocado, não querido. Só que o escritor é engolfado por uma força muito mais poderosa do que um reles homem ou um mero escritor: o pensador.
Há anos atrás eu escrevi: “O pensador, o... filósofo? Talvez sim, talvez não - não tem importância.”, pois eu ainda associava o pensamento puro com a filosofia propriamente dita, e fiquei realmente na dúvida se Henry Miller seria um filósofo, já que suas páginas, além da mais deliciosa ficção (ou memória, outro problema de sua obra, e também da de JM, como já mencionamos), apresenta o pensamento mais selvagem e criativo. Muitos alunos meus insistiram que Henry Miller é filósofo. A questão pode estar em aberto. Quais são as fronteiras entre filosofia e literatura? Seriam elas precisas? Giorgio Colli, no livro que citaremos adiante, O Nascimento da Filosofia, mostra o quanto ela está associada a uma prática literária, pela qual inclusive se lamentava Platão com sua saudade do sábio micênico no mito de Toth. Gilles Deleuze e Félix Guattari estudam as três formas de pensamento: filosofia, ciência e arte. Deleuze, além de outros livros, “Três Novelas” em Mil Platôs, Kafka - por uma Literatura Menor e O que é a Filosofia? com Guattari, e Apresentação de Sacher MasochProust e os Signos e em parte da Lógica do Sentido nos brinda com uma última obra exclusivamente de teoria literária, Crítica e Clínica.
No entanto estes dois pensadores fazem questão de mostrar que as três práticas de pensamento se separam muito nitidamente, a filosofia é plano de imanência e trabalha com conceitos, a ciência é plano de referência e trabalha com functivos e a arte é plano de composição e trabalha com afetos e perceptos.
Miller é um pensador na medida mais radical e precisa do termo, muito, mas muito miais profundo e complexo do que as “bestas louras”[108], racionalistas radicais, que reduzem a razão à recognição, na linha de Kant, Hegel e Habermas (e Miller também é de descendência alemã, um americano por acaso, como Mautner; assim, quando Miller faz suas críticas a Kant ou se aproxima de Nietzsche, é dentro de uma tradição cultural que ele se encontra e se coloca, e de uma herança racial, de novo como nosso autor), um pensador muito mais potente e complexo do que eles.
Como?! De que jeito?! Miller trabalha com a intensidade, a física das intensidades ou física do ímpeto, que existiu na Antiguidade e na Idade Média, e que foi sufocada pela física clássica, do mundo dos objetos discretos[109].
Em Miller não há metáforas; bocetas que são ostras, bichos, outras em relação às mulheres, ossos nos pênis, pessoas que são aranhas e devoram as outras, o crazy cock (“caralho louco”) funcionando como uma verdadeira sonda ontológica, um pseudópode que não tem forma nem tamanho definidos, que se alarga e estica segundo as circustâncias, para estabelecer ligações intensas entre dois corpos, ou dois campos energéticos (e o dois é sempre potência n, quer dizer, é sempre muito mais que dois, como na cena de amor no deserto de Zabriski Point de Antonioni).
Miller escreve sobre o corpo, não sobre o corpo coisa, pedaço de chumbo que funciona, mecanismo burro e escravo das funções. Ele fala do corpo enquanto campo de intensidades, o corpo máquina do tempo, do tempo puro, não o tempo cronológico, e sim a pura diferença, a pura dessemelhança.
E tal conquista sobre-humana Henry Miller conseguiu através de uma mudança em sua maneira de viver, através da criação de novas formas de vida, de novos afetos. Se ficasse enterrado na marasmo e no tédio de uma vida segura, medíocre e normal, já sabida de antemão, ele não poderia experimentar novas e diferentes intensidades em seu corpo, em sua consciência.
Ele não poderia experimentar.
Em muitos aspectos com ele se encontram Oswald de Andrade e Jorge Mautner.
Leiamos as primeiras linhas de Trópico de Capricórnio de Henry Miller (o qual, segundo ele mesmo afirma, em Uma Noite em Newhaven, é, assim como Trópico de Câncer, uma região intensa do corpo) a respeito do corpo sem órgãos[110]:
Depois que nos livramos do fantasma, tudo segue com infalível certeza, mesmo no meio do caos. Desde o começo nunca houve senão caos: era um fluído que me envolvia, que eu aspirava através das guelras. No substrato, onde a lua brilhava firme e opaca, tudo era fluente e fecundante; acima dele, era confusão e discórdia. Em tudo eu via logo o oposto, a contradição, e entre o real e o irreal via a ironia, o paradoxo. Eu era meu pior inimigo.[111]
Vejamos agora o primeiro “capítulo” de Memórias Sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade:
Jardim desencanto
O dever e procissões com pálios
E cônegos
Lá fora
E um circo vago e sem mistério
Urbanos apitando nas noites cheias
Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.
- O Anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser a mãe de Deus.
Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido vermelhava.
- Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não têm pernas, são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que pernas nas mulheres, amém.[112]
Em todos os textos de Oswald ele estaria, segundo alguns críticos, que o acusam de não ter capacidade criadora, como Wilson Martins, usando suas memórias de forma direta ou indireta, nunca fabulando essas histórias diretamente pirateadas de sua experiência; os romances, as peças, os poemas, etc., etc., etc., tudo pirataria de um escritor sem imaginação, que captura fatos e peripécias de sua vida para a literatura pela falta de poder inventá-las.
O que torna fraco e idiota (no sentido grego, de só se preocupar com seu próprio umbigo) muito de nossa crítica de arte (e consequentemente a literária) é a maldita herança hegeliana que prescreve como achado o pensamento da “falta”. O homem para Hegel é não-ser, se instaura como não-ser, quando acede ao signo, que é outro em relação ao ser da natureza, o homem deseja algo além de coisas para sua subsistência, ele deseja o desejo do outro, ele deseja signos. A falta do alimento pode ser suprida, por isso os outros animais não saem do ser, eles têm consciência reta. Mas a falta da falta, o desejo do desejo, o signo do signo, isso não tem complemento, não tem objeto, não tem fim. É um pensamento bonito e que nos diz muito, a nós, habitantes da contemporaneidade. O seu problema é que, ao instaurar em sua dialética a potência do negativo, ele faz, conforme a crítica de Nietzsche, uma imagem escrava do senhor, supõe que alguém se torne senhor pela negação do outro. Esta crítica é complexa e estamos apenas citando-a aqui, para aludir ao fato de que a mania de interpretação e certos reducionismos (biográficos, psicológicos, historiográficos, sociológicos etc.) de origem hegeliana da crítica literária, que buscam na arte uma função e em seu motor a falta, a nosso ver são contra a arte, nada nos trazem de novo além do que nós pensamos que sabemos, e perde totalmente o sentido ativo e criador da obra de arte[113].
Pensando pela falta, justamente o que se perde é a força que ali passa, a força ativa, o diferencial daquela obra.
A memória em Oswald de Andrade (de uma forma até então nunca (ou quase nunca (e quase ficando por conta de marginais como Sousândrade e Qorpo Santo)) tinha sido realizada na literatura brasileira) não é capital semiótico passivo ou coisa morta e parada representada em algum armário cerebral e que se põe e dispõe no papel.
Como Henry Miller, Oswald usa a memória como uma matéria prima explosiva que se cria e recria em novas expansões através da virtualidade do corpo.
Seus textos não buscam o que efetivamente aconteceu, mas o que poderia ter acontecido - e dizer assim é fraco. Eles buscam a potência do acontecimento.
Uma transa é uma transa, e falar dela como uma transa é representá-la como algo do mundo conhecido, das imagens pré-fixadas para o conhecimento da nossa época (o sentido que hoje têm, e do qual o homem não consegue se libertar, e de onde provêm os significados mais diversos).
Porém falar dela em termos fantásticos é sugerir o acontecimento como um encontro de forças, de puras forças sem representação, que não nos prendem a ou não traduzimos por imagens do nosso reconhecimento.
É pensar o acontecimento.
Este é o ponto em comum entre JM e OA, passando por Henry Miller. E é ele mesmo que faz a raridade da descendência do antropófago, tão pobremente entendido por criadores e críticos.
JM escreve sem parar suas memórias, contudo não são as memórias pequenas de algum velho impotente e otário que quer justificar o injustificável de uma vida absurda e sem sentido, e sim a brincadeira com os vários sentidos da vida, memórias de jovem[114] que não se ligam apenas à matéria do ato factual “realmente” ocorrido, mas também (e tanto) à matéria espiritual do que nunca ocorreu, “memórias sentimentais” de um “homem sem profissão”, ou o “vigarista Jorge”. Como os “fatos memoráveis” de Carlos Cataneda, de que trata em seu novo livro The Active Side of Infinit. A Nova Era tem três grandes artífices-arautos: Gilles Deleuze (que aprendi com Cláudio Ulpiano), Carlos Castaneda e Jorge Mautner.
“Orquídea negra”[115] é uma obra trágica, a começar pela melodia wagneriana mesclada com blues, e pelo arranjo e interpretação grandiloquentes que lhe deu a gravação de Zé Ramalho.
Também pela forma original como aí é tratado o tema do amor. O eu lírico está com “a morte na alma” (verso de uma das mais oswaldianas de suas canções, “Pipoca à Meia-noite”). A pessoa amada é chamada de “orquídea negra”, que é um signo de raridade (já que a orquídea negra não existe, ou pelo menos não se encontra no mercado[116]; fiz a pesquisa em várias floriculturas, inclusive no Mercado das Flores do Rio de Janeiro, e todos diziam não conhecer semelhante vegetal), de beleza (a orquídea, qualquer orquídea, por si só já é rara, e cara, e sempre linda), de sexualidade vampiresca (as flores, como todos sabem, são os órgãos genitais das plantas, e as orquídeos têm seu nome deriados da palavra “testículos” em grego, pelo formado de suas raízes[117], e, ainda, a orquídea, segundo uma errônea crença popular, seria parasita[118]) e do terror do desconhecido e do inconsciente (orquídea negra).
A flor em questão “brotou da máquina selvagem”. A selva é vista como uma máquina, numa concepção trágica de artificialismo, de anti-natureza, que nos faz pensar em Clément Rosset[119] e Félix Guattari[120].
O barroco perpassa todo o texto, com parelhas de versos em tensão, e o eterno conflito entre tristeza e morte de um lado, e vida e tesão do outro, e a imagem do “anjo do impossível”; há o estranhamento do anjo plantando a flor como “nova paisagem”.
O estranhamento é um recurso utilizado quase que permanentemente por JM, em todas suas canções, poemas e textos em prosa. Não é possível, por muito redundante, ficar apontando tal efeito em todos os momentos em que ele aparece, porém é preciso levar em conta que ele está o tempo todo lá, o estranhamento. Isso é diferencial de qualidade em literatura[121].
Tal poema foi aqui mencionado pelo quanto é oswaldiano, apesar de não o ser de forma óbvia, e é do óbvio (do lugar comum, do reconhecimento da massa) que a teoria pretende fugir, ou alçar-se a algo mais que isso.
“Pipoca à meia-noite” trata-se de um samba cheio de malícia, que começa como blues, e depois dos versos “É chegado o momento/Do despedaçamento/Final”, que nos mostra a conexão entre o sentimento do blues e Dionísio, que é um dos deuses do amor e da alegria que sofre sparadigmós (despedaçamento), passa imediatamente a um samba, justamente no verso que diz “Ainda ouço aquele rock na vitrola”, como um novo dado do trágico e do humor, a continuidade do Dionisíaco. Coisa semelhante ocorre em “Tá na cara”, onde à morte do playboy rico opõe-se a vida do operário de básico instinto, os dois sendo superados pela nova consciência mestiça brasileira.
A anotar ainda em “Pipoca à Meia-noite” a malícia da referência ao uso desbundado das drogas (aliás “desbunde” é uma palavra geralmente ligada ao estado de consciência que JM vive e produz, diferente de outros artistas engajados ou até experimentais, como Jards Macalé e Itamar Assunção; um cantor também considerado “desbundado” e que é da maior importância e parece com JM em muitos aspectos de sua postura e cultura pop, além de suas vivências nos EUA e relações com artistas como Janis Joplin, é Sergei[122], nome que chocava nos anos 70 por ser russo, quando havia tanta paranóia com o comunismo, e por soar como um trocadilho com “ser gay”; normalmente faz-se a separação entre arte “engajada” e arte “desbundada”; em Mautner temos a clara fusão das duas): “Altas transações e muita toca”, “Um espelho por dia/É a sua quantia/Normal”, que ainda lembra o narcisismo humano e as histórias de fadas do tipo Branca de Neve; e ainda o duplo sentido de conotação sexual, “Você saindo tão gracinha da escola/Diretamente pros meus braços pra me beijar”, “Depois cinema/E pipoca à meia-noite”, “Se segura meu benzinho/Que eu vou cair de boca”.
O trágico é o grande ponto de fusão entre JM e OA[123], o trágico que se expressa na prosa memorialista que lembra um tempo que nunca existiu, que está em versos assim: “E os ventos arrastam vendavais/Do que foi do que seria/Do que nunca volta jamais”, ou ainda em versos como estes, de O Escaravelho de Ouro[124] de Oswald de Andrade (onde o futuro de sua filha se confunde com sua própria desdita - e ele prediz um futuro que já passou e que, no entanto, nunca aconteceu - mas que acontecerá):
o hierofante

Não há possibilidade de viver
Com essa gente
Nem com nenhuma gente
A desconfiança te cercará como um escudo
Pinta o escaravelho
De vermelho
E tinge os rumos da madrugada
Virão de longe as multidões suspirosas
Escutar o bezerro plangente

epitáfio n° 1

Sangras em cantos
Te arrancaram a gravata “papillon”
A flor do peito
Como a um crupiê vendido
E diante do mundo
Leram a tua desonra
Porque não descerraste as maxilas do coração

buena dicha

Há quatrocentos anos
Desceste do trópico de Capricórnio
De tábuas carbunculosas
Das velas
Que conduziam pelas estrelas negras
O pálido escaravelho
Dos mares
Cada degredado era um rei
Negro insone incolor
Como o barro

Criarás o mundo
Dos risos alvares
Das colas infecundas
Dos fartos tigres
Semearás ódios insubmissos lado a lado
Há um enorme orgulho de sua grandeza e de seu destino de pensador solitário e fundador, ao lado da profunda melancolia desses versos, afinal o poeta se vê sangrando “em cantos”, impossibilidade de “viver/Com essa gente” e com qualquer outra, cercado pela desconfiança como por um “escudo”, portador de um mistério cósmico e existencial que ele chama “escaravelho”, e que se vê ameaçado por nosso status quo capitalístico-fascista (“Leram a tua desonra”), então ele “Pinta o escaravelho/De vermelho” numa tentativa de tingir “os rumos da madrugada”, e vêm “de longe as multidões suspirosas/Escutar o bezerro plangente”, para lhe arrancar a “gravata ‘papillon’” porque ele não quis “descerrar as maxilas do coração”. Assim, cercado por imbecis e assassinos, por “risos alvares”, “colas infecundas” e “fartos tigres”, o poeta preserva a sua sina de portar o escaravelho e anunciar a alvorada, desagradando e sendo marginalizado pelos lobos e pelos cordeiros, “Semearás ódios insubmissos lado a lado”, e como castigo terá o ostracismo na multidão e a incompreensão truculenta, “Não terás os carros dos triunfadores/Nem o choro dos escravos”, como no Mito da Caverna de Platão, o ódio dos homens ao pensador é só “Porque tentaste libertar os homens”, e a cada porta fechada, a cada “máscara da negação” que “Estacará diante de ti” ele continuará lutando “com a vida face a face/Sem subterfúgios nem dolo”, sabendo tragicamente de antemão que o que ficará serão os epitáfios de sua “buena dicha”, apenas como o “eco” de sua “queda”, pois ainda por hoje em nosso mundo tão cheio de potencialidades quem manda é a sub-humanidade, de novo “Venceu o sistema de Babilônia/E o garção de costeletas”. Duas observações: uma sobre a má vontade de nossa “intelligentsia” (por que russo? melhor seria dizer, e a ironia não seria menor, “intelligence”, ou “burrítsia”) ao se recusar a ler verdadeiramente os poemas e os textos em prosa de Oswald, que, como aqui demonstramos, são cheios de significado e de grande profundidade trágica (e sabemos que nossa leitura é apenas uma sugestão possível, as leituras de um bom texto são inesgotáveis), os “donos da vida” pareciam e parecem não querer ver o dedo na cara que Oswald lhes põe; outra sobre como estes versos podem também ser aplicados ao nosso autor em tela, desde a posse do escaravelho ao tingimento de vermelho, passando pelas multidões que vêm escutar o bezerro plangente; ou, o Brasil não evolui?[125]
Logo, não é possível estabelecer uma filiação entre Mautner e Oswald. Dois autores trágicos, tão raros, dentro da obscura e tacanha produção cultural brasileira[126], são, por isso mesmo, por trágicos, anti-genéticos.
A vida para os trágicos é uma “máquina selvagem”, aquilo que Deleuze e Guattari chamam “rizoma”.[127]
A tradição ocidental pensa as coisas pelo modelo arborescente ou da árvore, raiz, tronco, do qual saem galhos e galhos dos galhos, até chegar às folhas, flores e frutos.
Deleuze e Guattari pensam tudo se dando sob a forma de rizomas, emaranhados caóticos de entroncamentos, negando o tronco, a raiz, negando o um. Pensar sempre pela equação n - 1.
Logo, nada mais ridículo do que pretender que Mautner seja um dos galhos do ilustre tronco brasileiro Oswald; nada mais anti-Oswald, nada mais anti-Mautner (e anti-Proteu).
Na música “Iluminação” Mautner diz:
E eu me deixo influenciar por tudo que existe por aí
Homem aranha do gibi, Bob Dylan, Zaratustra, Dorival Caymmi
E o meu xará que é Jorge Ben[128]
Nestes versos fica explícita a falta de “influência” (pois o autor se deixa influenciar “por tudo”), e uma postura antropofágica, da antropofagia estética que devora tudo e deglute com uma nova formulação, para os devorados e para o devorador inclusive.
E na mesma música, os versos que denotam a antropofagia filosófica (ou ontológica) de nosso autor:
Mas eu não ligo pra ninguém
E não tenho opinião[129]
Mautner em atitude filosófica recusa a dóxa ou opinião.
Ainda na mesma canção, podemos observar a sua antropofagia ética e política (e falaremos mais sobre isto no próximo capítulo):
Tenho dó é dessa gente
Que ainda vive no século passado
E ainda acredita em salvação
E com a virada do milênio eles agora, além de viverem no século retrasado, pensam e agem como se estivessem no milênio passado.
É notória a ligação entre o Tropicalismo de Gilberto Gil e Caetano Veloso e a Antropofagia de Oswald de Andrade. Aqui nós tentamos estabelecer a relação subterrânea que existe entre esta e o Movimento do Kaos com K de Jorge Mautner.
Qual seria então a ponte entre o Kaos e o Tropicalismo, se é que podemos falar nisso?
Mautner não foi do Tropicalismo, sua obra já estava madura quando aconteceram Caetano e Gil. Aparentemente, o Tropicalismo abriria as portas para a aceitação de Mautner, pois elevava de muitos e muitos graus a “temperatura informacional”[130] dos meios de comunicação de massa (e até da literatura impressa) no Brasil. Ao voltar de seu exílio, depois do golpe militar de 1964, Mautner traz na bagagem o filme feito com Caetano e Gil. Além disso agora é amigo e admirado pelos dois grandes poetas, que, ao retornarem eles também, falam de Mautner, escrevem sobre ele e gravam alguma coisa sua (além de parcerias que fizeram no estrangeiro).
No lp Temporada de Verão (depois de um longo e tenebroso inverno), gravação feita ao vivo na Bahia, com Caetano, Gil e Gal Costa, Caetano cita Mautner com bastante carinho em “Conteúdo”, e Gilberto Gil canta “O Relógio Quebrou” de Mautner (logo seguida da sua canção “O Sonho Acabou”, “O sonho acabou/Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhor/O sonho acabou/Foi pesado o sono pra quem não sonhou”, como que relacionando os dois, ele faz a onomatopeia de roncos e do alarme de um relógio despertador, cantando com ênfase: “O sonho acabou!”, mas o que fazer se “O relógio quebrou/Em cima da meia-noite” ou talvez “Em cima do meio-dia”?[131]):
O relógio quebrou
E o ponteiro parou
Em cima da meia-noite
Em cima do meio-dia[132]
Meio-dia que é a hora do despertar do espírito em Nietzsche.
Em Para Iluminar a Cidade de 1972, além do já citado texto de contracapa de Caetano, há uma parceria dos dois, “From Faraway” .[133]
A frieza e a angústia da experiência no exílio é reelaborada brilhantemente nesta canção antropofágica, não só por usar os signos do inglês e do jazz (com acordes jazzísticos e blue notes[134], no estilo de Billie Holliday, a quem os autores quiseram homenagear), como pelo estranhamento mautneriano do vocabulário clássico das canções pop de amor, o “strange thrill” de um corpo que sente, às vezes, o calor das estrelas dentro de si, e a fria chuva caindo em gotas; bem como pela pronúncia cigana com que Mautner canta o inglês da canção.
Notar ainda a aproximação fonêmica entre bad (mau), good (bom), sad (tristeza), e body (corpo), ressaltando, pela similitude sonora entre significados contrários, o efeito nostálgico e desolado da letra (bem como da melodia).
Gil grava também o samba “Duas Luas” (que faz uma velada referência ao mito de Lilith, a lua negra, uma outra lua que nosso planeta teria e que não poderia ser observada nem pelo homem comum nem pelo astrônomo, mas que os astrólogos levam em conta nos seus cálculos, e por estes ela realmente demonstra estar ali; “Duas Luas”, além de ser zen e mostrar a atitude do “vazio mental”, procurada nas tradições orientais e no xamanismo americano, e nos lembrar os “caminhos que não levam a lugar nenhum” de Heidegger, nos fala do matriarcado, pois Lilith foi a primeira mulher de Adão, que Deus substituiu por Eva porque ela não o quis obedecer, segundo a Cabala judaica) de Mautner, que aparece também em Fundamentos do Kaos [135].
 “O Rouxinol” é uma parceria de Gil (música) e Mautner (versos), com melodia de sabor oriental misturada a uma frase de composição de rock (a que tem os versos “Cantando rock com um toque diferente/Dizendo que era um rock do Oriente/Pra mim”)[136].
Mautner faz todos os devires que pode, sempre se metamorfoseando. Nesta canção, em “Samba Japonês” (Mautner e Jacobina) e “Bumba-meu-boi de Beijing” (Mautner) ele faz o devir oriental.
Mautner sempre coloca o oriente misturado com a América e a África (via a América): rock com o rouxinol, Bruce Lee, Kung Fu e Shaolin sambando e cantando em nagô e o bumba-meu-boi é de Beijing.
Não vamos nos deter na tola questão sobre se há ou não eminência entre estes criadores, mas acho que a tese de que, de uma forma quase imperceptível, o “poeta-usina”[137] Mautner alimenta muitos dos grandes criadores coevos pode ser levantada.
Todavia o mais importante é notar que esses poetas maiores de nossa língua, Caetano Veloso e Gilberto Gil, continuadores-diferenciadores legítimos do trabalho de Oswald de Andrade, ligam de formas latentes e manifestas o seu trabalho com o de Jorge Mautner.
A presença subversiva (e isto é poética e é também política) de Oswald de Andrade se espalha como um rizoma pela cultura brasileira, não fundando uma descendência, mas explodindo em formas enlouquecidas que superinformam nossas artes visuais (Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica, José Roberto Aguilar - e são apenas alguns exemplos importantes), nossa literatura (Darcy Ribeiro, que também vale para ciência social e prática política), nossa poesia (Campos, Pignatari, Torquato Neto, Arnaldo Antunes), nossa música (Villa-Lobos, Caetano, Gil, Tom Zé) nossa ciência (Mário Schenberg, César Lates) e nossa filosofia (Vicente Ferreira da Silva e Jorge Mautner, que é também poeta, romancista, artista plástico, cantor, compositor, instrumentista, ator e diretor de cinema, cumprindo dessa maneira mais abrangente o programa antropofágico).
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. /.../ Contra todas as catequeses. /.../
Só me interessa o que não é meu. /.../
Necessidade da vacina antropofágica. /.../
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. /.../
Contra as elites vegetais. /.../
Só não há determinismo onde há mistério. /.../
A alegria é a prova dos nove. /.../
Somos concretistas. /.../
A alegria é a prova dos nove. /.../
A nossa independência ainda não foi proclamada. /.../
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituição e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.[138]
Alguns exemplos do Manifesto Antropófago que mostram que questões como a política da diferença, a alegria trágica e a arte experimental são propostas bem claras em Oswald de Andrade.
E, no Manifesto da Poesia Pau-brasil, a frase que traz uma compreensão quase que impossível em um brasileiro de sua época, e mesmo hoje ainda difícil, devido a nosso insulamento (e manipulação) cultural e existencial:
A contribuição milionária de todos os erros.[139]
Este pensamento remete à física dos quanta e à teoria do caos, à estética de Glauber, à informática e à cibernética, a Ezra Pound, à música atonal e a Jorge Mautner. Aparentemente a frase se referiria meramente ao idioma e ao fato de ele ser vivo e receber constantemente acréscimos e modificações de seus falantes atuais em todos os níveis sociais, que são classificados como “erros” pelo professor de português e pelo gramático, e que na realidade enriquecem a língua e criam novas possibilidades de expressão para o artista da língua. É claro que tal interpretação é correta e sob certo ponto de vista privilegiada, porém mais ainda o é compreender que Oswald aí se refere a todos os campos do pensamento e da criação, onde o que seria o “erro” vai trazer alternativas de pensamento e de práxis, o que é ressaltado pelo pronome indefinido “todos” que generaliza o âmbito dos “erros” em questão.
O rizoma antropofágico se espalha pela Terra, aparecendo até mesmo na resenha de um número nacional da revista de ficção científica Isaac Asimov Magazine, na qual o artigo “Sonho Realizado” de Fábio Fernandes faz a crítica do livro A Mãe do Sonho de Ivanir Calado, contando que:
Em 1988, os fãs e escritores de ficção científica Ivan Carlos Regina e Roberto de Souza Causo lançaram as bases do Movimento Antropofágico de FC (Ficção Científica) brasileira.[140]
 Mautner é enciclopédico, e, além de todos os estilos de época e gêneros musicais, ele tenta recobrir todas as manifestações da mítica do folclore, dos meios de comunicação, das tradições oficiais e marginais, dos costumes, da literatura, da chamada para-literatura etc. É por isso que um tema como ficção científica não lhe é alheio, e mesmo ele tem canções desse tipo, como a já citada “Zona Fantasma” e “Herói das Estrelas”. Ele tem músicas dos signos astrológicos, dos dias da semana, dos meses, dos animais, do vampiro, dos marcianos, do Japão, da China, do filho da floresta, do candomblé, da guerra, da paz, do amor etc.
É interessante citar a canção do gibi, “Cachorro Louco (Relâmpago Dourado)” in Antimaldito[141]Vemos aí a crendice popular brasileira que diz que “agosto é o mês do cachorro louco” associada à crença europeia (e também brasileira) em lobisomens, homens que viram lobo na lua cheia, tudo isso ligado ao suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954, que tantas repercussões teve e tem até hoje na vida social brasileira, em uma leitura super-politizada das revistas em quadrinho (a arrogância e a violência do Homem Aranha, a usura neo-literal do especulador Tio Patinhas,  a humildade e a alegria de Zé Carioca, o homem do povo brasileiro, o verdadeiro inocente útil diante dos Homens Aranha e dos Tios Patinhas), que preserva seu lado fantástico e imaginativo (a interação entre o leitor e a história da revista, quando o relâmpago dourado atravessa a face do espelho e os dois mundos se encontram, como em Alice).
Ou na revista underground, independente, de inspiração pop e filosófica deleuziana, de quadrinhos e fotos, textos filosóficos e literários, a Revista do Caos n° 1[142], editada por Maurício Viviani, Anabela Machado, Jorge Vasconcelos e Leonel Gualter (com muitos colaboradores), e que traz textos como estes:
O que poderia haver de incomum entre os quadrinhos de Viviani, um texto de Foucault ou uma peça de Beckett? Nada. E por que não tudo? Uma revista de linguagem gráfica pode ser uma obra de pensamento? O que é uma revista pop?
Antes de mais nada, pensar não é responder perguntas, isto sim, problematizar questões. /.../
Uma multiplicidade de discursos mas mesmo assim uma ordem - apenas, uma ordem nômade. Não marginal como acostumou-se chamar essas publicações que escapam a certos padrões; mas nômade.
A Revista Caos é um esforço neste sentido: a construção de uma publicação nômade, diferente, pop. /.../
A CARTOGRAFIA DE UM CAOS
A multimídia gráfica é o pós-moderno encadernado.
Desterritorialização do minimalismo: chegar ao centro do caos, invertendo a ordem da desordem. Construir a desconstrução gráfica. Multiartes: fotografia/teatro (fotodramático); traço/palavra (visualização poética); música/foto (graficlip). Texto-contexto. A encadernação do pós-moderno é a multimídia gráfica. Nietzsche, Artaud, Deleuze, Guattari, Godard, Einsenstein, Pessoa, Foucault, Laurie Anderson, Van Gogh, Moebius, Viviani, Ulpiano, Antunes, Cazuza... Escrever para pensar.[143]
Mautner também lançou uma revista alternativa em 1976: Ta-Ta-Ta[144]. Este nome nos faz pensar nas filosofias da haecceidade (conceito de Duns Scottus) que apontam para a coisa em lugar de falar sobre ela (ou de pronunciar o seu nome), como a filosofia estóica ou a filosofia oriental do zen.
Ao lado disso também remonta ao dadaísmo, o dadá infantil, balbucio assignificante e supersignificante, virtualidade de todas as falas, dizer o indizível de uma maneira direta, algo como o argot e a “Cabala Fonética” dos místicos e a “Língua dos Anjos” dos alquimistas e de Jorge Ben Jor.
O mesmo ano de 1976 vê ainda o lançamento do lp Mil e Uma Noites de Bagdá e do livro de poemas-ficção-ensaios[145] Fragmentos de Sabonte.
Depois de um angustiante intervalo de mais cinco anos sai outra obra sua, Poesias de Amor e de Morte, e o lp Bomba de Estrelas, que são lançados em 1981 (na época da bomba do Riocentro; um repórter da tv perguntou a Mautner, na festa de lançamento do disco: “Mautner, você tem lançado alguma bomba ultimamente?”, e o cantor respondeu: “Tenho! O lp Bomba de Estrelas.” Outra coisa a notar é que neste disco Mautner se encontra e equaliza com três florescimentos diferentes da MPB, os três do nordeste: Caetano e Gil, tropicalismo; Moraes Moreira e Pepeu Gomes, Novos Baianos; Robertinho do Recife, Zé Ramalho e Amelinha, o grupo de nordestinos cult que surge no final dos anos 70. Ainda: Zé Ramalho canta com Mautner “Negros blues”, que tem como ponto de partida uma resposta a Belchior, que é do grupo deste. E a canção “Samba japonês” ao vivo nos shows era cantado junto com Jacobina, o que seria justo também no disco, pois esse parceiro carioca está presente a toda obra musical de Mautner, à exceção de Pedra Bruta, com seu violão e sua guitarra) .
É bem verdade que Panfletos da Nova Era, volume 1, é de 1980, mas os outros volumes não saíram à luz até hoje. E assim vai sendo sua obra divulgada, com intervalos de anos, muito exiguamente, com muita dificuldade, quando tanta cretinice é editada aos milhões a todo instante em nosso país.
O ponto central da política/ética antropofágica de Oswald de Andrade é a mulher[146].
Oswald foi marxista, porém tinha uma leitura muito própria de Marx, que lhe valeu o repúdio e a perseguição dos comunistas tradicionais (exatamente como aconteceu a Mautner), além dos evidentes repúdio e perseguição por parte dos burgueses, a quem o experimentalismo de Oswald ameaçava muito mais do que faria um mero choque, um reles espanto.
Na concepção política de OA o mal de nossa civilização está ligado ao poder falocrático, que institui a propriedade privada e o centro de poder, isto é, estado[147].
Ao longo de toda a vida de OA as mulheres foram sempre a fonte de sua revolta política e estética, grandes mulheres atuantes e brilhantes que iluminaram seu caminho de poeta e pensador (há pessoas que demonstravam uma grande rejeição a Nietzsche pelo que ele escreveu sobre as mulheres, aparentemente ele seria um machista que veria na mulher um ser inferior intelectual e socialmente, todavia esta leitura não se coaduna com o desprezo que Nietzsche tinha pelos preconceitos de seu tempo e também pelo estado e as convenções de nossa sociedade, nem com a crítica das estruturas de pensamento e práxis vigentes, nem com a valorização da tese do matriarcado, nem com a rejeição da forma “homem” e da pregação de sua superação. Tenho a teoria de que ele falava da mulher dentro do quadro do patriarcado, uma imagem caricata e submissa do que a mulher realmente é, e sua veemência intentava incomodar, sacudir a mulher de seu marasmo, pois ele via nela a verdadeira ponte para o super-homem e para a super-mulher, isto é, para o super-humano, a superação de nossas idiotas dicotomias e aporias).
OA não queria apenas o fim do capitalismo, ele queria o fim de nossa civilização, pelo surgimento de uma nova, em que o poder da mulher libertasse a humanidade da mediocridade da razão macha, branca, linear e ocidental.
Herman Hesse é outro escritor influenciado por Nietzsche que trata do tema em uma de sua obras mais expressivas, Demian, onde ele nos fala de um novo misticismo, inspirado por um deus que é deus e demônio ao mesmo tempo, que funde o bem e o mal, o lado negro e o lado luminoso, o macho e a fêmea, que é animal e super-homem, homem e mulher.
Ainda podemos pensar neste outro importantíssimo autor que é David Herbert Lawrence, e que aborda estes temas em A Serpente EmplumadaMulheres Apaixonadas e O Homem que Morreu.
Lembremo-nos da já citada música “Iluminação” de Jorge Mautner, que diz:
Sei que falo com Deus
E com Satanás
E os dois são meus amigos antigos
Dançam valsa dentro do meu coração
Isto é guerra e paz[148]
Leiamos este trecho do livro O Nascimento da Filosofia de Giorgio Colli:
Ao delinear o conceito de apolíneo, Nietzsche considerou o senhor das artes, o deus luminoso, o esplendor solar, aspectos autênticos de Apolo, mas parciais e unilaterais. Outros aspectos do deus ampliam seu significado e ligam-no à esfera da sabedoria. Antes de mais nada, um elemento de natureza terrível, a ferocidade. A própria etimologia de Apolo, segundo os gregos, sugere o sentido de “o destruidor total”. /.../ O atributo do deus, o arco, arma asiática, alude a uma ação indireta, mediada, protelada. Aqui toca-se o aspecto da crueldade, ao qual se acenou a propósito da obscuridade do oráculo: a destruição, a violência protelada é típica de Apolo. /.../ Outro elemento frágil na interpretação de Nietzsche está em apresentar os impulsos apolíneo e dionisíaco como antitéticos. Os estudos mais recentes sobre a religião grega ressaltaram uma origem asiática e nórdica do culto de Apolo. /.../ Daí parece provir o caráter místico, extático, de Apolo, manifestando-se no arrebatamento da pítia, nas palavras delirantes do oráculo délfico. Nas planícies nórdicas e da Ásia central atesta-se uma longa persistência do xamanismo, uma técnica particular de êxtase. /.../ Uma passagem célebre e decisiva de Platão nos ilumina a esse respeito. Trata-se do discurso sobre a “mania”, sobre a loucura, que Sócrates desenvolve no Fedro. Logo no início, contrapõe-se a loucura à moderação, ao autocontrole, e, numa inversão paradoxal para nós, modernos, exalta-se a primeira como superior e divina. /.../ Coloca-se em evidência, portanto, desde o início, a ligação entre “mania” e Apolo. /.../ Apolo não é o deus da medida, da harmonia, mas do arrebatamento, da loucura. Nietzsche considera a loucura pertinente apenas a Dionísio, e, além disso, delimita-a como embriaguez. Aqui, uma testemunha com o peso de Platão sugere-nos, pelo contrário, que Apolo e Dionísio possuem uma afinidade fundamental, justamente no terreno da “mania”; juntos, eles esgotam a esfera da loucura, e não faltam bases para formular a hipótese - atribuindo a palavra e o conhecimento a Apolo, e a imediatez da vida a Dionísio - de que a loucura poética é obra do primeiro, e a erótica, do segundo.[149]
Colli a partir de seus estudos de anos preparando a edição das obras completas de Nietzsche formula a revolucionária tese que diz que Apolo teria um lado negro, o lado da loucura, do arrebatamento irracional; e, mais sério, seria este lado apolíneo que deu origem à sabedoria e à filosofia.
Não esqueçamos que, se Dionísio é um deus que se despedaça e passou parte de sua vida como mulher, Apolo é a contrapartida gêmea de Ártemis, a deusa da lua e da caça, a mulher guerreira, que também tem um lado negro e misterioso: Hécate. Se o tem Ártemis, tem-no também Apolo.
Kaos com K e o caos: tentamos mostrar a ligação rizomática entre os campos do saber, a filosofia, a arte, a ciência, a mitologia e a literatura, entre outros; e que a ideia de caos tem perpassado todos eles, de uma forma meio escondida, às vezes, noutras com toda a publicidade da criação de uma nova ciência; e ainda que Jorge Mautner intuiu a questão com genialidade quando, aos dezessete anos de idade, em 1958, em plena América Latina, criou o seu Kaos com K. As experiências mais variadas, em teatro, em música, na teoria literária, no magistério em todos os níveis, em nível existencial, têm-me mostrado o quanto as pessoas são refratárias e amedrontadas com a ideia de caos, que elas tentam a todo custo exorcizar, e que muitas vezes não podem ver como gerador e criador, ficando paralisadas ou histéricas diante de qualquer questionamento do modo burocrático e departamental que se nos tem imposto.
Em Jorge Mautner, o investimento existencial e político na mulher e no lado escuro como fonte nutriz da vida e da sociedade (investimento milenar e clandestino) ganha um novo aliado, que, já na primeira faixa do primeiro lp se apresenta como a contrapartida erótica do super-homem de Nietzsche [150].
A supermulher de Mautner é miscigenada, ela “canta”, “fala”, “grita” e “zanza” como uma força de dança arrebatadora, dionisíaca, e, no entanto, “Ela tem um rebolado/Tem o corpo tatuado/De uma figa de Guiné”, tem elementos negros (e médioorientais, como a figa e Arca de Noé).
Outros elementos que aparecem nesse ser é o ciganismo, o circo, a feitiçaria e as cartas do Tarô - “Domadora de leões” - Arcano 11: A Persuasão: O Leão Domado (Tarô Egípcio).
Além elementos nômades, os ciganos, o circo, a feitiçaria e o Tarô também reforçam o caráter panracial da supermulher, pois para todos os quatro existem as mais diversas teorias a respeito de sua origem etnogeográfica: extremo oriente, médio-oriente, África, Europa...
Anticapa voadora, além de fazer lembrar as vassouras das bruxas e o tapete voador das histórias persas e árabes, remete diretamente à mitologia pop do Super-homem das histórias em quadrinhos, que usa uma capa quando quer voar. O Super-homem circense dos meios de comunicação de massa norte-americanos surgiu como propaganda simplória e infantilizante contra o super-homem nazista - os dois são uma tentativa de reverter o potencial revolucionário do super-homem de Nietzsche, os dois são apropriações fascistas.
A figa, amuleto de sorte para o povo brasileiro, tem, segundo o próprio Mautner (que fez, juntamente com Gilberto Gil, um movimento artístico, social, político e cultural racialista [a reversão do racismo, assumir as diferenças, não tentando integrá-las, nem aplainá-las] chamado Movimento Figa Brasil) um caráter simbólico e mágico em cultos priápicos da Ásia Menor, e seria também um símbolo da complementaridade feminina/masculino (yin/yang), pois representa tanto o órgão genital do homem quanto o da mulher.
Oswald formula um falso raciocínio dialético, como um sarcasmo para com o método hegeliano, e, fugindo desse estreito racionalismo em forma e fundo, afirma a necessidade da “síntese” de um novo homem e de um novo mundo, que tenham todos os elementos dos atuais, somados aos do homem e do mundo primitivos, do tempo mítico do matriarcado.
Eis a “dialética” de Oswald de Andrade:
1° termo: tese - o homem natural
2° termo: antítese - o homem civilizado
3° termo: síntese - o homem natural tecnizado[151]
No raciocínio de Oswald a síntese carrega em si todos os elementos precedentes, num movimento de dobra em espiral que repete o movimento anterior alargando-o, sobrecarregando-o.
Tal procedimento é totalmente diferente do de Hegel, onde as diferenças entre a tese (A) e a antítese (B) são desprezadas, ficando a síntese (C) como o ponto analógico (que tem as igualdades apenas) de interseção entre elas.

Em seus desenhos pós-surreais, JM, no volume 1 de Panfletos da Nova Era, mostra um cachorrinho olhando carros, tanque de guerra, foguete, fumaça e um quarto minguante e dizendo: “Tekné triste! Mas existe...”[152]
Sobre o raciocínio dialético, JM escreve:
José Ramalho: mais do que qualquer outro de sua geração, é produto avançado da cultura universal-básico e irreversível da mente einsteiniana em que ultrapassada a visão ainda linear, se bem que circular ascendente da dialética que é dividida (como tudo, aliás, no século 19 da prepotência da razão europeia e manipulativa) naqueles ultrapassados três momentos ainda dentro da 3ª dimensão: tese, antítese e síntese. José Ramalho engloba estes três movimentos e outros tantos (por uso direto e natural de telepatia, dado natural da cultura de massas do Nordeste), intuição englobante, visão esférica de olho de cinema e televisão, audição em ondas etc. Movimentos ou situações da relação Espaço-Tempo, tanto do ponto de vista cósmico, assim como do social, etc[153].
Nos textos de Fenomenologia Tropical Mautner mostra sua enorme preocupação com a política contemporânea do Brasil e do mundo, sempre ligada à questão ecológica e das lutas de minorais (não se esqueça que ele foi candidato a vereador pelo Partido Verde), revertendo ele também a dureza da racionalidade clássica, aqui sob a máscara da fenomenologia, que se torna um paradoxo (uma ideia que contradiz a si mesma, o impensável para a razão clássica) a partir do momento em que tropical, visto que essa mesma razão dizia que só se podia filosofar em grego e alemão (frase de Heidegger, fenomenólogo). Mautner filosofa, será se é porque ele aprendeu alemão antes de português? Caetano falava sério quando dizia “Se você tem uma ideia incrível/É melhor fazer uma canção/Está provado que só é possível/Filosofar em alemão”[154]?
Em “Estrela da Noite”[155], o circo, o jogo e o modo cigano reaparecem ligados a uma mulher quase que mítica, mágica (a super-mulher?), que inspira o homem, e o faz seguir em frente, rumo ao desconhecido, rumo à noite mais negra e mais escura, cheio de orgulho de saltar para a morte, como o artista do trapézio. A estrela da noite pode ser a estrela do norte, a Tramontana que serve de guia aos navegantes do hemisfério setentrional: e a mulher é essa estrela guia, que marca como a sorte e o azar os dados, o baralho, os intrumentos da leitura do destino ou da decisão da vitória ou da derrota no jogo.
A mulher, o amor pela mulher, força o amante a se arrojar no desconhecido, a entrar nas mais negras trevas, do fundo das quais a amada o chama.
A mesma situação retorna em “Salto no Escuro”:
Tem um jato de luz saindo
Do meu crânio para o seu crânio
Ah, meu amor! Como eu te amo![156]
Ele repete a canção inteira, numa vez canta “Nosso beijo explode o passado e o futuro”, na segunda vez canta assim: “Nosso pé explode” etc.
Os dois juntos dão um chute no mundo conhecido e arrebentam as cercas de todas as convenções e amarras, e das coisas como são.
Como cantor, assim como escritor e compositor, Mautner busca sintetizar em si todos os movimentos e diferenças da música, feito impossível, mas que ele consegue em grande parte, olho do furacão, alfa de Borges.
Nesta música ele canta quase que como Orlando Silva e principalmente Orlando Dias, um epígono do primeiro, que exagerava sua entonação além dos limites do humor.
De novo a imagem redentora, libertadora, da mulher, do princípio feminino no homem e no mundo, como nos textos de Oswald de Andrade (em “O Escaravelho de Ouro” a biografia do poeta ele mesmo é a profecia da biografia da filha, herança intensa, legado estético e filosófico, de um homem sem profissão nem propriedades).
JM depõe em Trajetória do Kaos sobre esta canção:
Salto no escuro, letra e melodia quase juntas em curtição de som com Nelson Jacobina, eu estava (e estou) encucadíssimo com ondas cerebrais, tempestades eletromagnéticas de cérebro para cérebro, o amor como onda e frequência elétrica, e tudo isso é sempre um salto no escuro, o desconhecido caminho embriagante do amor, da identificação e da fantasia.
Em “Meu Testamento” Oswald faz sua profissão de fé:
Quando se afirmou, há cem anos, que bastava de explicar o mundo, pois o necessário agora era transformá-lo, é porque o hálito das massas industrializadas falava. Elas achavam enfim a sua própria mitologia. Uma mitologia brotada das forças do mundo explorado e conhecido. Note que as massas sempre tenderam ao mitológico no seu desenvolvimento espiritual. Talvez hoje seja uma porta mística a que se escancara para elas, na História, mas na direção inflexível das realizações terrenas. Desta terra, nesta terra, para esta terra. E já é tempo.[157]
Este legado político e estético - por razões de ordem filosófica, da paixão desterrada pelo trágico, pelo acaso, pela eterna dança sem sentido das forças - é recolhida por uma cascata sem fim de gerações de homens, que uma após outra se sente gorada, tendo Nietzsche, Marx, Freud, o jazz, o samba, o beat, o existencialismo, o underground, o rock, a antropofagia, o misticismo, as drogas, a técnica - nas mãos, e não sabe o que fazer com isso tudo, e vai tratar de ganhar dinheiro.
A atuação estética e política de Mautner nestes setenta anos de incansável atividade “nas trincheiras do Kaos”[158], faz dele um dos mais raros e diferentes devires, não ramo,  mas rizoma, da trágica e alegre e desterritorializada herança de tantas gerações de guerreiros.



                            Capítulo 4: amor amazônico

Quantos recados secretos de senzala para senzala ecoaram na forma de tambores? Isto é a História do Brasil.
             Jorge Mautner[159]

Em Mautner poética e política[160] se misturam como em nenhum outro criador, elas são para ele uma coisa só, ele respira, come, bebe, dorme, sonha, acorda e faz política 25 horas por dia, e essa sua política é poesia (e não é artista “engajado”, superficialidade para quem está “no cerne da cebola”):
Aos 14 anos fiz um partido político, aos 25 estava trabalhando para o PC já numa atitude de “pré-eurocomunismo”, várias outras organizações, conhecia Gramsci antes da moda, Trotsky, tudo, etc.
Instruí quadros e quadros que mais tarde ou foram para a direita (minorias) João Parisi, Paulo Azevedo, etc. e para a esquerda (a maioria) João Quartim de Moraes, etc. mas a maior parte dos meus seguidores do Partido do Kaos iam é para a arte mesmo.
Um dia em 1974 interromperam intervalo de um show no meio com um cara que vinha comigo falar. Eram os homens do SNI que entraram no camarim, eu de batom preparado para cantar “o relógio quebrou” e disseram: “este cara vai ser trocado por reféns e vai para a Tchecoslováquia mas faz questão de falar contigo antes, o avião sai daqui a pouco, ele tem quinze minutos para falar. O cara, ex-aluno meu, agora alto quadro da organização de guerrilha-urbana disse: - “Mas Mautner, é verdade que o neocapitalismo triunfou? Por favor, mestre, tua resposta é muito importante.”
Eu falei: “Você vai para a Tchecoslováquia? Pois vá, lá terás a resposta.”
Quando em 1965 saí para os USA, imediatamente a CIA me cercou sob mil formas, mas assim como meu olhar detectador de agentes sempre detectou por causa de meu Raio-X treinado em paranóia judaica, eu da mesma maneira e clareza com que sempre os identifiquei sempre mantive-me à parte, marginal, assim como em relação à cultura oficial que me chama “maldito”, porém, sendo minha mensagem artística tão profunda justamente por não se filiar a nenhuma KGB, CIA, SNI, etc. e por isso que ela interessa a todas estas organizações representações do executivo e da força de ideologias a que servem, e que por sua vez nasceram remotamente de ideias artísticas e pré-arquétipos como os de minha obra do Kaos. Sei que minha obra oferece interesse pois discute com tragédia e profundidade todos os temas políticos mesmo os que ainda nem se delinearam no fronte ideológico que para mim é mais ou menos a 15ª casca de cebola e o centro da cebola é essa arte que faço. Ah, quanto aos ditos artistas “engajados”, estes nadam na superfície da 18ª casca da cebola. Daí meu estranho alheamento para com eles, e eu ser tão “alienado” quanto o “mais político dos artistas, mas Política com P grande, trágico”.[161]
O primeiro trabalho musical de Jorge Mautner foi um compacto de vinil lançado em 1965, que tinha de um lado a canção “Radioatividade”, e do outro “Não, não, não”, que canta assim:
Não, não, não quero ouvir mais você falar          
Bobagem sobre todas as coisas
Todas as coisas sem exceção
Dói, dói, dói no coração[162]
Vemos desde esta primeira música gravada a preocupação precípua de nosso autor com a política, a qual já tinha vindo expressa em seus romances do que na época era a Trilogia do Kaos.
O eu lírico aqui se dirige a um interlocutor que parece falar muito, e a quem ele diz não suportar mais ouvir, pois “Tudo é tão triste” quando ele o ouve, ele só diz “Bobagem sobre todas as coisas/Sem exceção”, reafirmando o tempo todo seus preconceitos elitistas, dizendo que “os homens/Não são iguais”, que “nunca vai/Haver a paz”, “que mulher/É ser inferior” e “Que dinheiro compra tudo/Compra até o amor”. Quem é tal falastrão?
Assim como “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinícius de Morais, lançada em 1958 no marco fundamental da bossa nova que foi o lp de mesmo nome de João Gilberto, se dirigia à tradição cultural brasileira, e especialmente à da música popular, passadista, chata, ranzinza, reclamona, chorona, embolorada, e era como que um brado sussurrado ou um carnaval minimalista que bradava a força dionisíaca da alegria e a superioridade ontológica do amor realizado (o que é tautológico, o real é mais real que o sonho, e melhor que o ideal); assim também esta primeira gravação do jovem Jorge Mautner poderia estar se dirigindo ao cenário poético e musical que ele ao chegar encontrava - e tal suposição ainda pode ser reforçada por um signo de dupla leitura, a melodia e o estilo da canção, bem consoante com a moda da jovem guarda que era absoluta nas paradas de sucesso da época, e a quem ele poderia estar se dirigindo como sendo os preconceituosos que acusa, e, ao mesmo tempo, cuja roupagem utilizaria para mostrar uma mais profunda revolta contra os “quadrados” tradicionais, agarrados a suas ideias fixas e a seus preconceitos (isto é, no seu afã de tudo experimentar Jorge tenta o ritmo do ié-ié-ié[163] da jovem guarda, e suas harmonias e vocalizações, para produzir o que seria o seu único exemplar engajado). Ao adentrar o mundo musical ele o fez pela tripla negação (além da negação da negação de Hegel), recusando tudo o que via, e afirmando a sua radical originalidade.
Outra hipótese, que bem pode conviver com a primeira sem se excluírem mutuamente, além da primeira, metalinguística (a música se referiria ao mundo musical e também cultural), nos leva a considerar que ele se dirige às elites sociais, à high society, que ele tão bem conhecia e com a qual convivia, sem no entanto a ela pertencer, na milenar posição do artista que frequenta como “tempero” as festas dos grã-finos[164].
Mautner participa como ator do filme Festa de Ugo Giorgetti[165], faz o papel de um músico gaitista convidado, juntamente com dois jogadores profissionais de sinuca, para animar uma festa de ricaços numa mansão em São Paulo.
Os três têm de ficar “guardados”, aguardando, numa ante-sala meio escondida, de onde ouvem o barulho da festa, sem que nada lhes seja servido, sem que lhes sejam dadas explicações, esperando pela eventualidade de serem chamados para se exibirem para os convidados.
Porém tal não se dá, a festa acaba de manhã, e cada um dos três recebe um cheque e é rudemente enxotado da mansão pelo mordomo, que foi o único com quem trataram.
Alegoria da situação não só do poeta Jorge Mautner, mas também da própria arte em nosso... país? modo de produção? mundo?
Outra canção que rejeita a elite supérflua, desta vez com fino humor, é “Nababo ê”:
Você Nababo oi,
Você Nababo ei,
Nababo na Babilônia
Sempre é um rei[166]
Aqui o trocadilho entre “nababo” e “na Babilônia”, o locativo sai do nome do sujeito. O “círculo quadrado” é um paradoxo lógico, a vida no meio do paradoxo. Os motivos de tristeza, da solidão e do cuidado são outros do que estes citados, manifestos; mas estes, pelos menos, se não são os “verdadeiros” (indizíveis), pelo menos “cabem direitinho” no embalo da poesia da canção, da língua, do modo de vida, do...
Em “Tá na Cara” aparece a necessidade de superar tanto o burguês com a sua angústia e a sua inutilidade quanto o ingênuo operário (que, no entanto, ao contrário daquele, está cheio de vida):
De rayban e carro esporte ele partiu prà morte
E o operário de manhã pela avenida partiu prà vida
E depois deles dois vim eu veio você viemos nós
Como você vê cantando na mesma voz[167]
E qual é esta alternativa tanto ao trabalhador quanto ao capitalista?
A princípio poderia ser o artista, mas alguns são artistas, a maioria não o é. E o eu lírico se refere a todos como participando, como “cantando na mesma voz”.
No início da música “Negros Blues”, um trecho oswaldiano (que tanto nos faz pensar na poesia pau-brasil quanto no início de “Tropicália” de Caetano Veloso):
Quando os brancos começaram a navegar em suas brancas caravelas por mares nunca dantes navegados, não sabiam o que iam encontrar. Mas bem que dentro de suas cabeças havia sonhos de ouro, arcas de tesouros, por encontrar, naquelas terras do além, do além mar...
E os negros, em seus navios negreiros, arrancados lá da África, da Nigéria, do Dahomey, do Congo. E nos porões dos navios negreiros inventaram a palavra “camundongo”.
E os indígenas? Ah, os indígenas, quem são? Mais antigos do que tudo, do que todos nós, astronautas, atlântidas, mongóis?
Sei lá... sei lá...MAS QUEM SABERÁ?
E logo começa a parte cantada, intercalada com as falas, onde o poeta se posiciona na sua solidão essencial e existencial, devida à sua natureza e ao deslocamento que tem em sociedade, não sendo nem “trabalhador” nem “capitalista”, mas mesmo assim “Não há nenhum ressentimento”, porque “Tudo é divino, tudo é maravilhoso”.
Uma nova consciência, ligada a novas formas de vida, aparece como a alternativa a tudo de insuportável que o poeta não queria mais ouvir.
E vem a homenagem aos “negros blues”, tristes e alegres demais, os alquimistas da emoção e do ambiente, magos que sabem transmutar os acontecimentos, transformando sofrimento em “pérolas negras”[168]:
Não há nenhum ressentimento
Nem pingo de um outro sentimento
Nas palavras que eu digo
Nas palavras meu amigo[169]
JM também retoma um tema presente em OA político quando afirma, no programa Couvert Artístico da Rádio JB FM de 8 de setembro de 1995 (e que repete em shows, na segunda edição de Fragmentos e na canção “Urge Dracon”, do cd Eu Não Peço Desculpa):
Ou o mundo se brasilifica ou virará nazista.
Vejamos o que Oswald diz a este respeito, em “Sol da meia-noite”:
O nazismo deu forma à matéria do alemão. Nunca teve tão oportuna pesagem política o modelo aristotélico. O alemão já executava o passo de ganso no fundo das páginas de Tácito e, nessa marcha, veio trazendo as arreganhas homicidas da caverna até à civilização da técnica. Nela viu a couraça e a blindagem, o gás químico e o avião semeador da morte. E criou sua forma histórica: Adolfo Hitler. Perguntava-me a revista Diretrizes, ultimamente, em enquênte, que se devia fazer da Alemanha depois da guerra? Esfolar inteira? Comunizar? Entregar todinha aos noruegueses, aos gregos, aos russos? Aos filhos do fuzilados, dos enforcados e dos bombardeados do mundo inteiro? Dá-la aos judeus? - Não! É preciso alfabetizar esse monstrengo. Há dentro dela um raio esquivo de luz. É o do seu Humanismo. É o que vem de Goethe e através de Heine produz Thomaz Mann. A Alemanha racista, purista e recordista precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no melting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se.[170]
Outro exemplo de antropofagia política (contra o “nazismo universal e os totalitarismos”) está em “Cidadão-Cidadã” (onde é afirmado o direito à felicidade e à diferença[171]).
Nota-se o humor sempre constante, ao lado de uma linguagem pop, que Caetano Veloso chamou de abusar do lugar comum (com uma originalidade de marciano), mas que, na verdade, não tem nada de clichê, e no entanto nos parece tão reconhecível justamente por ser uma poesia supercarregada com imagens pop, originárias não só dos meios de comunicação de massa, como também da própria literatura e de outras artes urbanas e da época contemporânea.
Assim, aparecem a borboleta com seu voo (ao vivo ainda havia uma parte falada inicial, que era mais ou menos assim: “O menino vê aquele bicho se arrastando e exclama: ‘Que bonito!’, mas a mãe lhe diz: ‘Não bote a mãe aí.’. O menino desobedece e se queima - e ele jamais esquecerá esse nome - TATURANA!”, que ressaltava o memorialismo presente em sua obra e também a ideia de metamorfose, pois logo depois começa a parte cantada com “o voo da borboleta”), e ainda o maneta, o troca-letra, o país continente, o planeta, o pirata perneta, o grumete, a luneta, os anjos do juízo final tocando trombeta etc.
O primeiro verso “Assim como é natural”, ao qual toda a primeira parte vai se referir (“Assim como não acho nada de anormal” /.../ “Assim como é lindo o pirata”) não prega nenhum naturalismo, ao contrário, pois diz ser natural o maneta, o perneta, o troca-letra, o anjo (sobrenatural), a alegre e o ranzinza, o verde-amarelo e o vermelho, o homossexual, isto é, tudo - logo, nada.
Mautner nos conta de que desde que ele nasceu que seu pai lhe ensinava sobre o nazismo - que é a mais completa formulação contra o direito às diferenças individuais que são a expressão da diferença ontológica - contando-lhe os horrores da guerra; por causa disso ele estudou e pesquisou muito, e diz que é atualmente a pessoa que mais entende de Adolf Hitler no Brasil; comenta ainda consternado que, ao lado dos oficiais e soldados da ditadura (que o prenderam numa fazenda de interior de São Paulo para o salvar, pois o seu nome era o primeiro da lista), alguns jovens “esquerdistas” são fascinados pela figura do fuhrer e insaciáveis em ouvir suas histórias.
Só que o nazismo perdeu a guerra, apesar de haver certas ondas nazistas em todo o mundo, aqui e ali. Será esse o “nazismo universal” ao qual se refere? Ou é a própria ideia de universal que é nazista?
Ele diz: “Kaos com K contra o nazismo universal.”
Há nazismo onde aparentemente há democracia e esquerda, há nazismo em todo tipo de relações humanas, em todos os níveis, ele é como uma doença da humanidade[172], e se expressa fragmentariamente em toda espécie de obscurantismo, intolerância, segregação, violência etc., e até nas patrulhas ideológicas que a esquerda faz com seus próprios membros e simpatizantes[173].
Em “Lenda do Pégaso” a longa, difícil e bela descoberta da originalidade, e de seu valor intrínseco [174].
Pégaso vive muitas experiências, tenta muitas formas de vida, até atingir o seu “caminho com coração”, experimentando várias associações que iam transformando o seu sentido e o sentido do mundo para ele. Mitologia e alquimia, a toda hora encontramos estas máquinas de pensar em JM.
A ideia de transmutação volta neste samba que nasceu clássico, no qual uma “pedra bruta”[175] vai rolando (volta do tema beat e rocker da rolling stone, “pedras que rolam não criam limo”, Bob Dylan perguntando à ex-dondoca: “Como você se sentiria igual a uma pedra rolante?”, a terapia da pedra) até se tornar condição de possibilidade, a terra que vai alimentar a flor que brota, e que tem em sua carne a própria matéria da pedra vou[176].
Voltemos às confissões que o próprio autor faz em seus Panfletos da Nova Era, para clarificar sua posição política e também a controvertida “ponte” que nos anos de repressão militar iniciados com o golpe de 64 ele construiu para dialogar (assim como Glauber também fez) com a eminência parda (nem tão parda assim) da ditadura Golbery do Couto e Silva:
Somente após os “toques” de altas direções da esquerda, em parte tentando fazer-me recuar de certas posições, das quais não recuo, pois sou profeta e eu dito a ideologia, em parte vejo-os aproximando-se a galope, pois as conversões (mesmo que sutis) são significativas, pois a adoção de minha terminologia é a adoção estrutural de toda uma visão-paisagem definitivamente outra que ofereço como a mais cristalina e brasileira mensagem, (inúmeros nomes da intelligentzia que, por ética de eficiência revolucionária minha, não quero revelar, pois esta multidão teria melindres de superego, etc. exceção rara são Cae e Gil que logo me chamaram de mestre e eu mais aprendo com eles, quem de nós é mais político?).
Eu fui falar então com o Ministro Golbery do Couto e Silva, incentivado por Cae e Gil, que em parte desejosos de saber o que estava acontecendo, um pouco surpresos com os já superados ataques sectários contra ambos, e um pouco por querer mostrar e provar a certeza de minhas teorizações políticas, que desde 1971 faço com eles, fui encontrar o Ministro, levando carta de anistia de iniciativa de Norma Benguell e assinada por nós, e assim fui encontrar o Ministro amigo de Guimarães Rosa, leitor de Nietzsche, Spengler, e pedindo a anistia fui também anistiá-lo, pois logo ao chegar eu disse: - “Sr. Ministro, eu vim aqui em missão divina. Por que vim aqui e não ao ministério da cultura? É porque na realidade é daqui que emanam os arquétipos do pensamento da nação, que segundo Heidegger vai num muito breve futuro cibernético talvez desvelar o ser oculto do homem e onde todos serão controlados e controladores”.
Durante todos estes anos com intensidade cada vez maior fui “rejeitado”[177] de certa forma de volta à política ativa, afastando-me assim da “neutralidade existencial” que só aparentemente é “neutra” pois é a raiz da democracia.
Contatado incessantemente pela esquerda, direita, centro (que se crê ingenuamente objetivo e apolítico!) fui ensinando a todos e recebendo ensinamentos. Chegou porém o momento de a partir de 1979, por motivos óbvios, servir à coletividade de modo mais claro, sabendo assim estar participando do processo Histórico Nacional e mundial em seu salto qualitativo em direção à criação da social-democracia e da fundamentação de nossa ideologia antropofágica-eletrônica do maracatu atômico.[178]
Pedia-se a anistia política ampla, geral e irrestrita, o que significava anistiar não só os presos políticos de esquerda que faziam oposição ao regime militar, como os que pegaram nas armas da guerrilha urbana ou de campo, participando da guerra do Araguaia, combates nos centros das grandes cidades como Rio e São Paulo (dos quais a população não tomava conhecimento!), assaltos a bancos, sequestros etc. Este diálogo de Mautner e Glauber com Golbery aconteceu na segunda metade da década de 70, durante o governo do General Ernesto Geisel, que já fazia uma “distensão lenta e gradual”, e foi muito importante para o advento efetivo da anistia, que ocorreu na “abertura” do último governo da ditadura militar, o General João Batista Figueiredo. Até onde as atuações de Mautner e Glauber nesse sentido foram importantes é um fato histórico ainda a ser completamente estabelecido e avaliado, mesmo com toda a perseguição que as esquerdas promoveram contra eles, por mais absurdo que possa parecer, justamente por causa dessa atuação, nas “patrulhas ideológicas”.
Raul Seixas[179] dizia que todos os seus discos na verdade eram um só, o superdisco que continha todas as faixas que ele gravou.
Entendemos que o mesmo se dá a fortiori com o trabalho de Mautner, tão integrado, tão cheio de retornos e retomadas, tão imbricado, como um gigantesco sistema poético-ensaístico-ficcional.
Neste livro procuramos encarar assim as suas produções (o que não significa uma leitura caótica, e sim uma leitura “complicada”, que tenta dar conta do complicatio do universo mautneriano).
No entanto existe a possibilidade de uma leitura aparentemente mais linear, seguindo a cronologia das edições e a ordem das faixas dos lps e cds. Esta leitura também seria enriquecedora e não menos tributária do fecundo Kaos com K.
Assim vamos fazer aqui uma amostra, analisando rapidamente algumas canções do cd Estilhaços de Paixão como uma unidade conceitual, lendo cada letra à medida que vai aparecendo no disco, como o ouvinte que vai tomando assim conhecimento da obra, descobrindo que o cd tem realmente uma unidade, e suas canções quando consideradas conjuntamente ganham nova pertinência e potencializam seus significados.
É um trabalho superpolítico, como todos os outros do autor, e é um projeto maduro, bem acabado e bem realizado, de novo como os demais (acontece um fenômeno raro em JM, ele não apresenta evolução nem de forma de conteúdo nem de forma de expressão, até mesmo sua cultura gigantesca, tudo já estava pronto nos livros e nas canções de 1958, é impossível dizer de que época é algum trabalho seu se não levarmos em conta fatores como timbre da voz - que foi ficando mais grave com o tempo -, arranjos, técnicas de gravação etc; quanto ao trabalho em si, sua obra tem uma homegeneidade total).
O primeiro signo a ser lido no disco é a capa, que é inteira ocupada pela foto de JM sentado sobre um chão todo coberto de pétalas de rosas vermelhas, segurando um violino e um arco de violino vermelhos no mesmo tom das rosas, vestido com uma calça comprida que também parece feita das pétalas, pelo cromatismo e pela textura. Ele não veste camisa, mostrando seu físico elegante de atleta (JM faz atletismo e pratica Tai Chi Chuan). Pela expressão de seu corpo e de seu rosto parece um sátiro (como em “Olhos de Raposa” ele parece virar um animal sexual), até a sua orelha esquerda visível parece pontuda (efeito expressivo do cantor/ator, não há caracterização).
Dentro do encarte as letras e a ficha técnica, sobre fotos de rosas (a primeira rosa, em close, semelha um vampiro, um animal) num efeito de fotografia que as faz verdes, e Mautner em várias poses (inclusive usando o arco como espada de samurai, criando a imagem visual do símbolo “o arco e a lira” de Heráclito), fotos dos músicos que tocaram no disco, e um arranjo com um coração feito de rosas.
Na contracapa do cd, sobre um chão, desta vez de pétalas vermelhas e brancas (como no texto existencialista-alquímico de Vigarista Jorge que já citamos), JM vestido de terno e gravata (ironia com o “Samba da Gillete”?), em tons de bege claro ton-sur-ton, ao lado de Nelson Jacobina de blazer com as mesmas cores, ele de tênis, Jorge de sapatos, os dois de óculos escuros, os braços de Mautner cruzados na frente, Jacobina com as mãos cruzadas atrás das costas.
Na entrevista do Couvert Artístico da JB FM JM responde à pergunta do entrevistador do por quê do título:
Porque a minha alma é estilhaçada...[180]
Mas na verdade “estilhaços de paixão” é o conceito de JM sobre sua alma e sobre o mundo, o universo, o caosmos, que para ele é todo constituído de átomos supersensacionais, supersensoriais, superemotivos e supercognitivos, que vagam em turbilhão como estilhaços de uma estrela-bomba ou de uma bomba de estrelas, provendo todas as improbabilidades, todas sincronicidades, tornando todos os encontros possíveis, todos os acontecimentos reais. É muito mais que a paixão de um indivíduo por um outro, é isso também, e é a paixão da vida com todos os seus aspectos, que vêm em ciclones de átomos de fatos e fótons que atingem o eu por todos os lados, e aos quais ele não pode resistir e nem pode entender.
O título tem uma concepção prioritariamente física e política, ao mesmo tempo que é estética (como possibilidade de reação desse indivíduo estupefato), e secundariamente romântica e psíquica, não porque isso seja menos importante, mas porque essa é uma parte de um todo muito maior e presente.
Vamos ver o comboio ou trem das canções dentro da concepção ordinal da capa (pois o cd trouxe a possibilidade de ouvi-las na ordem que se quiser, bastando para isso programar, ou numa ordem aleatória-surpresa, através da tecla shuffle).
“Louca Paixão” [181] é um bolero do tipo que foi moda no Brasil nos anos 40 e 50, e que Mautner declarou ser, na entrevista do Couvert Artístico da JB FM: “para além do tempo e do espaço”. O lançamento deste bolero no final da década de 90 reforça a ideia de um panorama geográfico musical concomitante, simultâneo, onde o tempo é um amaranhado de tempos em diferentes velocidades, trajetórias, retornos, o tempo ontológico, que os estóicos chamam de aiônico e Samuel Butler de erenhow[182].
A “volta do boêmio”, o retorno do bolero, a presença da seresta e da serenata, a valsa vienense, a conga, o merengue, o jongo, o maracatu, o samba, a música eletrônica etc. são diferentes temperaturas que convivem no imenso panorama da sensibilidade humana.
Em “Sirene da ambulância”[183] há quatro rimas com “esperança”, perfeitas em “avança”, “criança” e “lança”, e imperfeita em “ambulância”, e um verso que não rima com nenhum outro, “Levando o meu coração”.
Quanto ao primeiro caso, o “i” a mais que se enfia no meio dos sons e desloca a palavra do paradigma de rimas iguais é como a onomatopeia mínima do som da ambulância, é como um choro e uma sirene, que voltam agigantados nos instrumentos musicais.
No caso de “coração” ele é a única palavra que não rima, se bem que haja uma aliteração ótico-sonora com o “ç” que aparece em todos os termos que finalizam os versos.
O coração é o único elemento novo que se vê sozinho no meio desse filme, no qual a esperança avança pela noite sem parar, com agudeza de uma ponta de lança e a ingenuidade de uma criança (como um Cupido).
Nesta e em muitas outras canções Mautner pratica seu minimalismo, desde o primeiro lp de 72, com “Chuva Princesa” e “Olhar Bestial”, até este, com “Sirene da Ambulância” e “Olhos de Raposa”, fotos de sentimentos, antidiscursivos haikais ou koans, ideogramas[184]. O amor é visto como cura, a esperança como medicação, e a falta de amor como a doença do homem, de sua alma e de seu coração. Como o amor sempre e sempre renasce (e a vida, como se diz no “Tatareto do Inseto”) em uma nova paixão, a música acaba com o volume diminuindo lentamente, a supercontemporânea guitarra de Jacobina soando como uma sirene de ambulância, até que se faz o silêncio entre faixas, e a mesma guitarra volta, a ambulância volta novamente.
Segue-se “A vingança é a origem das leis” [185], outra vez uma ideia de Nietzsche (de A Genealogia da Moral) inspira Mautner, quando ele cita a frase do filósofo: “A vingança é a origem das leis”. O que se busca nesta canção é menos uma compreensão conceitual do tema (valem as referências como tópicos a serem pesquisados, estudados, discutidos e compreendidos), e sim o sentimento poético da vingança, que é realçado pela voz rouca “estressada” que Jorge emite quando quer passar emoção violenta, Eros ou Thanatos, e pela voz angustiada de Celso Sim, que canta quase falando parte dos versos. Há um clima de angústia em todo o arranjo, como uma encenação, a colocação em cena de um texto.
Quando identifica a justiça com a harmonia musical e a deusa grega Harmonia (que diz ser a mesma Ecologia) JM se aproxima da sentença de Anaximandro de Mileto, sucinta frase que tem várias interpretações, sendo uma delas a que diz que toda emergência é o desequilíbrio de uma diké (justiça ou harmonia) universal que terá de ser recompensada pelo reequilíbrio.
A citação do poeta Nicolau Belo aparece como antítese ao resto da canção, pois se a vingança é “das leis a primeiríssima”, ele se diz contra todas as leis, até mesmo as que parecem ter total inevitabilidade, como a lei newtoniana da gravitação universal; postura anarquista-socialista-existencialista-trágica, ou melhor, kaótica.
Já na canção “Vivendo sem grilo” [186] A ética proposta é o antídoto pro clima “barra lúcifer” de “A Vingança é a Origem das Leis”, “O Boi” e “Samba da Gillete”, e nos mostra a terceira via em prática, um modo de vida tranquilo, “como quem não quer nada”, fazendo o que se gosta e sem medo de culpa, pecado, falta, juízo; é a fina lâmina da gilete que separa a ética superior e leve de quem não crê em culpa e mesmo assim é leve e trata ecologicamente bem (com tolerância e generosidade) todas as criaturas da falta de ética do sem-vergonha na cara, que faz qualquer coisa porque se crê coberto pelo manto da impunidade injusta (para esses parece conclamar a outra canção a vingança).
A mensagem de Cristo reaparece como mensagem superior que visa livrar o homem da culpa, no verso: “E a casa de Deus não tem porta nem trinco”.
O comediante Chico Anísio criou um personagem em seus programas de tv chamado Profeta, com tem longas barbas e vestes, que fala manso e grave (Mautner o imita na citação) e sempre mantém a calma, espalhando essa sensação junto com sua sabedoria, repetindo o bordão “Podem ficar à vontade!”. JM leva a sério o personagem parodístico, pescando no âmago do humor de Chico Anísio os significados plurais concomitantes ao óbvio sentido cômico.
Olhar pra mim de frente você não ousa
Seus olhos meu amor são olhos de raposa
Olhos de quem caça e às vezes foge do caçador
É um animal quem me abraça é um animal quem me beijou[187]
Esta canção tem um delicioso ritmo afro-brasileiro antigo, pré-samba, meio lundu, meio jongo, meio toada rápida, ao mesmo tempo com sabor pós-moderno (em “Perspectiva” temos um lundu realmente). De onde Mautner tira essa influência negra do século passado? Pesquisas musicais? Memória de sua mãe negra? Simbiose com os rios subterrâneos da música popular brasileira? Inconsciente racial?
Tenho cada vez mais a impressão de que o que dificulta o sucesso de massas de Jorge Mautner é seu imenso talento, sua genialidade, o excesso luxuoso de informação com o qual ele trabalha. Quem sai perdendo com seu ostracismo ou invisibilidade é o país e o povo do país. Quem ganha são os que têm acesso a sua arte e o futuro, que com certeza se alimentará de seu trabalho.
Apenas pela retomada e novas sínteses do lundu, do jongo e do maracatu ele já seria imprescindível em nossa cultura.
A música inteira é repetida, primeiro com o cantor quase virando bicho, fazendo uns rugidos-latidos aqui e ali, e depois com Jorge fazendo a onomatopeia de um animal indefinido, meio urso, meio lobo, meio cão, meio coiote, seguindo as frases melódicas como se a letra estivesse sendo cantada (quase podemos prever as palavras, o bicho faz as divisões e tônicas, e até os gritinhos expressivos do cantor) por um animal ou por um homem metamorfoseado em animal. Temos a impressão de que o cantor fez devir-nimal através do devir-mulher, da relação amorosa, e que diante de nossos sentidos pasmos ele vai se transformando, para se tornar totalmente bicho, mantendo apenas o afeto musical ou a paixão que o faz continuar entoando seu jongo atômico.
A realidade brasileira é, em “O boi” [188] vista com cores escuras, uma realidade que pode mostrar seu lado brutal (com tudo que já se conhece, qualquer pessoa conhece, sabe das corrupções governamentais do país, do descaso com o povo, da exploração internacional, dos crimes sócio-psico-ecológicos[189]). Ele diz que canta aos “companheiros e ao povo do abismo”. “Por vezes pairava por ali Emanuel Brasil o escritor-dançarino, mas que na verdade era de ‘outra turma’, eu ora frequentava uma, ora frequentava outra, sempre fui assim. Um dançarino de abismos.”[190]
Como a vida humana é realmente absurda! Tudo depende de uma escolha baseada no abismo. O olho do abismo atrai porque ele é a saída para uma outra dimensão. Freud tinha medo de analisar Nietzsche porque ele havia olhado demais para o abismo. O mesmo se pode dizer de Dostoievski, mas ele segurava a mão de Jesus Cristo. [191]
A reação do eu-lírico é de estupefação e impotência (há a potência de escrever e cantar, mas politicamente o eu-lírico se identifica com o povo que se sente impotente, ao contrário por exemplo de “A Vingança é a Origem das Leis”), que chega às raias da alegoria, onde a parte da elite que controla o governo e tem envolvimentos mafiosos é chamada de “sinistra ave”, e o povo e o melhor da nossa realidade é chamado de “boizinho”, numa dicção própria ao povo do interior, que tem um apego sentimental ao boi, ao cavalo e ao jumento (que ele mesmo come, quando precisa, o que não o impede de se apegar afetivamente a eles).
Já a música e o arranjo são outro exemplo da síntese de tradição e contemporaneidade, com ritmo e balanço de reggae mesclados a xote e moda caipira.
O “Samba da Gillete” mantém o clima de denúncia política [192]; tem o sabor da primeira metade do século XX, da bossa que se consolidou em torno do gênio de Noel Rosa, que reedita no estilo da melodia e até mesmo da letra (mais forte e bruta, mas prosseguindo na linha de “Onde Está a Honestidade?” e “Positivismo”), até no modo de cantar Mautner nos faz lembrar dos cantores antigos brasileiros (coisa que acontece sempre, pois ele pronuncia um r especial como não se faz mais no Rio de Janeiro, e escande as palavras sem perder o ritmo, valorizando-as e dando ao seu canto o sabor um pouco dos cantores da ópera alemã e também dos nossos seresteiros), e neste caso os que cantavam os sambas como os de Noel Rosa, com o alongamento das síladas átonas finais e um trinado todo especial nas tônicas (que pode ser substituído por um alongamento também) próprio da malandragem carioca do início do século XX e que era marca registrada de Noel Rosa, Marília Batista e Aracy de Almeida.
“Positivismo” fica muito bem na voz de Mautner, e sua decepção com a figura do “Samba da Gillete”, sua melancolia, são exatamente as mesmas que Noel demonstrava com as amadas ingratas, os estelionatários da nação e as elites insensíveis à força, à sabedoria, à beleza e à malandragem do povo, do qual ele era afim (como por exemplo em “Filosofia”).
Em “Samba da Gillete” aparece a situação caótica e insuportável da classe média, da elite e dos artistas honestos do Brasil, obrigados a conviver om elementos de altas posições sociais envolvidos (como é de domínio público e notório) com todo tipo de crime e falcatrua, e que pagam famosos advogados que têm trânsito nos kafkianos trâmites da tramóia e que os inocentam totalmente, tornando-se esses elementos figuras de ilibada reputação e ficha limpa e grande penetração e poder de decisão, e estando ao mesmo tempo envolvidas com o pior do submundo do crime organizado internacional. Que reação pode um artista ou uma pessoa de classe média alta ter quando o encontra na festa mais cotada ou em qualquer outro ponto do circuito da alta sociedade?[193]
Dolorosamente ele inventa uma retorcida dialética para justificar o fato de que fala numa boa com ele, que no dia anterior saíra no Jornal em todo o Brasil (JB, Globo, Folha, Estado etc.) ao lado do pior e mais nefando rato, envolvido num bárbaro crime.
O clima dá uma melhorada com a próxima música, intitulada “Alcaçuz”, outro bolero, todo construído com antíteses (ideias contrárias, que retratam o amor, porque ele tem os dois lados, é “a pimenta e o alcaçuz”, e o seu sabor está justamente nestes extremos), até o esplendoroso paradoxo (uma ideia que contradiz a si mesma) final, que expressa magistralmente o apego amoroso:
És a pimenta e o alcaçuz a tormenta e os dias mais azuis
És o fogo e a água o eterno jogo do amor e da mágoa
És o doce e o amargo mas fosse como fosse
Mesmo não tendo você não te largo[194]
Depois está a faixa “Quando a Tarde Vem”, já citada, e outra canção de amor, “Canto do Espanto” (cantado apenas por Celso Sim). [195]
O surgimento do amor é visto como o “Inesperado, Inesperado” que assusta e sacode o eu, como o hexagrama 5l A Comoção do I-Ching, que sacode tudo, “tudo se faz novo” como diz São Paulo no Novo Testamento, que enxuga o pranto e provoca “Espanto, Espanto” (e aqui há uma aproximação do amor e da filosofia, pois Mautner gosta de comentar a ideia de que a filosofia se faz quando o indivíduo se espanta com o comum, com o que todos veem e acham comum, “por que existe o ser?”).
A melodia e a letra em crescendo são imagens icônicas do sentimento que vai se tornando cada vez maior, ou de um ato que vai se avolumando em intensidade até chegar ao orgasmo.
As notas da música são ascendentes, tornando-se cada vez mais agudas, um teste para o cantor (prova pela qual Mautner já passou várias vezes, por exemplo na gravação do lp Jorge Mautner as frases melódicas em notas altas que se tornam mais altas ainda, oitavadas, no final do “Rock da Tv”) ao qual Celso Sim responde magistralmente.
Depois temos “A Bandeira do Meu Partido”, já reproduzida atrás, e a faixa “Dona Catulina”, que são versos de cantadores cegos do nordeste, cuja autoria se perdeu, e que foram recolhidos por Mautner, faixa em homenagem a Chico Science, na qual Mautner declama os versos “Saudação a Palmares” de Castro Alves. Esta citação em meio a tantos clássicos europeus é justa homenagem e reconhecimento de um grande poeta que foi e continua sendo muito injustiçado, apesar de seu aparente sucesso, como Sousândrade, pois os dois têm uma preocupação político-social panracial e pan-americana e são pioneiros no Brasil no tratamento do amor real e realizado.
E a canção “Viajante”[196], que já fora gravada por Fagner, e que aqui aparece em com outro arranjo.
A carreira de JM ganha novo impulso quando, em 2002, aos sessenta e um anos de idade, grava o cd Eu Não Peço Desculpa, com Caetano Veloso: Shows da dupla no Via Funchal de São Paulo e no Canecão do Rio de Janeiro. No mesmo ano sua obra literária é editada completa, Mitologia do Kaos. JM é homenageado com uma festa no consulado da Áustria em primeiro de outubro de 2003, ganha o Grammy Latino no dia 3 de setembro pelo melhor disco e melhor música, “Eu não peço desculpa”, e mais.
Ouvi o cd antes de estar totalmente pronto, com as faixas ainda fora de ordem, na casa de Mautner. Eu fiquei boquiaberto com a qualidade do trabalho, e também com a atitude de Jorge, que parou do lado do toca discos, e ficou de pé, feito um adolescente, orgulhoso, esperando pela minha avaliação do seu trabalho.
O título é ao mesmo tempo sério e irônico, e mostra a atitude de não arrependimento e ao mesmo tempo a compreensão por parte do artista de que a sociedade esperava justamente isso dele, um pedido de desculpas, pelo seu modo torto de ser, pelo quanto ele balançou o coreto. Trata-se do primeiro verso da primeira faixa, “Todo Errado”, que é a grande ponte entre este trabalho e o individual de JM, pela sua melodia e pelo tema de romantismo rasgado, bem como o violino que está mais lindo que nunca e o jeito que Caetano canta, se integrando e entregando de cara ao universo de JM. Há três parcerias do dois neste trabalho: “Tarado”, que mostra a perpetuidade do desejo para lá da juventude, JM letrista se colocando como um Henry Miller ou mais ainda como um Bukowski; “Homem Bonba”, que junto com “Coisa Assassina”[197] (em parceria com Gilberto Gil) discute as questões da droga e do terrorismo, que se tornaram tão ligadas politicamente depois do atentado contra o World Trade Center, o Pentágono e (quase) a Casa Branca de 11 de setembro de 2001; e “Graça Divina” (sempre as letras são de JM), lindo fado que fala justamente do fado poético, do dom que é o destino do artista (notem-se as rimas duplas, como “prosa e verso” e “rosa do universo”) [198].
“Cajuína” de Caetano, cantada logo depois por Mautner, leva adiante o aprofundamento do mistério e se comunica com esta canção, quando pergunta: “Existirmos, a que será que se destina?”. A forma como Mautner canta e o arranjo que por causa disso se fez parecem eslavos, o que ainda é mais ressaltado pela aspiração do h da palavra portuguesa homem, que Jorge Mautner faz como se estivesse falando latim.
“Urge Dracon”, de Mautner, traz palavras imperiais em latim, que Jorge Mautner vai pronunciar com rigor, para depois um coro constituído por Caetano Veloso, Kassin, Nelson Jacobina, Davi Morais, Dadi Carvalho e Berna Ceppas saudar JM como “nosso guia” [199].
O “evoé” saúda Dionísius (Baco latino), herança grega, e o “colofé” a herança africana através do candomblé.
A canção, que o próprio Mautner define como auto-ironia, e que a mim parece mais uma criação coletiva, brinca ainda com o belo “Hino do Grêmio”, composto em 1953 por Lupicínio Rodrigues, que se inicia com os poderosos versos:
Até a pé nós iremos
Para o que der e vier
Mas o certo é que nós estaremos
Com o Grêmio onde o Grêmio estiver
Caetano regrava “Maracatu Atômico” com ritmo pesado e muita percussão e faz a que considero a melhor leitura de “Lágrimas Negras” (ambas em parceria com Jacobina). Os arranjos de todas as canção são primorosos e supercontemporâneos, num grande trabalho de produção de Caetano e Kassin.
“Doidão” de Mautner ridiculariza os drogados que se supõem iluminados e nem conseguem lembrar o que iam dizer, e faz pendant com “Coisa Assassina”.
De JM e Nelson Jacobina são ainda “Morre-se Assim” que trata do tema da morte encarado de frente, como algo inevitável e instantâneo (onde cita  “A. B. Surdo” de Noel Rosa e Lamartine Babo, 1930, fox que satiriza o “futurismo”; ainda a reparar é o uso de várias conjunções adversativas: “Mas, porém, contudo, todavia, no entanto, outrossim”, que soa como “outro sim”, e falam da permanência da vida), e “Manjar de Reis”, em que de novo JM prima pela perícia de versejador com rimas construídas na alternância da vogal e aberta e fechada, como palavras-constructo (reis, canapés, vez, cafunés, nudez, pés, timidez, picolés) que revelam seu âmago no pedido: dês, és; o amor é associado ao comer, duas fontes alternadas de prazer, como centros que se amplificam mutuamente, sexusplexus nexus; e a música de Jacobina é total-carnavalesca-erótica-serelepe [200].
De Caetano há ainda as novas “O namorado”, que brinca com a canção “A namorada” de Carlinhos Brown (“A namorada tem namorada”, “O namorado tem namorado”) e “Feitiço”, resposta antropofágica a “Feitiço da Vila” de Noel Rosa, que afirma os valores negros e do sincretismo cultural, belo samba cantado por Caetano, Mautner e Gil, juntos.
Caetano faz referências minimalistas e meio inconscientes a Mautner, ou brinca com isso, pequenas homenagens ou formas de mautnerianizar, como nos versos iniciais desta canção, que mostram alguém gaguejando como titubenado (“E-ela é ma-mais que demais”), por tesão e/ou admiração, o que Mautner fez na gravação original de “Olhar bestial”, em Para Iluminar a Cidade, “Na-não a mal/O se-seu olhar/É bestial”... Já a segunda parte de “O namorado” lembra os preciosos versos de matiz oriental do “Samba japonês”, de autoria de Jorge Mautner: (“Que importa o que se diz/Se a tarde cai num tom feliz/E a brisa bate leve e não tem medo/Se a onda quebra em pérolas e verdes tão sutis/E a luz do sol no céu não tem segredo”); enquanto a melodia também parece oriental, nota por nota como se cada uma fosse uma jóia, ainda como no “samba” mautneriano. Caetano aqui reverte uma visão mais comum da música axé, no caso não é ruim que o namorado tenha namorada, isso é excitante, como quando cita “Eu sou negão”, de Gerônimo (disco do mesmo nome, Continental, 1987), que ele vai reverter na sua “Eu sou neguinha?” (Caetano, 1987), sempre problematizando a sexualidade e o homoerotismo.
Há ainda “Voa, Voa, Perereca” de Sérgio Amado (brincadeira a que Caetano dá peso com sua interpretação) e “Hino do Carnaval Brasileiro” de Lamartine Babo, imensa marchinha, máquina tropicalista avant-la-léttre, que enaltece o carnaval-Brasil pelas suas milhares de garotas, cujas cores fazem lembrar produtos de grande exportação, como o café e a laranja, e pelo pandeiro, que “desce o morro para fazer a marcação”.
Ouvir a música de JM nos provoca alteração do estado de consciência, ler seus textos também - mas não é o mesmo tipo de alteração. As canções nos deixam num estado de humor e festa. Os ensaios provocam otimismo e aceleração do pensamento, euforia sináptica. São mais propícios a provocar insights e sínteses verbais, conceitos expressivos. O terceiro tipo de estado de consciência alterado provocado pela obra de Mautner é o de seus textos em prosa ficcionais.
A proposta evolutiva individual-coletiva é clara e o tempo todo demonstrada, mesmo que na potência superior da leitura plurissignificativa, JM reinventa e redimensiona o texto de “duplo sentido”, como em “O encantador de serpentes”, parceria com Robertinho de Recife, em Bomba de Estrelas, onde “Sobe cobra/A cobra tem que subir” refere-se aos faquires do oriente que tocam e hipnotizam cobras, à excitação sexual masculina (e aqui estaria a malícia do teatro de revista e das canções sacanas) mas também ao despertar de Kundaline, a serpente de energia que ascende pela coluna vertebal abrindo cada um dos chakras até o topo, e provocando o desenvolvimento da terceira visão: “E tento conseguir/Um jeito uma monobra/De VER subir a cobra” (no encarte do lp a palavra vem realmente em maiúscula). Como em Um Novo Animal na Floresta de José Carlos Oliveira, o personagem do profeta Jorge, desiludido com a luta política da extrema esquerda radical durante a ditadura militar, parte para a droga - porém as suas conclusões são muito diferentes das que teve José (o importantíssimo escritor que foi e continua sendo boicotado).
Em “O Nascimento do Profeta”, capítulo de Sexo do Crepúsculo de Jorge Mautner, lemos:
Jorge estava irritado e sorria.
Foi quando surgiu a droga.
A droga santa, a droga maldita.
Aquela que em uma hora humaniza o homem.
E humanizar é paganismo, isto é: desbitolar, descristianizar, acabar com o idealismo tolo que divide o bem e o mal, a alma e a carne.
A droga era: ÁCIDO LISÉRGICO!
E um doutor de bigode e pronúncia nortista ministrava esta droga.
Em poucos segundos entraremos no kaos?
Jorge, o profeta, via a Humanidade toda tomando ácido lisérgico e entrando num novo mundo pagão, livre, dialético do kaos.
Fim de idealismo, das bitolações. Eis a saída?
E caiu espumando no chão.
Só que ele descobre algo ainda mais revolucionário:
Mas o ácido lisérgico cada um traz dentro de si. É a paixão de cada um, a estrada de cada um, a vida de cada ser com suas amarguras e explosões de alegria, no fim dá um caldo com gosto de sorriso tênue chamado mistério.
O ácido lisérgico é o sangue de cada um.
São João já tomava este ácido, tinha-o dentro de si e Cristo derramou-o sobre a cruz e embebedou a terra com ele.
Cada profeta derrama seu sangue, de um modo ou de outro.
O kaos será o reino dos instintos em que o homem socialista viverá.
O mundo da plenitude e da contradição. Do movimento total.
E o profeta divagou mais um pouquinho.
Tudo era tão lindo!
E terrível
E o profeta beijou a terra.[201]
Sexo do Crepúsculo, ágil romance dividido em nove partes (que parecem contos independentes), traz o tema da guerra que tanto preocupa JM. Loez é um comandante da guarda negra de um herói-messias-ditador de um povo belo e triste (e aos poucos vamos reconhecendo no estranhamento das descrições que esse povo é o germânico e o seu ditador é Hitler; os nomes próprios são em alemão, como Loez e Franzl), cujo líder misticamente datou o início de uma guerra, para a qual ele vem se preparando e que deverá afirmar a superioridade de sua raça, para a próxima primavera, e ainda é outono. Loez procura seu líder e lhe pede férias, pois ainda é virgem apesar de já ter vinte e sete anos. O ditador fica muito feliz com a castidade de seu soldado, que ele chama “um puro”, e lhe concede férias até à primavera. Em seu castelo Loez se faz chicotear por puro gozo e cavalga nu, até encontrar um menino que ele faz seu amante. Depois vem a guerra e o menino é morto na invasão da Rússia. E ele encontra um menino russo que é igual ao primeiro, que ele acredita ser o outro ressuscitado (pois se crê um escolhido dos deuses, como seu líder, e merecedor de tal prêmio), que também é morto. O mesmo tema do menino ressuscitado aparece também em Vigarista Jorge. Podem-se aventar várias possibilidades de interpretação: a ressurreição do autor, o amor que sempre volta, a infância e as esperanças da infância que renascem, o homem novo. A guerra é perdida e Loez condenado à morte. Quando vai para a execução vê um terceiro menino igual aos outros dois, e, sob o deboche dos guardas que o levavam, tenta se soltar para ir ter com o menino, que se chama Franzl, é alemão e vítima da guerra, está abandonado entre os escombros, e é seviciado por Robert, um soldado americano que também tem fascinação por Hitler, e acha que ele estava certo, e que o grande perigo era mesmo o comunismo. Robert está muito feliz porque agora os americanos têm a bomba e os russos não têm. Franz é adotado pelos Fuchs, um casal de milionários, de quem se torna o único herdeiro quando eles morrem. Para fugir de sua tristeza e de seu tédio vem morar no Brasil, onde encontra Frederico (cujo pai era da elite e seguidor de um líder de extrema direita radical anti-comunista), e os dois se descobrem como homossexuais ao se apaixonarem e passarem a viver juntos. Neste ponto o profeta Jorge entra na história, tentando tirar o casal de rapazes de sua amargura, tentando tirar os revolucionários de esquerda de seu radicalismo (estes que também têm um líder carismático e messiânico, como os nazistas e os capitalistas). Quando Loez comandava um campo de concentração ele mandou um violinista judeu tocar enquanto fazia amor com o menino, depois matou o judeu. Este personagem sem nome já era o primeiro aparecimento de Jorge, sob a forma de um prisioneiro dos nazistas. Todos (os homossexuais, os jovens da elite, os comunistas) consideram Jorge um mistificador, e até ele chega a duvidar de sua missão. Vai por uma estrada, onde os dois rapazes fazem amor, o povo passa e um playboy de óculos escuros e moto corre com um revólver na cintura, para matar “baianos”, elementos simples do povo de quem ele tem medo e por quem nutre desprezo, numa antevisão dos jovens neo-nazistas e também dos filhos de classe média alta que estudam artes marciais para espancar e matar pessoas pobres ou aqueles que gostam de queimar índios emendigos. Jorge descobre a droga (LSD) e depois o Kaos, que vai ser a sua redenção, tem uma série de visões e se entrega à sua pregação e ao gozo dos prazeres com a sua “Família Dionisíaca”, um rapaz e uma moça com os quais ele faz amor. Vemos neste romance (como nas letras das canções) a denúncia do nazismo histórico e do nazismo disseminado pela direita e pela esquerda, a mesma intolerância e o mesmo fanatismo, a problematização da questão sexual (o título, voluntariamente ou não, e mesmo que o romance tenha sido escrito na década de 60, se rebate sobre este outro, O Crepúsculo do Macho de Fernando Gabeira, e que também denuncia a hipocrisia e o anacronismo do machismo) e da questão da felicidade humana, que passa por Eros e Thanatos, e que tem que encontrar uma nova forma de expressão individual e social, que é a procura do personagem profeta Jorge.
No campo social o pensamento de JM revela influências de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, em uma formulação “otimista” que alguns consideram ingênua, mas que é científica e comprovada, e a única que mostra a nossa realidade sob uma ótica nossa, tributária da arte, principalmente dos modernistas de primeira geração, a literatura de Oswald e Mário de Andrade (que também pensaram teoricamente o problema), a música de Villa-Lobos, a pintura de Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti etc. Em seu Panfletos da Nova Era Mautner prevê que um novo Brasil, coberto de hidrelétricas e de células de energia solar, celeiro do mundo, com consciência ecológica, será uma sociedade “social-democrática-ecológico-planetária-nacionalista-internacional-existencialista cujo Estado terá ideologia antropofágico-eletrônica”[202].
Ainda mais: do Brasil irradiar-se-á a matriz principal, digamos, o molho especial da grande comida mundial, que a cultura planetária estará por estas alturas internacionalizando. Se a Espanha com sua rica cultura, segundo Carrillo, chefe do PC espanhol, fará importante contribuição à cultura mundial, e já o está fazendo, imagine-se então os KWs força-energia que representam por si só a nossa atual contribuição paraa a cultura mundial já em elaboração permanente! Só aquilo que os batuques, os cantos de Iansã representam para uma futura psicanálise-encenada-ritual-candombleizada! Qual o exato valor das radiações e fabricação de ondas supervitais biogeneticamente como nós o fazemos num som de tamborim, bater de capoeira? Capoeira: (saúde, luta e ginástica = em valor ao Kung-Fu e Tai-Chi) e de todos os nossos supervalores de energia vital-amazônica, sensual sendo fabricada pelos nossos gênios crioulos, negros, cafusos, mamelucos, mulatos, índios e brancos anegralhados como eu? Isto sim é a verdadeira cultura popular das massas do planeta terra! O samba e maracatu e o rock de nossas Américas negro-índio-brancas (esperança de união ecumênica realizada!) são injeções de super-B12 para cansados vampiros dos mundos de plástico. E esta sim, a MPB, é a cultura de massas, de onde aprendo eu, aonde exatamente se localizam meus mestres, Luiz Melodia e Jakson do Pandeiro, a originalidade e especificidade de nossa cultura da morenitude. /.../
Brasil do séc. XXI é isso, a realização da mais linda visão das Américas; onde o 1°, o 2°, o 3° e o 4° mundo estão conglomerados e fabricaram um carnaval-ecumênico de minorias abraâmicas unidas em toque de batuque, numa cultura que antes de Zaratustra, já dizia sim à própria tristeza, para superá-la na volta por cima, na afirmação da própria sensação de cócega de prazer que é o desafio permanente da vida![203]
A mais bonita contribuição política do pensador Mautner sem dúvida é essa encarnação da utopia, é o túnel de tempestade que ele fabrica e que traz a utopia para perto de nós, a tolerância possível, a diferença necessária, a alegria total e a felicidade real.



                            Capítulo 5: máscaras

- “Preste atenção! Vou dizer isto porque estou bêbado. Existem quatro máscaras. A dança, o sexo, as flores e a morte. A dança é o movimento de tudo. É a ação em síntese final. O sexo é o amor e tem que existir. As flores são a beleza, a estética. E a morte é o fim. Quem já usou as três primeiras máscaras e sabe que as usou pode esperar que logo mais irá usar a quarta. Na verdade este alguém sempre usou as quatro máscaras ao mesmo tempo. Nenhuma delas tem supremacia mas este é o sentido trágico da morte.”
                                                                            Jorge Mautner[204]

Uma das possibilidades formais deste livro seria (pensei em escrever um) tratado de mautnerologia ou baile das máscaras:
v  Jorge-cebola - ele diz que tem quatro cérebros e quatro máscaras, mas podemos sempre encontrar mais onde menos se esperava.
v  Jorge-colosso - Caetano afirmou que ele tem um pé sobre o século xix e outro sobre o xxi, por entre as suas pernas ciclópicas passa o rio sem fim do século xx.
v  Jorge-faca - toda a ferocidade que ele consegue expressar desmontando a ideia de metáfora ou de ficção, criando a sensação de realidade de suas muitas mortes em seus livros ou dos muitos assassinatos e pactos vampirescos e demoníacos, ao mesmo tempo síntese do bem e do mal, ele se faz corpo santo para receber toda a miséria e grandeza de seu país e seu mundo em seu tempo, como em Miséria Dourada, onde é impossível discernir entre bandidos e mocinhos na sociedade capitalista e técnica do final do século xx e adiante.
v  Jorge-ponte - entre o humano e o divino, entre este e o demoníaco, entre a razão e bestialidade, entre o pré e o pós-histórico, entre o xix e o xxi, entre o segundo e o terceiro, o quarto, o quinto e assim por diante, entre o caos com c e o kaos com k, entre o humano e o super-humano... Ao cantar “Mackie Messer” (Mackie faca) de Kurt Weil e Bertold Brecht (da Dreigroschenoper, como quem diz, Ópera dos três vinténs) faz a ponte expressionista (grito de Munch, die Bruck) entre o tropical “atlante” (novo, bárbaro, nosso) e o hiperbóreo (velho, bárbaro, nosso também), total antiestatal no prédio (no auditório) do BNDS na avenida Chile (“e avenida em russo quer dizer perspectiva”) n° 100, a 23 de maio de 2002, antevéspera do lançamento de seus livros reunidos em caixa, onde pudemos ouvir seu alemão e a tradução fria e crua intercalada com o canto que fez de cada verso-tubarão de Brecht.
v  Jorge-água - se parece reinventar novamente, redescobrir o ditirambo, de novo como seu avatar Nietzsche, tem ares de pré-socrático, em suas falas e textos, diz que só há átomos e paixão como Demócrito, afirma Heráclito e Parmênides, mas é antes de tudo Tales que volta em suas falas, o primeiro homem a expressar o falar do pensamento filosófico no ocidente, que disse que tudo é água (chuva, tempestade, mar).
v  Jorge-lab - é ele mesmo quem confessa: “a vida é um absurdo, e eu um experimentalista que usa os seres e especialmente a mim mesmo, como laboratório, porque não creio nem no amor nem no ódio, pois segundo o mestre Jean-Paul Sartre o amor e o ódio são duas projeções de absolutos”/.../[205]
v  Jorge-balisca - e catapulta quando lança ideias e pessoas para o ar para o além. Como nos dias 25 e 26 próximos seguintes, no evento histórico do lançamento de Mitologia do Kaos (obra completa) pela editora Azougue, no MAC Museu de Arte Contemporânea de Niterói (projeto de Orcar Niemeyer), no sábado apresentando O Demiurgo com debate do qual participaram ele mesmo, Aguilar (“aqueles loucos anos em Londres, um dia o Macalé chegou lá em casa e eu lhe dei um pedacinho de papel de pão cortado com uma gota d’água da torneira da pia e disse que era ácido, e ele viajou por vinte horas”) e a plateia, depois a exibição do clipe da música (disco e vídeo produzidos pela editora) “O Filho Predileto de Xangô”, no domingo uma enorme e vermelha lua redonda subiu sobre mais um único-irrepetível-incontestável-intempestivo-irresvalável show ao ar livre.
v  etc
Você conhece Proteu?
Hoje está provado que toda a matéria é quântica, e as características das “partículas” quânticas são (até onde se pode dizer em linguagem não-matemática):
·         1 - fazer o salto quântico (elas desaparecem no espaço-tempo e reaparecem lá adiante), a matéria muda de um instante para outro por saltos (refutando o princípio leibniziano da razão suficiente);
·         2 - a indeterminação e a incerteza, nunca podemos dizer exatamente onde ela está, há uma área onde ela “costuma” aparecer;
·         3 - refuta os princípios lógicos da identidade e da contradição, pois é partícula e onda ao mesmo tempo;
·         4 - refuta o princípio lógico do terceiro excluído, pois tendo que “escolher” entre passar pelo ponto a ou b ela passa pelos dois ao mesmo tempo, sem se dividir.
Tudo se tornou muito complicado, pois o ser humano não sabe lidar com uma realidade assim descrita, e finge acreditar que tais caracteríticas são apenas da matéria sub-atômica, e não dizem respeito ao mundo real onde ele vive. Mas sabemos que tudo é assim, e que as pessoas fazem uma grande força para fingirem que são sempre as mesmas, se enquadram em tolas dicotomias, não se contradizem, sempre são compreensíveis e previsíveis e que tudo não renasce novo a cada fragmento de instante.
Se alguém assume suas características naturais quânticas é considerado um irresponsável, um drogado, um perverso e muitas outras coisas que se dizem como expressão de preconceito e medo. Quando procurei um termo que pudesse designar sinteticamente o que pensava de Jorge Mautner e seu trabalho encontrei o nome de Proteu, o deus que se transforma o tempo todo. O nome me pareceu perfeito pois Mautner é a pessoa mais inesperada que já conheci, a cada instante ele faz a questão absoluta de dizer e fazer o que não se espera dele, e driblar o esperado e o conhecido. Além de estudar com afinco todos os gêneros e estilos para ser enciclopédico e plural em tudo que faz, ele mesmo a cada época é um outro, desconhecido, novo, com uma feição estranha, que bem parece ser de um vigarista, alguém que se faz passar por ele, e acreditamos que o é, pois mantém sua cultura gigantesca e seus temas estupefaciantes, e cremos que não o é mais, pois discorda do que dizia, diz outras coisas, cita milhões de outros casos e nomes etc. O tempo todo ele é o vigarista fidedigno.
Proteu é um personagem da mitologia grega, filho do titã Oceano e da titânia Tétis. Com a vitória dos olímpicos, torna-se servidor de Netuno, cujo rebanho de focas guarda. Mora na ilha epípcia de Faros, onde chegaram Páris e Helena depois do rapto. Proteu esconde Helena e entrega a Páris uma nuvem com a forma da mulher mais bela do mundo. Segundo esta versão do mito, toda a Guerra de Tróia teria sido travada por uma nuvem. Quando Dionísio enlouqueceu e saiu em viagem pela África e pela Ásia, seu primeiro pouso foi a Ilha de Faros[206], onde o soberano Proteu o recebe com singular hospitalidade. Como paga, Dionísio lhe ensina a cultivar a vinha e a produzir o vinho. Proteu tem o dom de predizer o futuro, porém não gosta de fazê-lo. Por isso assusta o aspirante a consulente, transformando-se em animais, vegetais, água e fogo. Se a pessoa não se amedronta e insiste, ele acaba por lhe fazer a predição. Foi através dessa insistência que Menelau, preso em Faros por ventos desfavoráveis, depois da Guerra de Tróia, conseguiu saber dele como fazer para voltar a Esparta[207]. Proteu então é aqui tomado como símbolo, a partir de suas três características principais[208]:
o   1 - Proteu é um herdeiro da tradição titânica, condenado ao ostracismo em uma ilha egípcia e a servir a um deus olímpico (e tal condição talvez explique a sua hospitalidade a Páris e Dionísio, e a sua má vontade para com Menelau). Ele é um marginal, apenas suportado no mundo olímpico; e é a outro marginal, Dionísio, a irrupção das forças titânicas no cosmos bem-ordenado, é a ele que Proteu recebe bem, é de Proteu que Dionísio recebe a melhor acolhida no seu exílio.
o   2 - Proteu é um enganador, um falsário, um ilusionista - e também um grande humorista. É um ilusionista porque faz a troca de Helena, a mulher mais bela do mundo, por uma nuvem em forma de Helena, que ele entrega a Páris, sem que este perceba a troca. É também um humorista trágico, pois permite que a mais homérica das guerras se desenrole por dez anos pela disputa da posse de uma nuvem.
o   3 - Proteu é um metamorfo, ele muda de forma incessantemente, percorrendo todo o leque dos seres vivos e não-vivos, para não ser forçado a revelar o futuro (ou para testar quem o pretende conhecer).
JM apresenta as mesmas três características de Proteu: é a irrupção da alegria trágica, do pré e do pós-racional, do dionisíaco em um mundo para lá de olímpico; é um ilusionista falsário e também um humorista (pense-se, por exemplo, no que mostramos a respeito de “Samba dos Animais”); e também é um artista e um pensador totalmente comprometido com a transformação, a transmutação, as máscaras. É aqui que a vertente filosófica de Mautner revela seu sentido oculto que sempre esteve à vista (como a carta roubada do conto de Edgar Allan Poe psico-analisado por Jacques Lacan em Escritos), seu eterno uso de máscaras (biográficas, artística, políticas, filosóficas) mostra o quanto ele é basicamente influenciado pela filosofia de Nietzsche.
Em seu primeiro lp encontramos “Quero Ser Locomotiva” [209].
Parece que é a própria canção que quer “ser locomotiva”, pois suas estrofes (temáticas) vão se engatando uma após a outra, repetindo a mesma estrutura da inicial que seguem, que se torna assim a locomotiva de um trem poético. A letra é gótica (apesar da melodia ser circular, ou, sob a influência da letra, em espiral, ascencional, já que a letra e a música têm que ser entendidas como uma unidade só duplamente determinante, que agem por retroalimentação e só adquirem significado global se apreciadas concomitantemente, e cada versão nova do mesmo cantor ou de outro ganha assim novos significados por causa do arranjo e de novas intenções que lhe imprimem as entonações e outros signos audíveis - pode-se perguntar então sobre a pertinência de um trabalho como este que necessariamente trabalha com texto e analisa sob tal ponto de vista as canções, ao que respondo que este é um ensaio filosófico/literário que visa compor com a polifonia das obras de JM uma nova polifonia, um trabalho de leitura criativo e uma tese filosófica e sendo assim as letras ganham a dimensão de partes de um grande discurso com o qual dialogamos, e além disso, procuramos suprir a necessidade da audição com descrições e interpretações que levam em conta o plano sonoro e visual das obras, e ainda: cumpre ao leitor de Proteu adquirir ele mesmo o material de que falamos e lê-lo e vê-lo e escutá-lo), ela vai num crescendo de sensação, desde a locomotiva, o telefone, a televisão e o carro que são máquinas, e o chiclete que é coisa, passando pelos animais gato e serpente, e os seres sobrenaturais do mal e do bem que são o vampiro e o anjo, até chegar próximo de Deus, no riso de amor na boca do anjo e na música que com seu banjo ele produz (o riso e a música nos aproximam de Deus). O processo apesar de ascencional é ziguezagueante:
Coisa                   Máquina              Animal                   Sobrenatural             Divino


                            Locomotiva         Gato do mato        Vampiro


                                                         Serpente
                            Telefone


                            Televisão



Chiclete               Carro                                                  Anjo                         Riso
Vemos que a predominância é no eixo maquínico, e surpreende que sejam poucas as transformações em animal (como vai ocorrer plenamente na canção “Olhos de Raposa”).
Há duas ascenções: a primeira sai da máquina, passa pelo gato e sobe ao vampiro; daí vem a queda para a serpente (que desta vez redime, tira do mal, Mautner não é mais vampiro) e ao telefone (máquina de comunicação) e à tv (idem), caindo até uma coisa, o chiclete, que inicia uma nova ascenção, passando pelo carro, nova máquina de deslocamento (como tinha sido a locomotiva inicial), e daí, sem passar por nenhum animal, chega até o anjo.
Primeiro devemos observar que em “Quero Ser Locomotiva” não se tratam de metamorfoses ou de devir completo, e sim do desejo de devir, e principalmente do desejo erótico, o que torna a canção um único devir erótico, que Deleuze e Guattari em Mil Platôs chamam de devir-mulher.
E ainda podemos pensar que as metamorfoses visam o inorgânico (num impulso gótico), não lhe interessando muito o vegetal, o animal e o humano, passando preferencialmente pelo maquínico e pelo fantástico. A este tipo de devir os autores de Capitalismo e Esquizofrenia chamam de devir-imperceptível[210].
No século XX surgiram várias obras iniciadas pelo prefixo antiAnticristo de Nietzsche, Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, Antinatureza de Clément Rosset, Antimemórias de Malraux, Anticrítico de Augusto de Campos etc.
Esta posição “contra”, esta atitude “anti-tudo”, que não é niilismo (como se chegou a pensar), mas sim o movimento do próprio espírito de negar o homem e seu mundo pequeno e esgotado, negar a história e a razão (inclusive, e, principalmente, a dialética), não pela barbárie e pelo irracional (segundo o pesadelo idiota dos racionalistas tradicionais), mas por uma super-razão, alguma coisa de menos mesquinho e impotente que o homem.
O próprio Mautner fala sobre a super-razão versus a razão medíocre (ou, segundo ele mesmo, é o arcanjo Gabriel quem o faz) na Introdução de Panfletos da Nova Era:
Mas ordens divinas me ordenaram. Foi num sonho: anjo Gabriel apareceu de astronauta cantando o: Herói das Estrelas. Parecia uma ironia cósmica. Ele de asas-atômicas cantando música minha e do Jacobina! E notei que ao invés de anéis de saturno nos dedos conforme letra da canção, tinha asteróides e nebulosas girando ao redor de seu corpo e membros alados. Cor azul. Olhos roxos. Cabelos verdes. Espada de luz. Disse-me: - “Escreva, mesmo que seja chato, linear. É para os que ainda só entendem e se apercebem das coisas através dessa linguagem convencional e estratificada. Pela música é fácil, ou pela poesia, aí você está com Deus diretamente. Mas com a Razão é outro papo. É preciso de uma super-razão, para aniquilar as gananciosas pretensões da razão-medíocre. É tua missão. Afinal, por que lestes tantos livros, filosofia, história, e fizeste política desde 14 anos 25 horas por dia? Depois de escrever tim-tim por tim-tim, tudo na língua dos caretas, você pode voltar a tocar violino e dançar pelas estradas do mundo por mais dez anos sem eu perturbar você com outra missão tipo-ensaio. Tchau. Vou para um festival rock-samba na Galáxia Orion”. E desde este dia, não descansei, enquanto durante todo ano de 1976 até 1977 (agora, julho) escrevia este livro. Suado, estaciono perante estas teclas amigas da máquina remington bem antigona. Acho que por mais anti-histórico, eu vivencio por igual a História. Aquela que caminha paralela com as atômicas-eternas-paixões-existenciais, e eis aí.[211]
Esta a grande questão, a grande inquietação, que varou todo o século XX e atingiu o século XXI, cristalina em tantos autores que citamos, que investigam por quê e como fazer a superação do ser humano, nos movimentos de contracultura, do beat ao punk uma recusa do stablishment e uma aspiração ao novo, o que as interpretações reducionistas de ordem sociológica ou psicológica só fazem diminuir e caricaturar, e ainda em Bergson, com sua razão intuitiva para superar as aporias que o instinto e a razão são para o espírito.
Sempre na margem (da própria História - o cachorro bobo que persegue a própria cauda), sempre na zona marginal (“Zona Fantasma”), é assim que surge como requinte de humor sutil o título do lp Antimaldito de Jorge Mautner.
Bem, Mautner é um anti-mitólogo e um antiescritor, logo, é um antimaldito.
Como um intelectual e artista de um chamado país periférico, assumindo com radicalidade total este atributo, não fazendo dele um acidente, e sim essência, não um desastre, e sim uma nova estrada, JM surge como poeta e escritor, se colocando diante dos grandes problemas humanos, diante, partindo do mito, do próprio fundamento do pensamento (ocidental e oriental e primitivo), comprometido com as grandes questões e becos sem saídas de nosso tempo, do existencialismo e marxismo à psicanálise, das questões da física quântica e dos impasses tecnológicos à questão da droga e da superação da consciência, à grande questão do pensamento ocidental, as forças puras, a diferença ontológica (conceito criado por Heidegger), o pensamento genealógico, que provêm do trabalho ainda mal compreendido de Nietzsche, Bergson e Deleuze.
Não me canso de implicar com esta designação, país periférico, mais fascista ainda do que “terceiro mundo”. Cumpre lembrar que Mautner nasceu aqui pelo acaso da guerra, ele é um filho da guerra e um exilado perpétuo, um judeu errante, e que seus pais são judeus-europeus-germânicos-eslavos. Então Mautner é um gringo, um “estrangeiro”? “O viajante é sempre um estrangeiro”. Em Mautner a antropofagia agiu de uma forma nova e engraçada, pois foi o asiático europeu que “comeu” nossa cultura para ser por ela antropofagizado, e tornar-se o único (ou um dos únicos? Nina Hagen que ele mesmo entrevistou em Fundamentos do Kaos parece ser mais uma) europeu judeu negro e mestiço.
Brasil na entrada de sua descolonização cultural, surgimento da nação-bebê, num mundo espacial de satélites; tudo ainda por se fazer: das reformas democráticas à maturação de sua plenitude de assumir sua original e inusitada cultura, contribuição gigantesca deste país-continente para a futura e presente cultura mundial nascente. Momentos super-épicos ainda não suficientemente detectados pela inteligentzia brasileira, ainda em sua maior parte presa às labirísticas e míopes concepções mecanizadas e semi-automaticamente copiadas (pastichadas) de espaços culturais europeus já superados na Europa, inteligentzia que em sua grande parte teme inaugurar para além de parâmetros europeizantes a pujança de sua originalidade cultural.[212]
Vejamos uma canção como “Rainha do Egito”:
Sou a Rainha do Egito sou a filha do faraó
Sou uma dessas meninas que namora a lua e o sol
/.../ Pois o ser humano seja homem ou mulher
É uma eterna criação[213]
Na gravação de Mautner a música inicia como um blues bem tradicional, para depois se transformar num dançante ritmo que Mautner inventou, a que ele dá o nome de “samba-jambo”[214], e que tem estes elementos mais a macumba, o lundu, o rock etc.
Esta capacidade de inventar ritmos com base negra fundindo música pop com música brasileira é única em Jorge Mautner, Nelson Jacobina e Jorge Ben Jor.
Notar a malícia da letra, a “menina que namora a lua/E o sol”, “Com um cigarro aceso em cada mão” (um, o cigarro da razão, na mão direita; outro, na esquerda, o cigarro da loucura), “Posso te beijar agora/Pro zig zag poder ir embora/É a barra pesada que está chegando” etc. A mulher como sujeito do discurso, assumindo seu desejo e sua loucura, seu nomadismo, a mulher equilibrada, em harmonia com a lua e o sol, a razão e a loucura, o masculino e o feminino, a mulher taoísta da terceira visão, terceira margem, terceiro milênio.
Este o mito que é um anti-mito em Mautner: o terceiro mundo[215] é o primeiro mundo do terceiro mundo. Assumir não a nossa fraqueza e incompetência (o que não significa ignorá-la, há que reconhecê-la e combatê-la) mas sim assumir a nossa novidade, a vida que brota e se renova a partir do que nós vimos trazer para a humanidade em termos estéticos, éticos e ontológicos.
Em “Aforismos correlatos de culturas aparentemente diferentes, ou Jean Sartre = Wilson Batista”, em Panfletos da Nova Era (esta virtual impossibilidade, a Nova Era, para a qual somos competentes e cínicos demais, “the dream is over” de John Lennon que pode significar o sonho acabou, o sonho está além - numa interpretação de Nelson Motta - ou o sonho é demais, é overdose, e sobre a qual o próprio Mautner escreveu em Luta & Prazer este aforismo paralelo: “A nova era, já era, se era, será!”, aludindo também à teoria do eterno retorno):
“A alegria anseia a eternidade” (Nietzsche)
“E a doçura do mundo, hein? tá no Gantois...” (Dorival Caymmi)
“Foi reencontrada, o quê? a eternidade!
Ela é o sol misturado ao mar!” (Rimbaud)
“Mangueira teu cenário é uma beleza
que a natureza criou ô ô” (Aloísio Costa e Enéas Brittes[216])
“O homem é uma paixão inútil” (Sartre)
“Além das flores nada mais vai no caixão” (Wilson Batista)
“Deus está em quem ama e não no ser amado” (Thomas Mann)
“Não se deve amar sem ser amado,
é melhor morrer crucificado...” (Sinhô)[217]
“Eu quero a lua!” (Albert Camus “Callígula”)
“A nega recebeu Nero queria botar fogo no morro” (Wilson Batista)
“É  preciso audácia, audácia e mais audácia!” (Danton)
“Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima” (Paulo Vanzoline)[218]
“Instant Karma” (John Lennon)[219]
“aqui-agora” (Gilberto Gil)
“A imperfeição é a medida do homem” (Berdiaeff)
“Nós fazemos o que nós podemos” (Jorge Ben)[220]
O anti-mito do terceiro mundo, da terceira margem[221], da terceira via, que está em pouquíssimos escritores e poetas underground brasileiros (por exemplo, Gregório de Matos Guerra, barroco seiscentista baiano), e que volta na cultura de massa na segunda metade do século XX, nos melhores poetas de sua geração, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Jorge Ben Jor, Jorge Mautner, e por que não massa?, Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, esta “estética da fome”[222] do novo e do super-humano, se está em “malditos” como Hélio Oiticica (o criador da instalação “Tropicália”, entre tantas obras, e do “quase-cinema” com slides e outros recursos), Torquato Neto (o poeta e letrista da Tropicália, que viveu na década de 60 o papel de vampiro no filme experimental Nosferatu no Brasil de Ivan Cardoso, super 8 que inaugurou o terrir, gênero por ele inventado) e Glauber Rocha, esta fúria criadora também está no “bendito” Gilberto Gil, na doce, férrea, feroz, irônica e amorosa letra em francês (para colonizar o colonizador) de “Mon Thiers Monde”.[223]
Esta canção está no lp O Eterno Deus Mu Dança, que fala da urgência da mudança e ao mesmo tempo indica que ela vem do que se chamava terceiro mundo, pelo título mesmo do lp, que cita o suposto deus africano Mu[224] (Nietzsche dizia que só poderia acreditar em um deus que dançasse). A mudança é vista como divina e eterna, quebrando a concepção ocidental de imutabilidade do ser eterno.
A canção citada fala do panteísmo como uma nova religião, que se engaja com a vida e consagra seu dia ao seu melhor amigo sol e a todas as coisas animas ou (ilusoriamente) inanimadas, e a todos os numerosos/harmoniosos (nombreux tem estes dois significados) nomes de Deus, o Oxalá africano, o Tupã ameríndio etc.
Já em “De Bob Dylan a Bob Marley - um samba provocação”, o refrão racialista, pela valorização das diferenças raciais, que Gil canta que viu pichado num muro:
Bob Marley morreu
Porque além de negro era judeu.
Michael Jackson ainda resiste
Porque além de branco ficou triste.[225]
A anti-mitologia de Mautner, que é tão estética quanto ontológica, tão lógica quanto política, ela o conduz à antiescritura. E este é um caso raro de um projeto tão consciente e mesmo assim tão realizado.
Nos Fundamentos do Kaos pode-se constatar a teoria que embasa a sua prática de antiescritura:
Caía uma chuva sutil como pintura chinesa.
Agentes da KGB guardavam presos nos campos de batalha e a CIA era criticada pelo congresso. O bando de super dotados é igual em marginalização em relação à média majoritária em termos estatísticos aos infradotados (idiotas). Os dois são exceções com funções diferentes dentro dos sistemas em movimento perpétuo.
Por entre bambuzais, coqueirais, matagais, passa um bando de executores de som: um cantor com seu violino e um tocador de violão. Com isso atraíram os pássaros, depois dentro dos túneis plásticos dentro das cidades turbinas tiveram a mesma visão.
São duas selvas iguais.
Pulsa no coração do homem, e da mulher, aquele ritmo da conquista, agora a conquista do espaço, das estrelas e da morte. Esta capacidade de urdir, tramar, imaginar, mudar em milionésimos de segundo, jogar a força da potencialidade contra os perigos e inimigos, é que capacitou a espécie a superar todos os desafios, inimigos, novos e eternos, de vacina em vacina, seguindo o conselho dos anjos (sempre belos e terríveis segundo a visão correta de Rilke) ou então em guerras (maneiras de expandir a indústria... até quando?) em que o justo aniquilou o injusto (como na 2ª guerra mundial contra o totalitarismo nazista) ou vice-versa contra os índios... mas os índios propunham uma visão que o bólide da imaginação humana já havia abandonado (o paraíso) e portanto a superação disso na ótica judaica-helênica, era superar através da Práxis e da máquina fáustica (extensão dos membros e do cérebro) a ausência do sonho como história ou anti-história a sacralizar a História, o fazer. Orgulho-me dessa tradição, ainda mais mestiço como sou, coquetel de frutas de informações de vários espaços, orgulhoso filho da sociedade industrial, só consigo ver poesia e avanço nessa maquinaria tecnológica: quando chegarmos ao computer mundial teremos a codificação da liberdade mundial, a internacionalização dos existentes a caminho da grande aventura, do eterno mistério, espanto, terrível, maravilhoso, como Ulisses (Odysseus) no espaço.[226]
E, como consequência de apostar sua vida e sua obra no anti-mito que não funda modelo e na antiescritura que não enreda nem prende os membros (mas os estende e amplia os poderes do cérebro, a máquina escritural, a “máquina selvagem”) Mautner torna-se um antimaldito, pois seu investimento é na vida[227], é na novidade que não provém do tédio, que é a produtora da alegria e que a alegria produz, a felicidade de criar vida, que agrada a vida e fortalece a vida em quem faz tal produção.
Pode-se ver esta tese bem claramente exposta em “Árvore da Vida”, do lp homônimo.
A melodia desta canção, como as de muitas outras, é de parceria com Nelson Jacobina, um grande e precioso violonista/guitarrista/compositor/maestro/arranjador, que sempre acompanha JM, desde seu primeiro lp, e que ligou sua carreira totalmente à do poeta, ele que é também um poeta dos sons melódicos e harmônicos e dos ritmos, os quais não podem ser aqui observados.
Na letra de “Árvore da Vida” o desejo aparece como aquilo que eterniza a vida, o que faz com que nada passe, que acabe renascendo; os versos se imbricam numa estrutura lógica vegetal, mesmo de porre, mesmo fantasioso, o amor pode fazer a vida se perpetuar. As palavras parecem sair umas das outras, “pra ser” se torna “prazer”, “som” vira “zum-zum”, quase que o seu contrário, e o prazer se inicia no paladar e vai até o sexo, “bombom” e “bumbum”.
Depois novamente a semelhança fônica abrigando ideias antitéticas, o “morre” de Thanatos sendo repelido pelo “porre” dionisíaco, antídoto à morte e propiciador do amor Eros: “Então me abrace/Mesmo num porre”.
 E o “impasse” do que “passe” e do “abrace” pode produzir o “renasce”.
As citações de Mallarmé e Göthe (citações assim explícitas e grifadas em música são invenção de Mautner, precursor dos samplers) saltam das páginas dos clássicos cheias de vida pela releitura do contexto e da interpretação entusiasmada do cantor/ator/pensador.
Mautner é igualmente tudo que ele é, ele é tão ator quanto filósofo, cantor, compositor e escritor. Em suas apresentações ao vivo em todas estas décadas ele sempre coloca frases curtas, longas ou discursos gigantescos no início, no final e no meio de suas canções (Jacobina já tem a prática de ficar tocando um motivo ou improvisando enquanto Jorge fala), declama, cita clássicos, dá aulas, fala de política, tudo com interpretação de ator, o arco do violino pode virar espada de samurai, ele pode se encostar na parede e deslizar por ela até o chão, imitando o deslumbre da direita e da esquerda com suas histórias sobre Hitler, ele vira mosquito, máquina, telefone, sirene, borboleta, guri, gueixa, samurai, doutor, néscio, macaco, robô, bon vivant etc.
E a cada apresentação ou gravação as falas se modificam, às vezes levemente, às vezes muito. A reunião das variações de seus discursos entre os versos de suas canções daria um livro mais extenso do que este.
Sobre o tema da permanência e persistência da vida apesar de todas as mortes, através da alegria e do amor, vejamos a letra de “Tataraneto do Inseto”[228].
Mautner como cantor se liga ao que Deleuze e Guattari chamam de modo menor, que se tornou clássico a partir da Bossa Nova e do canto de João Gilberto (que teve como precursores, no campo melódico e rítmico, Orlando Silva, e no campo de modulação e empostação Noel Rosa, ótimo cantor, e em Mário Reis, que fez a estranha fusão do supersofisticado com a locução de malandro carioca da época).
A força do modo menor do canto de Mautner aparece bem nítida no lp Árvore da Vida, onde sua voz é acompanhada apenas pelo seu próprio violino e pelo violão de Nelson Jacobina, dois instrumentos tão acostumados a ela que as três emissões parecem se complementar como se fossem uma só, ou três fases de uma só.
O modo menor tem muito da língua falada, de interpretação, a empostação é diferente do canto maior (lírico, belo canto, seresteiro, roqueiro, puxador de samba); o modo menor remete ao tom menor (é claro que os dois tipos cantam em todos os tons), ao íntimo, ao sentimental (podemos ainda pensar em Maysa, a importante musa citada tantas vezes nos romances e Dolores Duran, que Mautner muito admira, tendo inclusive um samba-canção “de fossa” num estilo próximo ao delas: “Zum-zum”).
Os nomes importantes do modo menor na geração posterior à Bossa Nova são Jorge Mautner, Caetano Veloso e Chico Buarque. Outros tantos há nas gerações subsequentes, e podemos citar o caso belíssimo de Marisa Monte. Mesmo como compositora e tamhém pela composição do repertório, Marisa se aproxima de Caetano e Mautner (como de outras vertentes da MPB, o rock dos Titãs, sendo ela mesma uma titânia, o novo concretismo de Arnaldo Antunes, a fusão de Carlinhos Brown, o samba de raiz dos morros - chegou a gravar um cd inteiro com a Velha Guarda da Portela, escola da qual seu pai Paulo Monte foi presidente).
Quando foi lançado o lp Bomba de Estrelas, em 1981, Nelson Motta escreveu uma crítica muito favorável no Segundo Caderno do Jornal O Globo, elogiando as composições e os arranjos, e avaliando como bastante oportuno o convite a tantos cantores famosos para cantar as faixas com Mautner. Aqui ele falava com cuidado, dizendo que este grande compositor e poeta tinha um defeito, que era o de não cantar bem, e por isso é que era importante a presença dos outros cantores para que o lp se tornasse mais “palatável”, mais assimilável pelo público. Nelson Motta assim atribuía o ostracismo de Mautner à forma como ele canta; tese que foi refutada pelo fato do lp com os convidados não ter tido uma divulgação maior do que os outros, onde Mautner canta sozinho (e talvez raciocínio semelhante tenha-o levado a dividir com Celso Sim os vocais de Pedra Bruta).
Como avaliar o cantor Jorge Mautner? Já sabemos que ele pertence à categoria do canto menor, que foi valorizada a partir principalmente da Bossa Nova, e que hoje tem o seu espaço. Também temos em mente o fato de que ele aprendeu alemão antes do português, e o seu português foi aprendido com sua babá, no convívio com a cultura negra e o candomblé. Logo, seu idioma nacional é duplamente estranho e estrangeiro, duplamente a voz de uma raça que se levanta contra a opressão, e para quem o português (e até o alemão, no caso dos eslavos e dos hebreus) aparece como a língua do dominador, um código que precisa ser conquistado e que nos é alheio e até repulsivo. Disso ele fez um domínio próprio (nos dois sentidos: apropriado e seu) e extenso do vernáculo, sempre emitido como uma voz marginal, um cigano, um estrangeiro, um índio ou um et - o que dá um charme todo especial a sua emissão, como no caso de seus famosos “r”s - o “íidiche” de um único indivíduo, no qual ele sabe criar e se expressar com rara eficácia.
Quando canta Mautner desafina, semitona ou atravessa no ritmo? A resposta a estas três perguntas é: “não”; pelo contrário, ele sabe trabalhar firulas e filigranas melódicas e rítmicas, sempre dentro do tempo e do tom (e alcança registros altos além de seu alcance natural de barítono através de falsetes muito bem feitos).
O que então incomoda (o público, Nelson Motta...) no canto de Mautner (já que o modo menor tem a sua aceitação e ele não desafina nem atravessa, isto é, não erra a música)?
Acredito que haja dois motivos de natureza diferente, que parecem se confundir num só. O mais forte e preponderante é o mesmo estranhamento e novidade radical, ao lado da força da cultura europeia, literária, filosófica, e da cultura de massa e das raças não-europeias, que faz com que algumas pessoas sintam a necessidade de fingir não estarem vendo e ouvindo o que ele é, faz, canta e diz. O modo de cantar de Mautner incomoda pela sua supersofisticação e pelo recarregamento (o neologismo se faz necessário para expressar o fenômeno) de formas e informações novas e arcaicas, populares marginalizadas e estranhas que traz.
O outro motivo é a sua expressividade, o seu expressionismo, o quanto seu canto é teatral, mas é mais que teatral, é um canto perfeito de ditirambos helênicos, é teatro mas é mais do que teatro, é festa dionisíaca, que incomoda ainda mais ao mesmo tempo que seduz[229].
 Sagaz, afinado com a realidade da comunicação de seu tempo, sentindo-se possuído por uma missão que envolvia atingir os outros artistas e o público com suas palavras e ideias, e sabendo o quanto um escritor sempre era marginalizado no Brasil, e amando tanto a música, ele se tornou músico e cantor, podendo viver do palco e difundir por si mesmo sua mensagem (e tendo ainda a sorte grande de encontrar os mais refinados músicos prontos a colaborar com ele, como acontece com Nelson Jacobina e outros), Mautner desenvolveu e aprimorou a estranheza de seu canto único (que ele ainda mistura à sua forte veia de ator, declamando versos, discursando, soltando frases, fazendo onomatopeias e imitações e interpretando com teatralidade as músicas), seguindo uma evolução que vai desde suas primeiras gravações (em “Não, não, não” o cantor ainda está muito inseguro), passa pela soltura da voz mais aguda e do falsete (conquista de seu primeiro lp, Para Iluminar a Cidade, e que segue pelos outros até que sua voz fique mais grave, como se nota em Antimaldito) e atinge a maturação de uma voz de barítono popular bem moldada e à vontade em Árvore da Vida.
Voltando ao modo menor, no Brasil ele é muito forte nas camadas populares do nordeste, nos cantadores e violeiros, dos quais às vezes podemos nos recordar ao ouvir Mautner, mesmo que ele nos apareça mais como um cantador e tocador de rebeca cibernético e pré-socrático, entoando seus “maracatus atômicos”.
E pelo nordeste vai-se à música oriental, principalmente arábica e hindu, devido ao conservadorismo estético da região, que preservou informações trazidas pelos viajantes portugueses da época da invasão da península ibérica pelos mouros.
Entre tantos exemplos destas manifestações temos o Quinteto Armorial[230] e a música de Ednardo e Zé Ramalho.
Outra semelhança de Mautner com a música nordestina é a citação em série, a descrição enumerativa, que é uma forma literária bastante apreciada pelos experimentalistas (junto com a enumeração caótica, que não interessa tanto a JM), e que está presente também nos cantadores populares do nordeste.
Em Mautner este procedimento aparece em muitas canções, como por exemplo, “Quero Ser Locomotiva” (a série das metamorfoses e das imitações onomatopaicas), “O Relógio Quebrou” (a série das horas fora do tempo), “Corações - Corações - Corações” (a série dos tipos de coração, isto é, de sensibilidade), “Namoro Astral” (a série dos signos e das ligações eróticas entre os signos), “Vida Cotidiana” (a série das horas eróticas), entre outras.
Caetano Veloso canta e dialoga (e se sai impecavelmente da difícil missão) com Mautner na “Vida Cotidiana”. “Eu te falei pra não falar nada pra ele/E nem nada pra ela”, a bissexualidade vista sem traumas nem preconceitos, e com muito humor, que desneurotiza as relações; “cara de pau” e “olhos de bronze”, duplo sentido com referências genitais (como em Jean Genet).
Agora vejamos exemplo de enumeração nas décimas de um cantador popular nordestino, Miguel Bezerra, que faz esta “Toada do Brasil Caboclo” sobre o tema “cangaço”, seguindo o esquema especular dito de “rimas fechadas” abbaaccddc:
Dadá e Chapéu de Couro
Tem Rabicha e Jararaca
Salamanca se destaca
Barra de Aço e Besouro
Tem Pai Velho e Dois de Ouro
Valente que só o cão
No cangaço do sertão
Deixando seu povo louco
Nesse meu Brasil caboclo
De mãe preta e pai João [231]
Esta toada está no volume 4 de A Arte da Cantoria, dedicado ao tema Cangaço, editado pela Fundação Nacional de Arte e pelo Instituto Nacional do Folclore, com pesquisa e edição de Rosa Maria Barbosa Zamith (Escola de Música da UFRJ) e Elizabeth Travassos (Núcleo de Música do INF); com a participação dos cantadores Miguel Bezerra, Ivanildo Vilanova, Severino Ferreira, Sinésio Pereira e Antônio Aleluia e com um cordel de autoria de Apolônio Alves dos Santos.
Examinando-se os poemas pode-se ver o grau de politização e de subversão mesmo que se escondem sob a aparente rigidez e simplicidade dos versos de cordel e dos repentes, contrariando a tese preconceituosa e tão difundida que diz que o cordel seria reacionário e arrivista, ou a sua ideologia seria não ter ideologia, adaptando-se covardemente às circunstâncias[232].
Vejamos estas duas décimas do “Mourão Respondido” de Ivanildo Vilanova e Severino Ferreira:
Ser o líder do seu povo
No Nordeste do país
Começando desde novo
Eu quase sempre promovo
Seu nome em minha canção
Não o tenho como ladrão
Gente desprestigiada
A resposta foi bem dada
Foi respondido o mourão[233]
E se faço estas observações aqui, apesar de elas poderem parecer fora de lugar, é que Mautner em seus cantos tem muito de cantador popular e de cangaceiro, ele afirma um tipo de luta nômade que é, em geral, de maneira tão equivocada, algo muito mais combatido pelos intelectuais e pelos políticos progressistas do que o estado e seus defensores. A arte e a política que afirmam a vontade de potência é rechaçada pelos salvarguadadores da arte e da política, ou: é preciso defender os fortes contra os fracos, como afirma Nietzsche (o sentido desta afirmação é: os que valoram nobremente, os que valorizam a vida e a vontade de potência precisam ser defendidos dos que são regidos pelo ressentimento e má consciência, e não respeitam nada além das instituições estatais - é absurda a leitura que Caetano Veloso faz deste aforisma de Nietzsche na entrevista de Trajetória do Kaos, interpretando-o como sendo a defesa dos poderosos da elite social contra o povo).
Mautner diz sobre o nordeste:
/.../ nordeste brasileiro, caso único, integração através da intestinal miscigenação racial absorveu como genética de pensamento atuante milhões de índios, constituindo a população mais mesclada e uniforme de mestiçagem de tal tipo que se tem notícia: quase 40 milhões de cabeças chatas, de Castello Branco ao repentista surrealista Zé Limeira do sertão “analfabeto” da Paraíba.[234]
No artigo “Um dia, um dado, um dedo” Augusto de Campos demonstra a grande sofisticação das formas de conteúdo e de expressão da poesia de cordel, afirmando:
A poesia dos cantadores nordestinos não é um lixo cultural. Na verdade, ela não precisa nem pode ser “melhorada”, nem mesmo na sua dimensão semântica, que embora “alienada” de uma consciência política dirigida, é muito mais significativa e testemunhal em relação ao seu contexto do que as suas contrafações “politizadas”.[235]
É bem verdade que nas declarações iniciais do artigo aqui reproduzidas o autor visa poetas “participantes” que tentaram “fazer a cabeça do povo analfabeto” utilizando formas “fáceis” desse povo entender, como o cordel, experiência realizada pelos Centros Populares de Cultura e por Ferreira Gullar na década de 60, prática de um paternalismo fascista.
Nas conferências brasileiras reunidas no volume A Verdade e as Formas Jurídicas Michel Foucault nos fala que a ideologia é uma ficção baseada na suposição da pré-existência da consciência de um sujeito natural, de fundamento transcendente, que seria então deturpada ou salva por esta ou aquela ideologia.
Foucault diz que todo o conhecimento é produzido, que não existe sujeito de conhecimento ou objeto prévios, que todo objeto é também produzido, inclusive e principalmente o sujeito e a consciência do sujeito.
Ele cria uma nova forma de fazer história, não mais considerada a partir dos objetos tradicionais (política, economia, guerra, fronteiras) nem de novos objetos (“história das mentalidades”, que vai privilegiar fatos deixados de fora da história tradicional, como sexo, modos de alimentação e diversão, costumes etc.), e sim a partir de forças virtuais e invisíveis, pré-individuais, que fazem surgir objetos e sujeitos (sujeitados).
/.../ existe uma tendência que poderíamos chamar, um tanto ironicamente, de marxismo acadêmico, que consiste em procurar de que maneira as condições econômicas de existência podem encontrar na consciência dos homens o seu reflexo e expressão. Parece-me que essa forma de análise, tradicional no marxismo universitário da França e da Europa, apresenta um defeito muito grave: o de supor, no fundo, que o sujeito humano, o sujeito do conhecimento, as próprias formas do conhecimento são de certo modo dados prévia e definitivamente, e que as condições econômicas, sociais e políticas da existência não fazem mais do que depositar-se ou imprimir-se neste sujeito definitivamente dado. Meu objetivo será mostrar-lhes como as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer novas formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. O próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história.[236]
A visão de Foucault torna até mesmo sem sentido procurar avaliar um texto pelo seu conteúdo ou tendência ideológicos, procurando ali a pureza bem intencionada ou a deturpação de uma ideologia “correta” ou “errada”.
Estão no século XX os cantadores de cordel nordestino e o poeta eslavo-semita-carioca Jorge Mautner, que diz, na já citada “Iluminação”:
Tenho dó é dessa gente
Que ainda vive no século passado
E ainda acredita em salvaçào[237]
A semelhança entre Mautner e o cantador vai além de sua figura andarilha, de seu violino/balalaica/rabeca/cibernética e de certos procedimentos técnicos poéticos, como este apontado da enumeração.
O principal fator que liga JM aos cantadores populares é a capacidade de improvisação, que está no violeiro nordestino, no sambista de breque (o inventor Moreira da Silva e o malandro futurista Jards Macalé que faz a síntese da Bossa Nova e do rock com o samba de breque e de morro) e nos rappers norte-e-sul-americanos, que também derivam na sua origem dos cantores regionais (a música folk, reelaborada com rock-filosofia e literatura em Bob Dylan).
JM nos shows e nos discos coloca longos discursos ou rápidas e maliciosas falas ou citações entre os versos fixos de suas letras, fundindo assim de forma totalmente original e por ele inventada a poesia pronta que se repete (forma tradicional) e a poesia espontânea que brota na hora dos lábios do cantor (poesia de rua, popular, regional, metropolitana, samba de partido alto, de breque, desafios, repentes, rapsjams). Os três primeiros lps não têm estas incursões faladas, que já apareciam nos shows desde o início. O primeiro disco em que elas vão ser registradas é Bomba de Estrelas. JM produz dois tipos de “falas” ou “breques” em suas canções; um que quebra a frase rítmica e se estende à vontade, para depois retomar a melodia; outro no tempo, entre duas frases melódicas, que denota raro senso de ritmo e tempo.
Poesias de Amor e de Morte (que tem como subtítulo interno: “e/ou CANTOS DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DO HORROR E DA PAIXÃO ZR 4538 M. Com um só prisioneiro à espera da libertação pelas tropas aliadas de arcanjos e anjos aliados”) prossegue nos temas de Eros e Thanatos e na carnavalização do dia-a-dia, num linguajar babélico e super-informado, que brinca junto com os signos da cultura de massa e da cultura mais elitizada.
Nestes Cantos JM inventa um jeito todo seu de fazer poesia, que traz fragmentos de suas canções (e trechos que especialmente parecem novas canções, ou temas que vão retornar aqui e ali), e às vezes fica discursivo e longo como sua prosa (e a poesia de Walt Whitman, exemplo “Monto e desmonto, ponto, depois eu conto”, pp. 51-64) mas que não parece com seus poemas musicados nem com seus textos ficcionais.
Meu ídolo santo é
São Sebastião flechado
Cheio de axé
Eternamente apaixonado

Vou andar de bicicleta
Com você a pé ou de quatro
Jogando bola ou peteca
No topo da torre ou no sujo barraco

Quero fazer um feitiço
Forte bem bravo
Pra você desistir dela-dele disso
E ser o meu escravo doce como se fosse açúcar mascavo

Esqueça o compromisso
Esqueça aquele agravo
Eu te quero, eu te cobiço
Eu sou a rosa e você é o cravo

Você é índio comanche
E eu índio tupi-guarani-aimoré
Nós dois depois tomamos lanche
Com leite e café na Praça da Sé, ué! Ué!

Fazer ginásticas
E lutas marciais
As artes são todas plásticas e elásticas
São todas artes sensuais

A polícia lá de Tóquio
Estuda até arranjos florais
Você mente mais do que o Pinóchio
Coisas dos teus signos e desígnios zodiacais

Fugiste por entre meus dedos
Pelo umbral do infinito
Roubando todos os meus segredos
Vou te amando de modo cada vez mais bonito[238]
Fragmentos de Sabonete editado em 1976[239] traz a marca da experiência do exílio e da vivência das sociedades babilônicas dos EUA e Europa, abrindo uma segunda fase na literatura de JM, aumentando a velocidade de seu liquidificador cultural. Este livro leva o subtítulo de “Notas sobre o renascimento americano do norte e do sul” e tem pinturas de Aguilar representando discos voadores na capa e na contracapa (que também inclui um texto de Gilberto Gil sobre Mautner).
Lembre-se, minha filha, de que toda a sabedoria dos sábios diz só isto: Tenha sempre bom humor, nunca leve as coisas muito a sério, seja sempre leve como uma bola de futebol. Seja leve, muito leve. Rindo.
Mas as criaturas se fizeram criaturas que vivem sob o drama. O drama é mórbido. A densidade dramática é um lamento em forma de ritmo, de emoção sincopada, coisa rançosa. O que todos deviam era respirar o ar puro da dança trágica, onde a ironia desempenha seu papel-rei.[240]
Em lugar do drama, que é a efígie de uma civilização que nega a vida, o corpo e o amor, para entronizar o ressentimento, o raciocínio mais morto e fictício (a representação, a lógica clássica) e o sacrifício, uma civilização hiperbórea que se espalhou pelo planeta e tentou entristecer outras civilizações dionisíacas, em lugar do drama que é a paixão desse pensamento, o trágico, a alegria do trágico, do irresponsável, do não causal, livre da culpa e dos imperativos morais, pois, como já dizia Nietzsche, a vida é inocente.
E por que este título para tão inclassificável livro pós-exílio? O que podem ser “fragmentos de sabonete”?
Vejamos a pista nesta citação de mais um fragmento do livro:
Há um sabonete na esquina do mundo, um sabonete muito sozinho, derretendo-se, um sabonete virando água por causa do calor, na esquina da Rua 42.
Eu comprei um sabonete e coloquei no banheiro.
Ele é verde e tem muita clorofila. Gosto dele, ele esfrega-se no meu corpo e a sua espuma é abundante.
Às vezes, dá vontade de comer o sabonete. Acho que isto é uma espécie de amor, amor, amor desenvolvido em sociedade de consumo ultra-industrial. Mas chega de explicações! Amor é cego! Amo este sabonete e protno! Que bom que ele vem em série, em super-produção. Assim, há milhões de sabonetes. Como se vê, o inconveniente da individualidade não existe, outra maravilha destes tempos de produção industrial eletrônica.
A descentralização atinge o cerne da alma e ela reage, explodindo em todas as direções com alegria satânica, reprimida por séculos de monoteísmo espiritual. /.../
Quero também fazer uma declaração de amor para a coca-cola, que é um tubo vermelho, uma lata maravilhosa, um suco do paraíso, que está sendo atualmente a bebida preferida de todos os deuses do Olimpo e dos deuses de todos os vudus, da África, do Caribe e do Brasil.[241]
Eis aí o cerne do pensamento de Jorge Mautner: o cerne descentrado, pluralizado; a possibilidade pós-pop e pós-Andy Warholl[242] de sentir e produzir uma estética de série, do indivíduo produzido em série (uma série do mesmo ser amado[243]); o artificialismo como o novo e genuíno naturalismo ecológico, pois a nossa sensibilidade percebe latas, sabonetes, refrigerantes e máquinas como frutos autênticos que, para nós, sempre existiram, ao lado do homem, dos macacos, dos melões e dos abacaxis.
Não há aí alienação do sujeito, e sim sua superação.
Nas três canções que o revelam como compositor para o público brasileiro, que estão no disco londrino de Gil, a atônita e atômica contemporaneidade como num círculo que se feche e se reabra, quando ele mesmo vai sofrer a perseguição política que sofreram seus pais, e conhece o capitalismo sci-fic dos EUA e a antiga Europa, “babels” que ele sabe que podem a qualquer momento cair (ou pelo investimento da expansão da consciência, via pop ou pela experiência psicodélica, ou via destruição bélica ou pela poluição):
The last rnushroorn makes roorn for the unknown
I get inside the secret roorn of an unthinkable house
In which I feel the grace[244]
Conforme já foi dito, não é possível levar adiante o aprofundamento da compreensão do trabalho literário e artístico de Jorge Mautner sem fazer nem que seja uma tentativa de utilizar nestas leituras conquistas filosóficas que marcaram o século XX, e que, cada vez mais claramente, se impõem como o mais importante (talvez, com muita possibilidade, o único) investimento filosófico realmente novo e criador na história do pensamento humano: a filosofia trágica, intempestiva, genealógica, de Nietzsche com seus conceitos totalmente subversivos de forças (plurais, sempre), vontade de potência e eterno retorno; o método da intuição, a identificação dos verdadeiros e falsos problemas, a superação do intelecto (da velocidade da sinapse; e, consequentemente do homem), a ontologia da memória e do passado, que produziu Bergson; e o pensador que fez a fusão destes dois pensamentos potentes, criando a filosofia da expressão[245], Gilles Deleuze.
As criações artísticas ficam muito pobremente explicadas quando se tenta fazer com elas um reducionismo sócio-econômico (como das estéticas de orientação marxista) ou psicológico (principalmente, as psicanalíticas).
A estética do século passado (XX) se fortalece com o pensamento da diferença; assim, não é só à obra de Mautner que ela pode ajudar a entender de uma forma superior; isto já foi feito por Deleuze com muitos textos de literatura, Proust, Kafka, nouveau roman, Michel Tournier, Lewis Carroll, obras da pintura, Francis Bacon, e do cinema, como neorealismo italiano.
As artes de vanguarda do século deram um curto-circuito no racionalismo clássico por um flanco pouco protegido desde Kant, que pregava (e não à toa, no coração da modernidade) à arte apenas o deleite dos sentidos, fora da rigidez das puras formas e dos conceitos da razão regidos pelo a priori; e é justamente com estes e aquelas que a arte experimental vem enlouquecer.
A partir daí, quanta bobagem não se pode dizer a respeito da alienação do sujeito, da consciência do sujeito, ou do dito do interdito na sublimação do recalque do sujeito barrado e castrado e infeliz, muito. Porém com tal parafernália quão triste e pálida nos pareceria uma arte tão vital quanto a dos escritores beat ou dos Beatles ou dos poetas psicodélicos!
Hegelianos e pós-hegelianos em estética, uma ótima receita para frustrar, enfraquecer e despistar qualquer estética, qualquer obra de arte.
Partamos das duas ontologias de Bergson: o presente e o passado ontológicos, existentes, reais. O presente é condição de passagem, é o tempo do corpo, que está no devenir, nas passagens. O passado são as ideias, as essências, as intensidades que são atualizadas pelo corpo, conforme o grau de contração do passado que o corpo faça, sendo o passado todavia sempre virtual, subsistindo ao presente, todo ele de uma vez.
É famoso o esquema no qual Bergson mostra o corpo no presente na ponta do cone invertido S, cuja base ele chama de AB, e que pode ser mais ou menos contraído em tantas seções AB quantas se possam pensar: A’B’, A”B” etc[246].
A memória não seria uma função psicológica, cerebral; o cérebro funciona como veículo da memória que, no entanto, é faculdade do espírito. Este por sua vez é da mesma natureza da matéria, que é o espírito mais lento, ou o espírito é a matéria mais veloz.
A vida é uma série de criações do espírito; a vida inventa o vegetal e a fotossíntese, depois o animal e o instinto, que se tornam em certo momento um beco sem saída que precisa ser superado; aí a vida inventa o intelecto, a inteligência, o ser humano[247].
O instinto age pela espécie, pela continuidade da espécie; o intelecto em prol do indivíduo, o que pode se tornar um perigo para a continuidade da vida. Aí ela inventa a função fabuladora que, não funcionando a partir do intelecto, não raciocinando nem dependendo de provas reais para crer em algo, torna-se o fundamento da religião, e, consequentemente, da constituição das etnias e das nações[248].
Mas a função fabuladora também vai produzir a arte, ela é criadora de mundos, e é a partir dela que se pode criar algo que supere o intelecto, assim como este superou o instinto, na “evolução criadora” da vida.
A superação do intelecto se daria pela intuição, que não procede pela análise, pela síntese nem pelo silogismo, mas que vai direto ao coração das coisas, à essência do tempo[249].
Para Deleuze e Guattari[250] existem três práticas de pensamento distintas, mas as três são práticas de pensamento: a ciência, plano de referência, procura conhecer o referente, a coisa no mundo dado, trabalha com functivos (funções matemáticas); a filosofia, plano de imanência, trabalha com conceitos topológicos; e a arte, plano de composição, que trabalha com sensações puras, livres, pequenas, fora do sujeito, os afetos e perceptos.
A compreensão da importância da arte e da função fabuladora de Bergson depende de entender o seu passado ontológico, ligado à memória e ao espírito, e fazendo par com o presente, o corpo e a matéria.
No esquema do cone o vértice é a consciência do corpo no presente e cuja base AB é uma das muitas possíveis contrações do passado; a memória tem o poder de presentificar as essências, dar-lhes realidade, não de representações, e sim como elementos subsistentes e reais. As essências são o inconsciente do próprio corpo e do real, a memória não é um conjunto de signos armazenados no cérebro, é um conjunto de imagens (a matéria) presentes, às quais o homem tem acesso através da memória, um poder do corpo e não uma função puramente psíquica.
Estas duas colocações, a memória ontológica e a arte como constituição de um ser que não é mais um sujeito e sim um bloco de sensações, nos levam à intuição como método, um método rigoroso e supra-racional, como alternativa de superação da razão, que não descarta simplesmente a razão mas a inclui, sendo, todavia, ainda, algo criativo.
Bergson diz que o caos não existe, pois tudo o que nós chamamos de caos é apenas uma ordem diferente da nossa, uma ordem que não nos interessa.
Em Mautner estas questões também ressoam, como na canção “Maracatu Atômico”[251] (que foi gravada por dezenas de cantores, inclusive o próprio Mautner, Gilberto Gil, Chico Science e Nação Zumbi e Caetano Veloso, no cd Eu Não Peço Desculpa).
O maracatu é atômico não só por causa da sua contemporaneidade, por apresentar uma fusão do tradicional com o novo na lírica e na música, ritmo brasileiro misturado (potencializado) com algo de internacional, de pop[252], muito difícil de identificar.
Seria preciso um estudo bastante específico de teoria musical não careta para rastrear em diversas fontes e derivas os devires dos ritmos, melodias e harmonias destes três alquimistas musicais: Jorge Ben Jor, Jorge Mautner e Nelson Jacobina, que fundem o som dos terceiros mundo[253] e milênio, através da origem negra comum que eles exploram entre os ritmos originariamente europeus - antigas migrações musicais, através de escravos, ou de viagens de pesquisa, o matemático-filósofo-músico Pitágoras percorrendo África-Egito-Oriente, por exemplo, invasões dos árabes na Idade Média etc. -, ritmos brasileiros, latinos e norte-americanos - os três são contumazes praticantes do que Ben chama de “alquimusic”, e que ele só utiliza para suas canções com temática explicitamente alquímica, como as do lp A Tábua de Esmeralda, mas que podemos considerar como toda a música que faça a mestiçagem dos sons.
Talvez pudéssemos falar em “música quântica”, assim como Os Cantos de Ezra Pound são quânticos por se carregarem de “estilhaços” de informações e ideias das fontes mais variadas através dos milênios, abrindo seu texto para a consciência da humanidade.
O maracatu é atômico também porque ele vê e vai ao átomo das coisas, ao seu coração, à sua diferença.
Vemos aqui uma procura da intuição que produzirá um dia um novo homem, para além das razões e das paixões - o “super-homem”. Interessante é notar ainda que todas as palavras que são aqui “penetradas” (pela intuição) ou são compostas ou comportam a ideia de composição: arranha-céuguarda-chuvacouve-florporta-luvapara-raioquadro negrobeija-florporta-estandarte. E como não lembrar que para Bergson o real é todo constituído de mistos, de complexidades que cumpre à intuição separar?
Outro fato interessante é o pansexualismo que aponta para uma consciência cósmica, o todo vivo, quando elementos minerais (giz), fabricados (arranha-céu, porta-luva), energéticos e cósmicos (raio, chuva), animais (beija-flor), vegetais (flor) e humanos se entrelaçam em um amor e comunicação que ultrapassam as fronteiras ontológicas, como quando “O bico do beija-flor/Beija a flor, beija a flor/E toda a fauna-flora/Grita de amor”.
No “Anexo: Sobre a Morte do Homem e o Super-homem”, de seu livro Foucault Gilles Deleuze pergunta: “O que é o super-homem?”, e dá a seguinte resposta:
É o composto formal das forças no homem com essas novas forças. É a forma que decorre de uma nova relação de forças. O homem tende a liberar dentro de si a vida, o trabalho e a linguagem. O super-homem é, segundo a fórmula de Rimbaud, o homem carregado dos próprios animais (um código que pode capturar fragmentos de outros códigos, como nos novos esquemas de evolução lateral ou retrógrada). É o homem carregado das próprias rochas, ou do inorgânico (lá onde reina o silício). É o homem carregado do ser da linguagem (dessa “região informe, muda, não significante, onde a linguagem pode liberar-se”, até mesmo daquilo que ela tem a dizer). Como diria Foucault, o super-homem é muito menos que o desaparecimento dos homens existentes e muito mais que a mudança de um conceito: é o surgimento de uma nova forma, nem Deus, nem o homem, a qual, esperamos, não será pior que as duas precedentes.[254]
A produção do super-homem não seria o ansiado numa letra sobre o amor como a já citada “Salto no Escuro”?
Assim falou Nietzsche:
O vosso amor pela mulher e o amor da mulher pelo homem: ah, pudessem ser compaixão por deuses sofredores e encobertos! Nas mais das vezes, contudo, são dois animais que mutuamente se farejam.
Mas também o vosso melhor amor não passa de uma arroubada metáfora e de uma dolorosa chama. É uma tocha que deveria iluminar-vos os caminhos mais elevados.
Para além de vós, devereis amar, algum dia! Logo, aprendei a amar. E por isto é que tivestes de beber o amargo cálice do vosso amor.
Há um sabor amargo até no cálido do melhor amor: assim, produz anseio pelo super-homem, assim, produz sede em ti, criador!
Sede do criador, flecha e anseio no rumo do super-homem: fala, meu irmão, é esta a tua vontade de casamento?
Sagrados são, para mim, tal vontade e tal casamento.
Assim falou Zaratustra.[255]
E o virtual não seria o apontado no belo “Rock da Tv”[256]?
Este poema admite várias leituras, como todos os poemas; privilegiamos a leitura fantástica, ao sabor de nossas notas sobre o virtual e as essências, e a arte como criação de novos mundos e novas subjetividades; ao lado desta, vigora a voltada para o nosso mundo conhecido e dado, nossas velhas intrigas e esperanças, onde as imagens surrealistas podem ser lidas como alegorias expressionistas dos “podres poderes” (Caetano Veloso) ou “the powers that be” (Roger Waters) de nossa sociedade, os anjos como as forças democráticas ou artísticas (na capa do lp Bomba de Estrelas, reproduzida em parte na capa do mesmo cd, o desenho de Glauco Rodrigues de Mautner como um anjo com sua espada, baseado na foto de Paulo Vasconcellos) os vampiros como os políticos da velha ordem atual, e os empresários e capitalistas etc.
O mesmo virtual não aparece naquelas ondas de rádio que Billy captava em sua mente no Radio K.A.O.S. de Roger Waters, ou que Nina Hagen também diz captar com a mente em “Universal Radio”, ou a “Rádio do Demônio” onde Deus canta o dia inteiro, na canção “Devil’s Radio” de George Harrison[257].
A razão intuitiva, que dá conta do caos, que pode penetrar o caos (que não é o nada nem a destruição, que é o gérmen-caos, o germe que pode dar origem a novas ordens, a muitas ordens diferentes), essa intuição que busca penetrar no coração dos acontecimentos e dos seres, essa metafísica que Bergson chama de “experiência integral”[258], parece ser a nossa forma de atravessar a ponte que Zaratustra levantou com um apoio no homem, e o outro no caos, para ultrapassá-lo, em direção ao super-homem.
Intuição poderosa também presente no poeta quando ele faz uma canção como “Herói das Estrelas”[259] (pois, como dizia Heidegger, “a poesia é a porta-estandarte do ser”, frase que por coincidência antropofágica deriva de seu sentido militar para o carnavalesco das escolas de samba, e parece mais de autoria do “mestre-sala” Jorge Mautner, que a gosta tanto de citar).
Esta é faixa é uma das poucas vezes em que o recurso de gravar a voz do cantor em vários canais (tão em moda no Brasil nos anos 70) foi utilizado por JM, e ouvimos o cantor multiplicado como um coro, como uma pluralidade revelada na singularidade.
“No universo tudo voa/Tudo parece balão”, concepção relativística, que vê todas as coisas como campos de energia inseridos em outros campos de energia, e que se encontra belamente com o atomismo pré-socrático, helenístico e romano de Leucipo, Demócrito, Epicuro e Lucrécio.
Na referência aos “caminhos que levam ao coração” explicita-se a influência da obra de Carlos Castaneda, que está o tempo todo subjacente, mesmo que o eu-lírico não a cite amiúde, como faz com Nietzsche.
Para mim só existe percorrer os caminhos que tenham coração, qualquer caminho que tenha coração. Por ali eu viajo, e o único desafio que vale a pena é percorrer toda a sua extensão. E por ali viajo, olhando, olhando, arquejante.[260]
É a mais bela versão musical de um conceito de Carlos Castaneda, que já mereceu outras muito interessantes, como “Learning to Fly” (David Gilmour, A. Moore, Bob Ezrin e Jon Carin), do lp do Pink Floyd A Momentary Lapse of Reason (especialmente no videoclip) e “Meu Amigo Pedro”, de Raul Seixas e Paulo Coelho, do lp Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás (“Há tantos caminhos, tantas portas/Mas somente um tem coração”).
A árvore da vida é um signo importante na obra de Mautner, um de seus antimitemas. Título de canção e lp, frase de Göthe que ele sempre costuma citar:
Cinza é toda a teoria, mas verde, meu amigo, é a cor da árvore da vida.
Símbolo vedântico, bíblico, cabalístico e alquímico, a árvore da vida aparece no Livro do Gênesis, e tem a conotação heróica, prometeica, protéica, titânica, que podemos ler à Blake em Mautner também: a árvore da vida é aquela que tem o fruto que nos falta comer.
  

          Capítulo 6: o prazer de pensar (Mautner com K)

Cada geração reconquista a liberdade, e assim dá a esta inominável aparição poética um sempre renovado significado. /.../
Reclamo-vos, futuros companheiros, atuais na imaginação, irmãos dos meus sonhos, sementes e motivação da minha existência e pregação histórica e anti-histórica.
                                                                  Jorge Mautner[261]

Estamos em pleno ano 2001, a data mais unanimemente aceita como sendo o começo da chamada Nova Era. E o que é esta Nova Era? Será se ela existe? Ou é simples projeção de um messianismo sem ideologias nem crenças, vagamente apoiado em ideais pós-humanistas e simplificados misticismos?
JM nos dá o toque em sua canção “Homenagem a Oxalá”:
Do jeito que o mundo anda
Ele precisa de fé
Ouve o grito da umbanda
E também do candomblé[262]
Precisamos agora inventar a nossa fé, assim como sempre tivemos que inventar a nossa história.
Místicos e cientistas, artistas e a mídia (que surge na ordem dos conhecimentos em substituição ao velho senso comum) estão todos acordes (como na música em que diferentes notas se harmonizam magicamente em um novo som mais rico, mais cheio de vibrações físicas do que cada uma das notas somada às outras) que não adianta esperar o salvador que descerá numa nuvem de fogo dos céus, seja o efeito maravilhoso, técnico ou alienígena. Primeiro, porque pode não surgir carruagem nenhuma e todos vão ficar com cara dos irlandeses que aguardavam que o gigante Finn se levantasse ou dos portugueses e nordestinos que ainda hoje esperam pela volta de Dom Sebastião (que alguns até confundem com São Sebastião). E segundo porque tudo que vale a pena custa algo, ninguém cresce nem aprende passivamente, por osmose, como objeto abjeto de uma prática de “generosidade”. É como uma criança ou camponês nas rodas de alfabetização, ou igual a um samurai zen se submetendo às mais duras práticas do caminho estreito para conseguir a iluminação: ninguém vai poder fazer seu trabalho por você.
Então a nova era ou o que quer que seja que seja ser e novo para nós e para o mundo (e o mundo somos nós, até quando vai ser preciso repetir isto para que os homens compreendem e pelo menos diminuam sua prepotência e sua arrogância?) só virá e acontecerá, a partir de hoje ou daqui a dez mil anos, com a nossa decisão e atitude e ação de mudar, de procurar a evolução, não apenas a partir da adequação biológica ao meio, num esquema darwiniano e real mas limitador, e não somente ainda como aprimoramento técnico e desenvolvimento de novas tecnologias da inteligência (oral, escrita, informática, v. Pierre Lévy) num efeito-cascata alterando todas as relações sociais, de trabalho, de convivência e de economia.
Foucault mostra o surgimento do homem enquanto uma forma de saber histórica, se dando no entrecruzamento de três tipos de conhecimentos que se desenvolveram no século XIX: vida, trabalho e linguagem (as ciências biológica, econômica e linguística).
O que aconteceu no século XX com a informática e a cibernética e o desenvolvimento de trilhões de novas tecnologias em todos os campos com as ramificações múltiplas rizomáticas que trazem encontros como o da química de Prigogine com a filosofia de Stanghers, a genealogia de Nietzsche e Deleuze com o estudo da psiquê de Freud e Guattari, a robótica de Asimov (suas três leis sendo o fundamento desta nova ciência) e a biologia molecular de Monod (a cibernética estuda sistemas de informação onde quer que eles ocorram, e a teoria do caos mostra que eles ocorrem em toda parte, como fantasiou o que pode ser verdade daqui a pouco o astrônomo chefe da NASA e criador da exobiologia e da nave que leva um disco da terra para os extra-terrestres, Sagan em seu livro Contato, até num número irracional como o pi, se a ele aplicarmos o poder de cálculo das placas de silício, poderemos ali encontrar uma mensagem brincalhona do criador; e ainda sobre robôs e biologia, além dos ciborgs e outros entrecruzamentos como a engenharia genética, podemos pensar nos robôs moleculares que podem tanto ser usados numa guerra de ficção científica como numa nova medicina muito além de tudo que se pode sonhar, Viagem Fantástica, de novo Asimov), o que o século trouxe para a forma homem foi o seu aprimoramento, o seu fracionamento, o seu estilhaçamento e sua primeira verdadeira universalização (CMI, net, satétites, mídia), no sentido de domínio deste nosso planetinha, tão mínimo em relação ao radical universal que aí ocorre, os ets riem.
Será essa fragmentação o caminho da mutação? Ou será se ela é uma espécie de freio que tenta preservar a forma homem em tudo que ela tem de reativo e passivo? Ou terá os dois aspectos simultâneos e conflitantes?
Tudo leva ainda à pergunta que é mal compreendida, irrita os legalistas, os juristas, os partidários da soberania da história e da dialética história, e gera todo o desdém alarve dos teóricos da razão comunicativa; ou produz uma euforia falsa, uma sensação canalha de loucura liberada que nada tem que ver com o pensamento e a criação, pois o caos tem a estrela bailarina na outra ponta, e não devemos nunca confundir kaos com caos: por que Nietzsche?
Porque ele propôs a superação necessária e urgente da forma homem e da forma Deus? Ou porque ele denunciou o poder hipnotizante e sugador de energias dos rancores que dominam o ser humano desde o seu nascimento (histórico e individual, Engels e Freud)? Ou ainda porque ele criou um método trans-transcendental que permite a verdadeira crítica, a própria crítica da verdade, da realidade e do sujeito de conhecimento (Deus, mundo, eu), três entidades fictícias, e demonstra a realidade imanente e eterna das forças que lutam, dos tipos de forças, e a sua genealogia (fazendo a vingança de Hume contra Kant, que pretendeu superar a sua teoria de não substância, eu, mundo e Deus como ficções)?
O século XX já ganhou o prêmio de ano mais louco da história (até agora), para lá do ano Mil, e teve vinte e um séculos dentro de si, um nietzscheano, um deleuziano, um foucaultino, um marxista, um existencialista, um pop, um medieval, um pré-histórico, um einsteiniano, um da ficção científica, outro da revolução...
Não vou dizer os nome de todos os vinte e um, porque cada um deles traz vinte e um outros embutidos, e assim ao infinito.
Há cerca de vinte anos atrás li fascinado os Panfletos da Nova Era, de Jorge Mautner, e vi que ele trazia a indicação de volume 1. Fiquei esperando ansioso pelo segundo tomo. Neste meio tempo escrevi o ensaio Proteu, entre 1989 e 2000, tornei-me amigo de Mautner e tive acesso a muita informação e material sobre sua obra.
Considero-a fundamental para a compreensão da nossa identidade cultural, para a inteligência brasileira, e não posso aceitar o limbo em que permanece.
Propus a JM que escrevêssemos juntos o segundo volume dos Panfletos, e ele aceitou. O que eu pensava era fazer textos meus e misturar aos seus, em um livro a quatro mãos, onde apenas o estilo individual de cada um indicasse uma suposta autoria, e a confusão divertisse e incomodasse a quem vai ler (como acontece em Diálogos de Gilles Deleuze e Claire Parnet).
JM é um verdadeiro lobo das estepes, apesar de ser e ao mesmo tempo em que é o que Vinícius de Moraes chamaria de um “artista do encontro”, pois seu maior prazer é conversar e estar com pessoas, atrair como um ímã a atenção e o desejo de cumplicidade de centenas e centenas de criadores, cantores, músicos, compositores, poetas, escritores e cineastas que desejam entrelaçar suas obras com a dele e produzir em parceria; no entanto o seu pensamento é totalmente selvagem e avesso a difusões, diluições e até diálogos.
Sua forma de pensar e sua velocidade (que ele diz sentir necessidade de acalmar um pouco com as práticas de kung fu e outras técnicas - tem a estatueta de seu Prêmio Jaboti na cabeceira da cama como um companheiro animado, com quem faz tai chi chuan e que lhe inspira; quando digo que tal pesquisa vai demorar, ele responde: “Não temos pressa, olha o jaboti”.) são únicas, e correm em trilhas paralelas no meio da multidão dos amigos, dos conhecidos e dos colegas, mesmo nas mais bem perpetradas amálgamas ele constrói seus caminhos isolados, onde seu pensamento e seu texto se deixam penetrar das coisas mais fantásticas e menos esperadas, um filósofo pré-socrático, um político da Macedônia, um feiticeiro negro, um judeu cristão, um messias duplipensador, um et apaixonado por um vampiro etc.
Pensar é o grande prazer de JM. Seu trabalho de escritor faz a continuação e a comunicação direta com a literatura que pensa, que vai desde a Índia, a China, a Palestina, o Egito e o Grécia antigos até a irrupção de curto-circuito entre os saberes e os dogmas que é Nietzsche, fonte espocante que rega os mundos das ideias em saltos quânticos em vários sentidos do tempo (muito mais que o passado e o futuro), ressurgindo em Zaratustra, em Sócrates e Platão e no cristianismo de São Paulo (os melhores e mais nobres inimigos), em Heráclito (exatamente o mesmo que Nietzsche, no entanto só o podemos saber depois de Nietzsche), em tantos escritores, Espinosa, Marx, Freud, Einstein, Foucault e Jorge Mautner. É um jogo, uma bola quântica que nunca se determina onde está mas que está em curso, sendo passada entre eles. JM é um homem poderoso; ele joga esse jogo.
JM compreende que sua matéria é a matéria, e matéria = tempo. E mais: o infinito (“fim sem fim” que coloca na última página dos livros, página que para os semitas como ele - grego [macedônico] e semita ao mesmo tempo - é a primeira página, onde começam a ler árabes e judeus) implica no infinitesimal do movimento perpétuo, condição da matéria e condição (num anti-platonismo de Bergson) do espírito.
É ele mesmo quem nos diz:
Minha mitologia não acaba neste volume. Ela continua por aí em qualquer lugar, em outros volumes, numa canção, num grito de alegria e desespero até eu morrer. Aí estará tudo realmente terminado. Não acaba aqui a mitologia do Kaos. É um fim sem fim. É como o jazz, continua sempre. É como a chuva, quando termina, algum dia - sempre - cai outra. O caminho que indico é o fluir triste-alegre da vida. Um encontro de paixões em eterna luta. Tudo é uma eterna luta sem fim: como poderei dar fim a algo sem fim?[263]
O estado de perpétua transformação implica o gozo do presente e do tempo que passa, em todos os sentidos, forjando novas possibilidades e alternativas para lá do humano, demasiado humano (que ele afirma sempre, o humano, num esforço sobre-humano por adensar esse universo desconhecido, e ultrapassar-se):
/.../ O estado de iluminação do Kaos é um estado de consciência (e consciência inclui intuição) tão grande que só o suportaremos alguns poucos momentos: é o que vulgarmente se chama inspiração, êxtase criativo, impulso poético, visão, premonição, vislumbre, vibração com o todo, identificação com o cosmos, integração existencial, enfim, estados de supra-sensibilidade e consciência e captação da realidade. Tempo virá em que o homem viverá constantemente em tal estado de iluminação /.../ Nessa época o homem, vivendo no estado constante do Kaos, estará então à procura da próxima contradição - que será um outro estado superior de sensibilidade e captação da realidade, um estado que chamaremos de estado X. Esse estado X só virá a ele em momentos especiais, como agora o estado do Kaos só nos vem em estados especiais. Quando o homem superar esse estado do Kaos constante (como superamos o estado do caos com C constante, que é o nosso tempo, para mergulharmos na iluminação do Kaos com K constante), ele mergulhará no tempo do X constante para ambicionar um outro estado, que será o estado Z. Um estado de maior sensibilidade e captação da realidade. E assim por diante.[264]
Para complicar tudo adora compor, cantar e tocar, como acontecia com Nietzsche, que produziu lindas músicas.
Hoje em dia as pessoas falam muito em multimídia, porém compreendem mal que alguém pule de uma trilha para outra; veja-se quanto o intelectualismo de Gil e Cae incomodam, ou o não levar a sério a alquimia de Benjor, ou ainda se irritar contra intelectuais juramentados que façam incursões em campos mais dionisíacos (o próprio caso da música de Nietzsche, a avaliação sempre pejorativa do violino de Einstein que não se escutou).
No fundo as pessoas ainda obedecem a uma suposta divisão estanque entre apolíneo e dionisíaco, e na epiderme são sensíveis a todas as rotulações e separações em estamentos da sociedade.
E Mautner leva para a música todas as suas questões intelectuais, ele não faz distinção entre as duas; é exatamente o mesmo, no máximo marcando a distância entre o som e o sentido pelos óculos de grau que coloca quando vai fazer uma conferência ou ler um livro.
Agora aprendemos com Apolo o que Dionísio já nos tinha revelado numa cerimônia iniciática com vinho especial e ditirambos: o Universo é mesmo muito complicado (e se interliga de múltiplas e inesperadas maneiras, como a cobra que morde o próprio rabo).
O próprio homem parece ser essa serpente (todo homem, todo ser, e agora estamos falando deste que “merece ser louvado”), pois encontra em seus sonhos os “estilhaços da paixão” dos “n” filmes que estrela, e até onde os projeta, é antigo e futuro, homem pré-histórico e “herói das estrelas”, destino hermafrodita da espécie (que já está configurado nos fetos humanos, que passam pelo estado de peixe, anfíbio e réptil antes de se definirem como humanos, assim como os dos macacos passam por todos estes estágios, inclusive o humano, para só então se especializarem como fetos de macacos), não surpreenderá se quando a porta do objeto voador não identificado se abrir, isto é, será a surpresa total, como na canção “Um Índio” de Caetano, for ele mesmo que vier nos encontrar.
Roberto Bicelli diz que Mautner:
/.../ por várias razões, é o mais bem aparelhado para conversar com extraterrestres. Físico e alma, é o mais bem sucedido espécime de sua geração.[265]
Já Caetano Veloso escreve, na contrapaca de Para Iluminar a Cidade:
/.../ só escreve clichê, com a originalidade de um marciano
E o próprio Mautner já cantava em 1958:
Os marcianos estão aqui
E eu só falo o que eu vi[266]
Tudo isso popularizou a desconfiança da razão que Friedrich Nietzsche tinha instrumentalizado. Mautner mesmo comenta sobre o “profeta”:
Se tivesse conhecido as Américas, o jazz e o candomblé, teria ressuscitado e vivido dois mil anos. No entanto era um europeu.[267]
E assim (e isso vai irritar até os que odeiam o filósofo alemão, que não o queria ser) o falso/verdadeiro filósofo brasileiro se apresenta alegre, feliz, saudável e cantor, como um Nietzsche que teve a sorte de ter um pai judeu perseguido por Hitler e devido a esse acidente nasceu no Brasil, onde se pode viver sem queimar combustível dia e noite para se aquecer e as cores são mais vivas do que um europeu poderia imaginar (e as misturas de corpos e ideias realmente ocorrem, como universos virtuais que correm paralelos em uma velocidade superior à da luz, e em uma outra velocidade ainda, superior àquela que tinha primeiro superado a luz, acontecem, se encontram).
Afinal, Eros e Thanatos, Apolo e Dionísio, razão e irrazão, yin e yang, por que teriam que estar tão bem guardados um do outro, tão separados? A vida é comunicação, é troca, tudo está em tudo, em fluxos manifestos e latentes que não param de se (re)criar.
Tal obviedade, em Nietzsche, em Mautner, até em César Lates (digo “até” porque ele é um cientista mundialmente respeitado, e mesmo assim causa espanto porque se põe a pensar), a muitos incomoda. Por quê? Talvez isso aconteça porque gostamos de acreditar que o guarda-sol azul que (pensamos que) nos protege do sol também nos protege do caos[268] (Mautner está sempre se referindo à chuva, com um sorriso misterioso e um gigantesco prazer secreto, ao me ver incomodado com o calor disse: “Logo vai começar a chover”, no meio de uma entrevista ao ar livre choveu, e ele falou: “A chuva é uma bênção”; quando ele se encontrou com Caetano e Gil pela primeira vez em Londres levava um grande guarda-chuva, como os óculos escuros que usa nos fotogramas da capa de Vigarista Jorge [quem é aquela gata?], e que são citados no início de “O Vampiro”, eles não podem esconder o choro, eles não podem evitar a chuva).
José Miguel Wisnik no estudo sobre a lírica de Gilberto Gil “O Dom da Ilusão” escreve:
É ilusão acreditar que algo perdure eternamente, que alguma coisa permaneça, e que o “eterno é” de “Era Nova” - “transcorrendo, transformando” - se confunda com o durar das “velhas formas do viver”, porque estas serão fustigadas pelo tempo, como a pedra mais dura é fustigada pelo “eterno vento” até que não reste “nem pensamento” (“Tempo rei”). Mas é também ilusão pensar que a ilusão seja apenas engano: o seu véu, que oculta de nós o caos gerador e destruidor que nos acompanha desde sempre e para sempre, é manto sagrado, protetor, que nos defende da exposição bruta e insuportável ao real e ao nada, o “nada nada nada nada”, o doze vezes nada que é por sua vez o véu do Criador.[269]
Notamos que Gil, como Caetano em “Pequena Oração ao Tempo” e principalmente “Força Estranha”, também adota uma visão pré-socrática, quando toma as sílabas de “panta”, tudo, em “panta rei”, tudo flui, de Heráclito, e as inverte, no brilhante achado “tempo rei”, o tempo é o rei, o tempo flui, o tempo é tudo.
O eterno retorno de Nietzsche é seletivo, e não se confunde com a “conflagração universal” e renascimento do mesmo simbolizado miticamente na Fênix e pensado no conceito pré-socrático e estóico.
Talvez o texto de Mautner entenda assim também (eterno retorno seletivo) o conceito de Nietzsche, pois fala em termos de tekné, o que joga o eterno retorno na realidade fenomênica e histórica. Ele mais adiante afirma que Nietzsche e Marx foram os dois pensadores a introduzir a práxis na filosofia.
Mautner procede à identificação pós-einsteniana de matéria = energia = tempo, e recusa a ideia linear de tempo (com seu conceito termo-dinâmico do Kaos ele afirma a convivência de tempos diferenciados em uma paisagem energética; note-se que Kaos é um conceito físico, a par de ser filosófico e artístico), assim também não aceita a teoria da expansão linear permanente do universo (todo energético-material), que implicaria na linearidade temporal. Sua teoria da pulsação cíclica aponta para um tempo também cíclico, onde cabe a diferenciação em espiral (“aumentar a intensidade das tensões”). O Kaos me parece mais afim com uma concepção de tempo como paisagem de simultaneidades diferenciadas e semi-comunicáveis, aproximando-se da concepção cósmica de Stephen Hawking.
Depois, há um ponto no Universo em que tudo começa a voltar e onde o tempo gira sobre si mesmo. Mais veloz que o raio da luz, corre aquela energia que nos deu a vida e o pensamento. E nesta velocidade maior, o tempo volta para trás revendo todas as coisas que foram, mas sempre com novidade. As grandes esferas se amam mutuamente, com um amor de fogo e água.
Não há verdade alguma no cosmos, só um ritmo de paixão.
/.../ O pensamento existe como, uma energia que invade todas as coisas e comanda todas as coisas. /.../
Todos nós caminhamos num mesmo barco, velejando em direção ao abismo, que é feito de sol. Nós andamos em direção ao sol. Depois da morte, nós nos transformamos em partículas do sol e de outros sóis que há pelo Universo.
A grande roda, que é o fim do infinito, está sempre cheia de acontecimentos e prenhe de novidades.  Nós sentimos estas realidades como profundas batidas no coração, como suspiros alongados e visões de serenidade profunda. /.../
Todos nós somos filhos da mesma coisa e somos a mesma coisa.[270]
O Kaos com K, Mautner não cansa de o afirmar, não é o caos com c. Ele, o poeta, não é um perverso, um destruidor total a dançar a dança de Shiva; ou um construtor subalterno; um incendiário aos vinte, um bombeiro (segundo Leandro Konder, aquele que lança bombas) aos quarenta.
Mautner é um homem e um menino, como disse Gil, que brinca com a bola que rola pelo espaço sem fim, sempre a se criar e recriar, como sua capacidade de compor sem parar, ou de falar através das horas, naves que passam vagarosas, ou ainda a sua escritura artesanal e técnica, supersofisticada e telúrica, fumaça de narguilé que sobe para o ar, obra de homem simples do povo e gênio, artefato pré-histórico e meta-cibernético, exercício do prazer permanente de pensar, artifício que produz novas eras porque as antigas já não eram mais suportáveis.
O pensamento lança uma longa seta para outras épocas, Nietzsche disse que o filósofo é uma flecha que a natureza dispara sem olhar o alvo, mas que ela espera que acerte em algo, e o pensador joga o seu dardo erótico e exótico como sonda ou batiscafo dos tempos e espaços, não se contentando em tentar desvendar o mistério das grandes corporações, que pagam impostos ou não, e que dividem o poder meta-estatal no nosso país atualmente, ou quem foi que inventou o Brasil, nossa cara, nossa identidade (e que identidade esse homem sem pátria pode ter? talvez a de cantar com Caetano em língua brasileira: “eu não tenho pátria, eu tenho mátria e quero fátria”[271]), ou as causas de as coisas estarem como estão,  tudo isso ele investe e investiga, é pensador político e histórico tanto quanto trans-político e trans-histórico, tudo que se pensa é poder, e a vida é poder.
Descobriu-se que, no Amazonas, havia uma civilização tipo Inca. O império Inca nasceu aqui e foi para lá. Tudo é de uma riqueza incomensurável. É a nossa pré-história.[272]
Ele se questiona sobre o futuro querendo chegar lá, estar no que se pode ser, sobre espaços e tempos alternativos (outras costuras da malha, e fala e escreve e canta as outras dimensões para lá da quarta), e assim também se estende para o passado, quer saber quem são seus pais, e seus avós, de onde veio sua gente, de Viena, na Áustria, só que esta foi um posto de parada, pois essa gente vinha lá da antiga Israel, e para o outro lado da família as margens do Danúbio são gare também, pois essa outra gente veio da Macedônia, é eslava, e tem uma mistura com os gregos (percebe também que a pré-história europeia é uma miscigenação desenfreada, quase igual ao Brasil), e volta mais, para encontrar nos próprios traços fisionômicos da testa e do maxilar os indicativos de uma das primeiras mesclas raciais radicais, do Homo sapiens com o Homo naerdentalensis[273].
E afirma:
Meus livros podem ser lidos separados, juntos, rasgados, queimados, triturados e cuspidos e incensados com glória que dá na mesma, escrevi, desabafei, e fiquei cada vez mais louco! Ah! Ah! Ah! /.../ - “Mautner agoniado supremo, Novo Nietzsche, Nietzsche da América Latina, diga, diga, você sabe um automóvel aonde há?”[274]
Seu xará São Jorge (que lhe aparece disfarçado em vagabundo, após o aparecimento de seu primo Jesus Cristo, e nos três o personagem-narrador reconhece os artífices da nova era) lhe dá uma espada dourada para que ele mate a vampira serva de Satanás, e assim se libertar da maldição do beijo que ela lhe deu, de ter que se tornar um vampiro, ele também. Jorge vai atrás dela:
/.../ E fui, simplesmente fui. E o vagabundo sorriu e ficou lá na escuridão daquela noite de lua seca e má e eu fui para o castelo dos vampiros tranquilamente e feliz um pouquinho. Ah! Espada! E cheguei em frente ao castelo. Olhei para ele e gritei: - “Vampira! Vampira que me mordeu! Vampira eu te amo! Vamos praticar o ato sexual? Vamos praticá-lo agora já que eu sou vampiro que nem você por causa da tua mordida?” E ela saiu, e ela estava bela e bela, ó bela! E eu não tive coragem de matá-la e joguei a espada fora e abracei-me com ela e entrei no castelo e nós nos amamos e agora eu sou vampiro. Ah! Ah! Ah![275]
Em 2004, Jorge Mautner conta, no Jornal Zero Hora, sobre a falsa notícia que foi propalada em 1972, quando foi cantar pela primeira vez em Porto Alegre:
Surgiu então a notícia de que eu tinha falecido em um acidente de avião. Foi uma jogada dos promotores do show. Na hora, tinha umas 20 mil pessoas para me ver no Gigantinho.[276]
Finalmente, fim sem fim, rejeita o ressentimento e não se deixa envenenar pela culpa, mesmo que este sistema “todo errado” tente o tempo todo jogar sobre ele sua inadequação, e mal lhe conceda espaço para seu coração de poeta e pensador, que ele sente chutado o tempo todo por alguém (quem?) que não lhe quis:
Eu não peço desculpa
E nem peço perdão
Nào, não é minha culpa
Essa minha obsessão[277]
Tópicos que caracterizam a arte-pensamento de Jorge Mautner (sem prioridade lógica ou cronológica, são aspectos sempre presentes, que convivem o tempo todo em seu arte-pensar):
- A identificação entre o fazer e o pensar, que redunda da identidade entre “natural” e “artificial”; o ser humano, cônscio de que não há uma “natureza” prévia das coisas e de si mesmo, torna-se “demiurgo” ele também, e pode realizar/fazer sua “poiésis”, sua arte, não mais como cópia ou simulacro, e não mais necessitando colocar ali mímesis ou verossimilhaça; a arte torna-se pensar porque se produz como um arte-fício (ficção da arte, fruto da vontade).
- A não-delimitação de qualquer espécie, gênero, número, grau etc. Assim o “poeta” (no sentido amplo e abrangente daquele que faz o artifício) está sempre pronto a experimentar novas formas de arte, e tal conceito tem uma enorme abrangência, bem como a realizar novas experiências em campos já conhecidos ou ainda ignorados, e a inventar. Assim faz textos (poesia, ensaio, ficção, tudo ao mesmo tempo) E faz música E toca E canta E faz teatro E pinta E desenha E faz cinema E... Sempre tem o que dizer, seja em uma conversa casual, seja em um livro, o espírito pede mais um E mais um E mais um E mais um E mais um E... (Esta vontade acoplada ao modo de viver e ao pensamento está expresso na canção a “Matemática do Desejo”: “Na matemática/Diz!/Do meu desejo/Eu sempre quero mais um mais um mais um beijo...”).
- Corolário do tópico anterior: JM tem sua própria versão do “verbivocovisual”, que muitos vão rotular com as palavras da moda multimídia e performer; no entanto tais rótulos não signficam nada, hoje em dia qualquer artista faz (é forçado a fazer) utilização da multiplicidade simultânea de meios de comunicação, como exigência técnica e da mentalidade de nosso status social e técnico. JM faz canções tão visuais que são filmes[278], escreve quando canta em seus shows e para a música e fica falando como conferências minimalistas no meio das canções, faz de seu corpo o “cavalo” de inúmeras interpretações, e escritas ideogrâmicas corporais também (vejam o símbolo do kaos fazendo tai chi em Fundamentos do Kaos) etc. (isto é, E outras coisas mesmo).
- Diálogo privilegiado com a pensamento ocidental, seja em um livro de ensaios (Panfletos da Nova Era, Volume 1, Fundamentos do Kaos), seja em um livro de ensaios poéticos (Fragmentos de Sabonete), seja em um livro ensaios ficção (A Floresta Verde Esmeralda), seja em um romance (Deus da Chuva e da Morte, Kaos, Narciso em Tarde Cinza, Sexo do Crepúsculo), seja em um livro de poemas (Poesias de Amor e de Morte), seja em um livro de contos (Miséria Dourada), seja nos filmes (que dirigiu, roteirizou ou nos quais trabalhou como ator), seja nas canções, seja nas palestras, seja nas aulas, seja nos shows, seja nas conversas comuns. Implicação deste ponto: JM não cultiva preconceito nenhum. Assim, muito mais do que a grande maioria dos acadêmicos e eruditos, ele aceita todas as linhas filosóficas, e dialoga com elas, aceitando no sentido de ver ali uma construção importante e fundamental (um dos “fundamentos do Kaos”), mesmo que pareçam para a mentalidade comum de hoje em dia ser contraditórias; o que também não implica em uma geleia geral, ele constrói o seu percurso e mantém a linha de seu pensamento, como o curso do Amazonas, o maior rio do mundo, que vai sempre na direção do mar, aceitando a contribuição de incontáveis afluentes.
- Corolário do anterior: JM não tem medo nem rejeita as contradições. Muito pelo contrário, ele as cultiva, como solo apropriado para a geração de paradoxos, a essência do próprio pensamento e o modo mais comum da existência.
- Afluente para os dois tópicos anteriores: vivemos em um número muito grande de dimensões espaço-temporais, apesar de termos a ilusão cognitiva de que estamos em três dimensões espaciais mais uma única temporal. Este quarto de quatro paredes fechadas é angustioso e falso, limitador, e se deve menos à nossa capacidade de percepção e cognição e mais a condicionamento social, mental e perceptivo.
- Questão paralela: assim como todas as principais correntes do pensamento passam por sua fala, apesar de ele fazer o seu percurso e ligá-las numa decupagem toda própria, que expressa sua própria visão de mundo, todos os gêneros e estilos lhe são caros, e ele escreve e compõe utilizando o máximo de recursos e efeitos técnicos que consegue amealhar, sem no entanto ser insosso e desnorteado; há um estilo de base, um arquétipo ou construção geral dentro da qual ele encaixa as várias metaformoses, exercícios e máscaras artísticas. Não é fácil determinar essa arquitetura, e não há a mínima dificuldade em percebê-la. Ela não tem nome pré-existente, justamente porque ele a inventou, é o estilo de JM (que podemos chamar de JM com K[279]). Um dos traços mais frequentes e um dos estilos que mais lhe são aparentados é o surrealismo. O fantástico, o expressionismo e o experimentalismo também são muito fortes. Por outro lado tem características barrocas (influenciado especialmente por Pe. Antônio Vieira), modernistas (Macunaíma de Mário de Andrade é um dos “riverruns”), do romance russo, do romance joyceano, da Bíblia e dos pré-socráticos.
- A arte-pensamento de JM é o tempo todo política, com tanta radicalidade que podemos dizer também que ela é a-política ou super-política (supera a pólis em favor do cosmos e do advento do super-homem, enquanto que o entendimento comum da política é ultra-conservador, quer manter a visão setorizada e o estado de consciência já atingido; mal percebe ela que é como um equilibrista, só pode manter-se na linha indo sempre em frente). Em JM revolução ganha um significado menor e maior, micromolecular (“microfísica do poder” de Foucault, “revolução molecular” de Guattari) e galática, ao mesmo tempo se afirma como “soldado revolucionário” e “herói das estrelas”. JM entende política como poder em todos os sentidos, e não como representação do poder (por isso o senhor do castelo é Nietzsche, que honra seus convivas).
- Equivalência: JM faz arte-pensamento trágico, no sentido nietzscheano do termo, isto é, afirma a necessidade da existência, o amor fati.
- A mulher tem lugar de primazia, o “universo é essencialmente feminino” como escreveu Carlos Castaneda. O matriarcado redescoberto por Bachofen como a forma de organização social na qual a humanidade passou mais de nove décimos de sua existência, e que era muito mais equilibrada e saudável, e à qual a Terra e o homem retornam como um ciclo, esta descoberta gerou Nietzsche, Freud, Marx e Mautner. A linha invisível e sempre sensível que liga estas quatro filosofias é a linha do matriarcado, que tem como complemento inevitável o nomadismo (v. “Tratado de Nomadologia” e “Aparelho de Captura” in Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari).
- A arte-pensamento de JM é nômade, está ligada a esta ética-pensamento milenar e marginal, que aposta fundamentalmente na vida, contra todas as capturas que o “nazismo universal” (expressão utilizada na música “Cidadão-Cidadã”), intersticial, espalhado, conjuntural, que a maquinaria do estado não para de fabricar (v. Kafka) contra a liberdade de vida-pensamento.
- A interrelação total e em tempo integral entre arte-pensamento, ética-pensamento e vida-pensamento.
- O sexo é bom e tudo é sexo (o que é diferente de dizer que tudo é genitalidade, conjugalidade etc.). O Brasil de JM não é o país da bunda, a “festa de bombom e de bumbum” de que nos fala. O pan-sexualismo de Mautner é dionisíaco e crístico, é o amor por todos os seres, pois tudo que é vivo e até mesmo todas as coisas são expressões a modulações da mesma vida que brota (Proteu).
Chovia quando eu e minha companheira chegamos em São Paulo.
Eu tinha ido fazer uma entrevista com Jorge Mautner, mas a entrevista não saiu desta vez. Eu também tinha recebido a incumbência de encontrar um signo que me guiasse na obra, e olhava para tudo com redobrada atenção, os olhos bem abertos, procurando.
Nem considerei a possibilidade do signo ser a chuva.
Até que encontrei o desenho de Ouroboros com a inscrição que logo me interessou porque eu gosto de ler os textos alquímicos e a pichação era totalmente diferente de todas as outras, tantas, e bem humorada, com seu conselho em inglês, a cidade se tornando como as catedrais um livro de pedra, e um alquimista anônimo e contemporâneo substituindo o arquetípico latim pela nova língua universal.
Coloquei a imagem na primeira página do ensaio, o que muito agradou a Jorge, e o porquê eu só vim a descobrir no ano 2000, quando, para reescrever o texto, reli todos os seus livros; deparei-me então com a surpreendente informação que está na página 35 de Panfletos da Nova Era, que eu já lera várias vezes antes sem nunca atinar com a coincidência: Dora Ferreira da Silva apresentou Jorge Mautner na sua estreia na Revista Diálogo como o Ouroboros.
Agradeço ao espírito pelo signo que me proporcionou, e que é tanto meu quanto dele, de sua obra e da minha, a univocidade do universo, o ser da tempestade e do Kaos.
Porém agora, dez anos depois, quando em menos de dois meses reescrevo o trabalho, em setembro e outubro de 2000, e falto a quase todas as aulas das escolas, e deixo de corrigir as provas, e levo um monte de broncas por não ter entregado as notas do bimestre, pois não consigo me afastar destas páginas, preciso escrever, fico até vinte horas por dia trabalhando no livro, agora eu considero a hipótese que também tinha me passado desapercebida: e se o signo fosse a chuva?
A chuva o tempo todo presente nos textos e nas canções de Jorge Mautner, emblema misterioso, para o qual tenho várias hipóteses e nenhuma conclusão. O que é a chuva na poética de Mautner? A tristeza, a solidão? A alegria sexual e animal do amor na chuva? A tempestade que vergastou durante milênios a Terra primitiva? A higiene da atmosfera (e atma é uma palavra sânscrita, que quer dizer alma)? O ciclo da morte e da ressurreição? A imagem da matéria-energia cósmica em sua fúria tempestuosa?
Eu pensei o tempo todo que o signo tinha que ser algo escrito num muro ou numa folha de papel. Acontece que chovia quando eu cheguei em São Paulo, chovia quando o avião decolou e eu fui embora, passando mal, minha alergia exasperada pela poluição da cidade. No mesmo avião iam o meu professor de filosofia do curso de interpretação teatral e, no banco em frente ao meu, cara a cara, Guilherme Arantes com uma nota musical dourada num cordão, ao lado um americano pragmático, sem cara de turista. Eu olhava as caras, as nuvens, a comida, o céu, e vomitava.
O americano, que não sabia português, dirigiu-se a mim, solícito, tentando ajudar. Eu quis responder e não consegui.
Era a primeira vez que eu ia a São Paulo e fiquei maravilhado com a cidade, passei em êxtase pela esquina da Avenida Ipiranga e da Avenida São João, em direção à Praça da República onde existia um show de Mautner, depois do qual fomos aos camarins, e lá estávamos quando chegou um homem do povo entusiasmado, exclamando:
- Parabéns! Poeta! “Espada de luz! Espada de luz!” Poeta!
O americano falou com o Guilherme, que estava preocupado, um chão de nuvens abaixo de nós, não sabíamos se havia como pousar, ele toda hora olhando para o relógio, e o americano puxando conversa, dizendo em inglês que achava que dava pro avião descer, mesmo com aquele teto. Guilherme respondeu em português, fez questão de não falar a língua do outro, ele que entendesse se pudesse. Mas ele fez isso com doçura, e até me arrumou um saquinho de plástico pra vomitar.
No Rio existe o sol. E eu melhorei.
O início foi ouvir “Quero ser locomotiva”  e rir feliz e alegre com a letra, cantada por Vanderleia, no programa do Chacrinha, nos jovens anos 70. Logo depois sorrir e pensar com “Samba dos animais”, agora na voz de Marília Pera. Mas eu não sabia que as músicas são de Jorge Mautner, nem me importava com autoria, na época.
No Festival Abertura, ainda na tela da tv Globo, 1974, vi e ouvi Mautner cantar “Bem-te-viu”, dele e do Jacobina, tocando seu violino, e amei aquilo, carnaval total, coisa nova cheia de coisas antigas reinventadas.
E logo, no ano seguinte e ainda em 1976, havia uma rádio no am da época, chamada Mauá, que depois mudou o nome para Ipanema, e que só tocava música popular brasileira de qualidade, inclusive coisas consideradas alternativas, como o Mautner. Ali ouvi algumas canções e comecei a reconhecer o compositor.
Quando eu tinha dezoito anos estava cursando Biologia e quase pirando, pois não encontrava ressonância nas pessoas para o que eu pensava e sentia. Andava muito deprimido e desesperado. Tive a sorte de saber de alguma forma que iria haver um show de Mautner no Teatro Sesc de Tijuca, eu morava no Méier, e meu irmão topar ir junto com a namorada dele. Se o show fosse mais longe ou ele não quisesse ir eu não teria ido assistir àquele show que foi tão importante na minha vida.
Achei tudo importantíssimo, lindíssimo, sensacional, todas as canções, as letras geniais, a forma de cantar, as falas, o violino, os músicos que o acompanhavam, o jeito à vontade de ficar no palco, sem medo, só de calça Lee, e descalço.
Ainda por cima, depois do show, sentar na escadinha do palco baixo, para falar de filosofia com a plateia. Meu irmão quis porque quis ir embora, não deu pra ouvir todo o debate, mas eu estava fisgado.
Me tornei compositor, poeta, alternativo, escritor, fiz faculdade de filosofia.
Ao ingressar para o mestrado de literatura brasileira eu tive a ideia de fazer a minha dissertação sobre Jorge Mautner.
Proteu se apresenta como um projeto singular: resgatar uma memória que é viva, presente, cotidiana - e que, no entanto, pelos motivos expostos, como se apontou ao longo do texto, tenta-se fazer calar e recalcar.
Investigar a mitologia do caos e do cosmos e a anti-mitologia do Kaos, numa reversão da tradição ocidental, na obra multifacetada de Jorge Mautner, que entende o Kaos como germe de todos os cosmos, o meio fecundo para a irrupção de muitos mundos e infinitos universos - e para tanto, dialogar com a chamada contracultura do século XX; a antropofagia latente em nossa cultura, que Oswald de Andrade desvelou e Jorge Mautner potencializa como antropofagia eletrônica e maracatu atômico; e com a filosofia da expressão, que vai de Heráclito a Deleuze, em constelações de pontos intensos, contra o fundo negro e em contrapartida aos buracos negros as supernovas, as cintilações de todas as afirmações.
Trazer estes temas para a leitura da obra de Mautner e demonstrar a seriedade deste autor, as potentes ligações filosóficas, artísticas e até científicas que ele faz, apontando o quanto elas ainda são subterrâneas no Brasil do Terceiro Milênio, isto tudo foi uma primeira e necessária tarefa a que aqui me propus.
A partir de agora é necessário dar continuidade a este trabalho, com análises críticas mais detidas em cada livro, conto, letra, poema, ensaio, filme etc., para que não se perca no esquecimento grande parte de nossa produção cultural, principalmente a produção de ponta (de pesquisa do pensamento, que em arte chama-se vanguarda), como sói, entre nós, acontecer.
Há uma lógica nova se impondo na humanidade, para além da tradicional, que já esgotou as suas possibilidades, com suas aporias, os seus becos sem saída, seus genocídios, suicídios, covardias, explorações e niilismos.
O niilismo é o sinônimo da razão clássica que ainda impera no senso comum e nos mais diversos saberes, e que faz pensar que nada haveria para nós fora das quatro paredes paradas do quarto de nossas representação, conceituação, juízo e raciocínio.
Já a nova lógica aparece, por exemplo, em alguns artistas de vanguarda, como Jorge Mautner. É ele mesmo quem fala, e com tanta insistência, sobre outras dimensões da mente, que nem todos estão em três dimensões, alguns estão em mais, porém o homem racional está em três.
Só que é possível para o homem atingir outras, muitas outras dimensões, o que alguns artistas conseguem: Johann Sebastian Bach, Pixinguinha, Jimi Hendrix.
Vemos aí a estranha fusão que é um dos motivos da obra do escritor, poeta, compositor e cantor Jorge Mautner: a nova síntese dos elementos clássico, popular e pop, uma mistura de muitas raças para lá do número três.
Em 2007, Mautner lança o deslumbrante CD Revirão, que marca a virada do milênio, na sua obra.
Na capa ele aparece em duas fotos fundidas, uma vestida de camisa verde e outra de vermelho, num círculo, numa roda, numa bola que gira, sempre de cabeça pra cima e pra baixo, no movimento sem cessar, yin e yang, a rotação do disco e do mundo.
Que fotos significativas no encarte! É como um filme, firme; sobre um vale e uma baía entre montes, que poderia ser e não ser a Baía de Guanabara, uma Guanabara selvagem e dura, forte, ontológica, com nuvens de tempestade e sol no horizonte, ele toca violinho, e vemos linhas de força do cosmos no formato do infinito, o oito, verdes e vermelhas, que vêm da sua música, ele vem delas. Jacobina sorri simpático ao lado de uma partícula quântica, uma pura energia, fazendo uma espécie de anel de Moebius, dentro de uma caverna com pinturas rupestres. Jorge discursa segurando seu violino na ágora de Atenas, e ao longe vemos a acrópole, mas no céu as linhas de força falam de tempo aiônico.
Na contracapa ele está na selva, e sua camisa é metade verde metade vermelha.
“Os pais” e “Outros viram” são parcerias com o Gil (que canta a segunda, com ele); “Assim já é demais”, “Olha só quem passa” e “Estilhaços de paixão” são só dele (mas esta regravação dos estilhaços tem Caetano e ele); com Nelson Jacobina, Jorge Mautner fez neste CD “Ressurreições”, “Ao som da Orquestra Imperial”, “Nicanor”, “Executivo-Executor” e “Juntei a fome com a vontade de comer”.  Deste álbum, são ainda composições de Mautner com Bartolo, “Kilawea”, Bem Gil, “Acúmulo de Azuis” e Ronald Pinheiro, “A história do baião”.
Te amei no dia em que te vi domando um bando de leões
Domando aquelas feras, conquistando os corações
Dizendo que o amor nunca morre porque tem ressurreições[280]
Vejamos novamente o silogismo de Mautner: anti-mitólogo, antiescritor, logo antimaldito.
Ser anti é uma glória e uma praga para o artista, antipoeta, anticantor, e não por deficiência - por excesso. Por amor e comprometimento com a vida.
O que mais seria necessário dizer?
Há a possibilidade da transmutação do homem e do Mundo, Nietzsche puxou orelhas e martelou até que no século XX viessem algumas respostas de algumas das suas maiores inteligências, inquietas, criativas, heróicas.
Agora todos clamam pelo super-homem.
Fim ou começo da nossa história, meta provisória para nosso florescer, dele também trata o poeta Jorge Mautner, talvez algumas citações e observações aqui constantes deixem entrever - e a mais não pretendeu este trabalho.
Senão, ir à fonte.
Nossa fonte nunca se esgota, esta é a mensagem da arte mais potente, o que nem sempre é tido pela melhor ou grande arte.
Ou, como nosso poeta gosta de fechar sem fechar os seus romances:

                                               FIM SEM FIM



                            Entrevistas

Há sempre um demônio a ser exorcizado. A culpa é do imperialismo. A culpa é dos americanos. A culpa é de não sei quem. Não é. A culpa não existe. Existe a responsabilidade individual, de cada um.
              Jorge Mautner[281]

             - Fragmento da participação de Mautner no Canal Livre de 18 de julho de 1989, terça-feira, 17:30, tv Bandeirantes (debate com vários convidados, o tema era o amor)

Mautner: Eu não falo só do amor heterossexual, eu falo também da mulher com a mulher, ou do homem com o outro homem, então isso já muda muito o enfoque. E mais ainda: quando aquela menina falou que o namorado queria bater e humilhá-la, há que considerar o elemento sado-masoquista no amor, a relação da dor com o prazer, que não é assim como nós falamos, é muito difícil, o complexo que faz parte do mistério umbilical que liga a morte com a vida, isto é, o amor com o desaparecimento.
Todo esse aspecto também é muito importante. A dor e o prazer. Até que ponto você vai julgar se aquela relação é uma relação ruim, vista de fora - você não pode.
E o aspecto geo-político: que nos países escandinavos os casais heterossexuais não querem mais filhos para gozarem do prazer hedonista do próprio amor e, junto a isso, também a superpopulação. O aumento de população no mundo e a consciência dos países desenvolvidos de não quererem ter esse problema superpopulacional. /.../ Os poetas não vendem a imagem absoluta do amor, eles perpetuam a imagem do amor através dos séculos, ao lado de Deus e ao lado de tudo que é sagrado, até mesmo sendo diabólico, às vezes. Porque o amor é irmão gêmeo da liberdade, não existe amor sem liberdade, os dois caminham juntos.

                         - Entrevista no Sofá Ambulante da TV da Tribo (programa de rock, esta entrevista era feita com o apresentador/entrevistador Tadeu Jungle conversando com o entrevistado, os dois sentados num sofá, colocado sobre um caminhão que rodava de dia pelas ruas da cidade de São Paulo), que foi ao ar em 16 de dezembro de 1989, sábado, 22:30, Tv Bandeirantes

(Ao som de “Quero Ser Locomotiva)
Tadeu: Temos aqui então mais um Sofá Ambulante. Hoje nós temos ao nosso lado quem? Nada menos, nada mais do que Jorge Mautner, compositor, músico, filósofo, autor de 10 livros, compositor de 6 lps, que agora está numa fase de angariar todo o seu passado, fazer um grande pacote, e tocar a barca para a década de 90. Com vocês, Jorge Mautner.
(Ao som de “Olhar Bestial”)                                                                                                                                                 
T: O que é o profeta?
Mautner: O profeta é como qualquer outra pessoa, só que ele repara nos detalhes, então, por exemplo, ele vai saber que daqui a pouco vem uma tempestade porque ele viu que aquele movimento da folha levada pelo vento já é diferente daquele movimento de há dez minutos atrás, já é um rodopio mais violento, então prenuncia a tempestade.
O ser humano tem dois trilhos: ele de um lado é a morte, ele é apavorado com a morte, me isso criou nossa cultura - já pensou o primeiro primata com consciência de que vai morrer? Isso criou toda a nossa cultura. Até hoje todo mundo vive traumatizado com isso. Até agora.
(Ao som de “Uns” de Caetano Veloso)
E o outro trilho é o amor. O amor de que o ser humano tem mais medo do que da morte.
T: Por que isso, Mautner?
M: Ah, esse é o mistério, você devia perguntar para os deuses e as deusas! Eu não sei. Eu acho que a natureza ela caminha assim: ela é atiçada, ela é estimulada por desafios e oposições. Quanto mais difícil, melhor. Entendeu? Parece uma coisa assim.
T: Parece que o amor é mais difícil do que a morte.
M: Ah, o amor! O ser humano é apavorado com a morte, mas o amor lhe mete mais medo ainda. Isso porque pra sempre nós vamos amar nosso pai e nossa mãe, certo? Os primeiros grandes amores da nossa vida. Mas pra você poder amar uma outra pessoa, você tem que aniquilar de certa forma seu pai e sua mãe. E depois do primeiro amor você fica com medo de ser rejeitado, a rejeição é a dor mais profunda do ser humano. Todos os temas da arte, todos, todos, todos, da arte mais profunda de Ésquilo, até à telenovela mais degradada, todos transam o mesmo assunto, o amor e a morte.
Hoje em dia, inclusive mais, o artista gasta muito mais tempo no negócio do que no ócio. Eu... porque eu sou da Grécia Antiga, de Atenas, e talvez do século XIX, e um escritor fundamentalmente, eu fico mais no tal ócio do devaneio e da quarta dimensão. Isso não quer dizer que eu não trabalho muito, eu trabalho muito, eu sou chefe de gabinete de Gil, eu faço política, eu sou até ator, escrevo, eu tenho duas mil páginas publicadas, mas tenho uma dez mil ainda não publicadas, eu trabalho muito, ,mas isso tudo me dando o máximo de prazer, como agora estando aqui com você, é o máximo de prazer, porque é uma viagem na quarta dimensão. A quarta dimensão...
(Ao som de “Lamento” de Pixinguinha, interpretado por Jacob do Bandolim)
M: Nós todos, mais ou menos, vivemos na terceira dimensão. Algumas vivem na primeira, alguns até na meia dimensão, mas deixa pra lá. A terceira dimensão é aquela que compreende todo mundo tridimensional, que tem os limites no nascimento e na morte. Dentro da cronologia do relógio, aquele relógio de ponto, aquele relógio do nosso horário rígido. A matemática em que um mais um é dois. A quarta dimensão já é parente da física nuclear, já é o mundo de Albert Einstein, da relatividade, onde tudo caminha à velocidade da luz, onde existem outras leis, que são as leis que regem, muito antes de terem regido a cabeça de Albert Einstein, regeram já a cabeça de Johann Sebastian Bach, de Pixinguinha, de Ismael Silva, de Noel Rosa. A quarta dimensão é essa comunicação para além das palavras, para além do que elas dizem, é aquele caminho do mistério, do inesperado, é o reino digamos do artista, do místico, do sonhador, onde o devaneio é o trilho fundamental. Até agora, as forças do egoísmo, do reducionismo, da pequeneza, da mediocridade é que têm dominado e sufocado esse grande espasmo orgiástico da criatividade. Mas a partir de 90, sob a bandeira verde da esperança e da ecologia, que é, aliás, a antiga deusa Harmonia dos gregos, vão triunfar todas as utopias, todos os romantismos, o sonho vai ressuscitar, e o devaneio é necessário.
(Ao som de “Super-mulher”)
O futurismo vem ligado ao trilho da ecologia, pra aí então sim fazer um equilíbrio ecológico entre o trilho da ecologia e o trilho do futurismo. Porque o homem, como diz Sartre, nossa meta é a conquista da morte, é a conquista das estrelas. Esse é o trilho futurista. A ecologia tem sido praticada, como você bem disse, muito mecanicamente, tanto pela esquerda, pela direita, pelo centro pragmático...
(Ao som de “Aquarela do Brasil” de Ari Barroso, com João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil)
Muito mecanicamente ainda, como slogans e fórmulas muito superficiais. Ela na verdade é uma coisa muito profunda, a alma dela é a fenomenologia, ou o candomblé. A alma dela é o taoísmo, o equilíbrio, aquela sutileza do yang e do yin, é o próprio equilíbrio do inconsciente seu com o seu consciente, isso é ecologia também. E num país como o Brasil, país continente, que é a oitava ou sétima indústria do mundo, e tem um salário mínimo que é o centésimo quinquagésimo oitavo do mundo, isso é um desequilíbrio ecológico; um país em que você tem 150 milhões, em que 5 % têm tudo e o resto não tem nada, isso é um desequilíbrio ecológico; um país em que você tem 30 milhões de crianças abandonada, 30 MILHÕES DE CRIANÇAS ABANDONADAS, nem o Japão pós-guerra, nem a Alemanha do Terceiro Reich bombardeada, em escombros, nem a Itália, nem a Áustria, tiveram crianças abandonadas, depois de uma Guerra Mundial! O Brasil, sem Guerra Mundial, tem trinta - ou mais - milhões de crianças abandonadas. Que país é esse? Isso é um crime hediondo. E é também questão de ecologia - é um desequilíbrio - a gente tem que amenizar isso.
(Passa na rua uma moça caminhando, levando uma árvore no colo.)
M: É isso aí, você vê aquela moça carregando uma árvore da vida. A árvore da vida é isso aí, como Göthe dizia: “Cinza é toda teoria, mas verde, meu amigo, é a cor da árvore da vida!”
/.../
A maior lição do Brasil é esta: porque esta mistura de raças é a grande lição para que o mundo possa continuar sobrevivendo, porque a questão mais grave que emerge no mundo, no Terceiro Mundo e no Primeiro Mundo, feliz com a Perestroika, lá, feliz, é a questão do racismo.
T: Genial. Jorge, muito obrigado por você ter estado aqui, foi ótimo. Queria ficar sentado mais tempo ao seu lado.
(Ao som de “Encantador de Serpentes”)
M: Essa é a verdadeira televisão da liberdade. Aqui ao ar livre, o caminhão andando, falando o que a gente quer. É isso aí. Muito axé!

- Entrevista concedida à Rádio Fluminense FM (“A Maldita”) em outubro de 1987.

Fluminense: A gente está recebendo aqui hoje o Jorge Mautner e o seu parceiro Nelson Jacobina. Vamos passar a bola do Movimento Figa Brasil para o pessoal.
Mautner: O Movimento da Figa foi lançado por mim e pelo Gil no início deste ano, quando nós fizemos o show  O Poeta e o Esfomeado, com a participação do incrível Repolho na percussão. Esse show  percorreu o Brasil e nós lançamos o Movimento da Figa em 38 shows que nós fizemos por este país-continente. Esse movimento pretende ser um movimento apolítico - apolítico não, ele é super-político - ele é apartidário, ele não é ligado a nenhum partido. Ele luta por metas políticas, além políticas, culturais. Ele pretende inter-relacionar todos os assuntos entre si, por exemplo, a cultura. A cultura, aliás, é o inter-relacionamento de assuntos, entre a ciência, entre a poesia, entre a existência, entre o sonho, entre o pesadelo, entre o estar acordado, entre o namoro... A cultura oficial, depois de 64, começou a cortar essas interconexões, inter-relações. O trabalho prà massa foi feito através da televisão, atomizando todo mundo, e pràs elites foi feito através do acordo MEC-UZAID de Jarbas Passarinho e Carlos Lacerda, junto com o Pentágono norte-americano, para que os estudantes não mais pensassem, e aí inventaram os três pontinhos. Então, uma aula de historiam, por exemplo, está dividida em três pontinhos: a, b e c. Impossível você estudar o assassinato de Júlio César, que implicava reforma agrária e tudo, em três pontinhos. Eu me lembro que quando eu estudava o professor de história encenava o assassinato de Júlio César e rolava escada abaixo, quase quebrava a cabeça. Mas eu lembro muito bem desse evento e aprendi muito bem história assim. É o único modo de você aprender história, aliás, de você aprender geografia, matemática, história da arte, português, francês, alemão, álgebra, astronomia, astrologia, feitiçaria, seja o que for, cultura é inter-relacionamento de um assunto com o outro. Pois bem, isso foi cortado deliberadamente, como eu disse, pràs massas pela televisão, e prà elite pelos três pontinhos. Por isso que as universidades não só não sabem nada, nossos professores não sabem nada, nem os alunos, porque é tudo três pontinhos. Então, o Movimento da Figa é um movimento cultural que ergue majestosamente sem modéstia alguma a necessidade urgente de a gente inter-relacionar os assuntos, isto é, de estudar de verdade, de se informar de verdade, não para obter diploma, que você compra, não pra fazer efeito no superego, mas pra saber realmente e emancipar a sua vida e depois a vida do Brasil. É o único modo pelo qual poderemos instalar uma democracia de verdade, é não só alfabetizando, mas instruindo com verdadeira cultura todos os setores da população brasileira, e nessa imensa e árdua tarefa de professores itinerantes, cantores e anunciadores da Nova Era que eu e Gil nos lançamos nesta campanha. Temos a adesão de todos os artistas brasileiros de importância, praticamente toda a música popular brasileira está com o Movimento da Figa. /.../ Modéstia à parte, o Movimento da Figa tem o maior cast da história, porque não é o Movimento da Figa, é a própria revolução brasileira socialista em marcha. Um socialismo novo, humano, existencial. O Movimento da Figa prega isto, e, como primeiro estandarte, a negritude, a necessidade da questão negra. Você veja só, o Brasil, com metade da população negra, sendo o segundo país negro do mundo, onde estão seus vereadores, seus deputados, seus médicos, seus engenheiros, seus executivos, seus empresários, seus governadores, seus promotores, seus juízes, seus xerifes...? Os Estados Unidos, com apenas 18 % da população negra, os cinco prefeitos das maiores cidades americanas são negros. Sem contar deputados, vereadores, e sem falar que o Ronald Reagan acaba de nomear um general negro para chefe do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos! Então vocês imaginem, um país que é a primeira superpotência nuclear estelar do planeta, com 18 % de negros, nomeia um general negro chefe do Conselho de Segurança Nacional. E nós aqui, eu pergunto, onde estão os generais negros e onde está o presidente negro?
F: É uma diferença astronômica mesmo...
M: Astronômica. E é isso que a Figa se propõe a tumultuar no ótimo sentido da palavra.
/.../
F: Como vocês tocam em temas polêmicos, como a questão de negritude, vocês não acham que podem encontrar em certos setores uma certa resistência?
M: Uma grande resistência! Uma imensa resistência! Digamos, uma muito grande resistência! Não é à toa que eu sou chamado de maldito. Por que o Jorge Mautner é maldito? É por isso. Porque eu posso te dizer que, recentemente, eu estou fazendo showz de semana toda em São Paulo, e a Globo não vai entrevistar, me tem podado violentamente. Porque esses são assuntos perigosos, que as pessoas, por uma questão de comodidada, de egoísmo, não querem saber. Eu acho que a função do artista não é só ganhar dinheiro pro bolso dele - e ganha muito bem o artista brasileiro, o músico - mas é pensar um pouco no próximo, porque um país em que morrem, oficialmente, criancinhas de fome de três em três minutos, um país que tem dezessete milhões de pivetes, são criancinhas, digamos, de doze anos, prostituídas, manipuladas, feridas e machucadas na sua dignidade mais profunda do sexo... Eu tenho uma filha de doze anos, e eu penso, se essa menina estivesse na rua eu pegava uma metralhadora e ia matar gente, meu filho. Isso é um HORROR que o Brasil não pode, com dezessete milhões de criancinhas... Jesus Cristo não vai perdoar isso não! Jesus Cristo perdoava tudo, ele perdoava até o inimigo, ele mandava a gente amar o inimigo. Mas ele disse: “Se alguém fizer mal a um desses pequeninos, melhor fora que amarrassem uma pedra ao redor do seu pescoço e o jogassem no fundo do mar”. Jesus Cristo, ele fica irado e propõe a morte da pessoa que faz mal a um desses pequeninos. Notem, é ele mesmo, Yeshua Ben Joseph, Jesus filho de José, que manda você amar o seu inimigo. Nessa hora, ele perde as estribeiras e fica colérico. Então, dezessete milhões de crianças - não pode. E o problema da negritude, como eu disse, os Estados Unidos, que têm 18 % /de sua população negra/, têm um general negro na chefia do Conselho de Segurança Nacional - e aqui? Eu deixo esta pergunta no ar.
F: E aqui, Mautner? Como é que você está vendo o Brasil? Você está esperançoso?
M: Eu estou esperançoso, porque eu digo: quanto mais terrível a situação, mais cruel, mais desanimador é o que as instituições nos apresentam, e que a gente sabe que a gente é frustrado, é enganado, vive num estado de pânico, de miséria, de carência, de extrema necessidade, e o que segura é o grande espírito do brasileiro, é essa coisa da força. Por exemplo, num país escravo, em que metade da população é escrava, precisa de uma polícia muito terrível para manter metade daquela população que não é considerada gente, tá lá algemada, em ferros, chicoteada, marcada a ferro em brasa, torturada... e a outra não faz nada, deitada na rede dando ordens: “Tição! Pega lá rapadura! Corre lá!”. Deitado na rede. Então um Brasil destes, que criou uma polícia do arbítrio, uma política de total desprezo - quanto vale uma vida humana aqui? Dez mil cruzeiros? Cinco mil? Não sei. Eu contrato qualquer um pra fazer um trabalho, matar o outro por dez mil, cinco mil. Acidentes - nós somos recorde de acidentes no mundo. Esse desprezo pela condição humana é a coisa mais terrível do Brasil. Então nesse momento de crise aguda que nós chegamos, e quase de desesperança, de bode, de profundo abismo, de niilismo, de descrença, é que pode e deve e tem que nascer, e vai nascer a grande esperança. Como traíram tudo, nós temos oportunidades de fazer tudo de novo, DA MELHOR MANEIRA, da maneira mais justa, mais correta, mais honesta, menos cruel.
F: E “Goianobyl”?
M: Puxa, “Goianobyl”! Você sabe que, pra responder sobre “Goianobyl’, eu fiz uma música em 58 - 58 é impressionante, foi quando explodiu a minha inspiração - que eu lia o Padre Vieira, e ele, não sei se vocês sabem, ele  não conseguia escrever. Aí, de repente, ele teve um estalo, aí começou a escrever, escrever. Eu também tive esse estalo ao ler o Padre Antônio Vieira, então escrevi o livro Deus da Chuva e da Morte, compus “O Vampiro”, “Olhar Bestial”, uma série de músicas, entre as quais uma que eu deixei inédita, que eu achava que na época não tinha importância - como eu havia relatado, aquele disco, “Radioatividade”, de 65, a Nara Leão tinha comentado na época: “O que e Brasil tem que ver com a bomba atômica?”, coisa de que ela, muito simpática, muito amiga, se arrepende até hoje, porque ela disse essa frase bestial. Mas eu em 58 tinha feito uma música que resume o meu parecer sobre energia atômica. Porque, de um lado, eu fui educado na admiração pela energia nuclear pelo meu pai, já falecido, que era um cientista-filósofo, e logo criança eu aprendi o “Tao da Física”, a relação da matemática, onde 1 + 1 não é 2, pode ser - 5 ou + 4.000.000, que é muito parecido com o mundo da feitiçaria, do candomblé, da imaginação poética; então eu sempre me senti muito bem dentro do mundo atômico, no sentido de que o átomo desvelava uma nova realidade humana e nos levava mais próximo desse socialismo sonhado, desse comunismo panteísta místico que todos nós sonhamos, dessa felicidade do sonho, onde não tem mais fronteiras, propriedade privada, nem separação de sujeito/objeto, nem de nada. Enfim, esse que é o meu mundo atômico. Mas aí, eu tinha horror sempre da bomba atômica, como os próprios cientistas, como o Mário Schemberg, e toda a turma do Metaplom que trabalhava já na ciência atômica, tinham horror da bomba atômica, um paradoxo, né?, mesmo os criadores da bomba atômica ficaram apavorados com ela. Mas é impossível você negar o fascínio e a importância do átomo e do desvelamento do próton.
F: E  você vai relançar essa música (“Hiroshima/Brasil”)?
M: Eu acho que sim, porque essa questão atômica se entrelaça com todos os assuntos. É impossível, de um lado, ignorar o mundo atômico, ignorar as viagens espaciais, e esses cientistas todos, notem bem, a tarefa mais importante nossa, além da organização sindical, é a conscientização, a manifestação da cultura como inter-relação de coisas. E nisso os cientistas e os artistas - os artistas por quê? Porque ele têm muita importância, sempre tiveram, mas hoje em dia eles têm mais do que nunca, imagine a importância de um Alceu Valença, de um Chico Buarque, de um Cândido Portinari, de um Jorge Amado... todos, todos nós. Vocês que lidam com as artes, todos comunicadores - porque o rádio e a televisão fizeram todo mundo se ligar nisso - dizem que tem o Judiciário, o Executivo, o Legislativo e a Televisão, que governa, não é mesmo? E os cientistas, também, que são muito importantes, claro. O Movimento da Figa sempre se dedicou ao trabalho de fazer a cabeça dos artistas e dos cientistas. É a primeira vez que ele toma o vulto e a forma e o conteúdo de uma organização de massas[282], mas na realidade este trabalho tem sido feito em relação aos cientistas e aos artistas. E eu destaco aqui os cientistas porque hoje em dia o cientista pra ser bom - tem também aquele cientista que vai só pro detalhe, mas esse é um cientista medíocre...
F: De carreira.
M: É, de carreira. Agora, o outro, que inter-relaciona as coisas, ele é preocupado com a formiguinha, com a planta, com o próximo, com a mulher, com o sonho dele, com o amor e com o efeito que vai criar a invenção dele. Esse humanismo necessário, mais do que nunca, é que faz os cientistas serem tão preocupados, e essa questão atômica ser tão importante em todos os seus aspectos.
/.../
F: E a arte, ela política?
M: A arte é uma deusa à qual eu dediquei a minha vida. A arte é política e é apolítica, mas mesmo quando ela é apolítica ela é política. A minha arte é super-engajada, mas tem um lado da arte que tem que sempre estar livre, porque a cultura, além de ser um inter-relacionamento de assuntos, é uma discussão entre liberdades, e liberdade e com liberdade, criando novas e infinitas liberdades. Então tem o ideal daquele pinto Henri Matisse, ele queria o luxo, o tédio e o prazer. Que maravilha, né? Para que todos passamos gozar de luxo, de tédio e de prazer, comer lagostas, ficar tomando absinto... Tendo grandes sensações da imaginação, da pele, do sexo, do orgasmo infinito... Isto é que tem segurado, inclusive, a chamada contracultura. É isso. O que faz a gente suportar esta vida, este vale de lágrimas, este salário mínimo abaixo das Filipinas e da Tailândia? É justamente essa compensação de que Freud e Jung viviam, que é o inconsciente, que vem dos sonhos, que vem com o prazer. É a capacidade de cada um escavar o seu prazer no espaço mínimo. Isso é o grande mistério do ser humano. Eu vou contar um episódio: um dia estávamos eu e Zé Ramalho indo de limusine negra com ar condicionado fazer umas fotos, e nós dois angustiadíssimos, e o dia raiando lindo lá fora, e passou um crioulo, sem camisa, guiando uma bicicleta, sorrindo, um astral, fez um sinal assim pra nós, e continuou pedalando feliz da vida. Eu falei assim: Meu Deus, nós nesta limusine, tristíssimos, angustiados da vida, e o cara, coitado ali, rindo, feliz, nos deu um alô lá fora, sem camisa - o homem feliz não tem camisa! Eu sempre penso nisto. A felicidade e a vida não é esse dinheiro que você armazena e fica assim enrustido, na repressão anal total, não; é essa dadivosidade da comunicação. Quando todo mundo perbecer que a grande alegria da vida é essa comunicação intensa vai ser muito melhor.
/.../
F: Eu queria agora fazer uma pergunta bem óbvia, que eu esqueci de fazer, mas eu acho que está valendo. Por que Figa?
M: Figa é pra exoricizar todo esse nefasto mal que nos rodeia. Foi fruto de um sonho de Gilberto Gil. Ele teve um sonho e no meio do sonho ele sonhou com a Figa, então ele me disse que veio do profundo inconsciente. Aí eu acrescentei as estrelas do Cruzeiro do Sul em cima, e assim ficou Movimento da Figa Brasil. Agora, a Figa todo mundo acha que é um símbolo da África negra, não é, ela é um símbolo priápico, ela é um símbolo orgiástico de uma religião orgiástica tipo dionisíaca, ou dos Mistérios de Elêusis, e vem da Ásia Menor. Ela simboliza o yang e o yin, porque ao mesmo tempo a Figa pode ser um símbolo sexual masculino e um símbolo sexual feminino.
F: Agora vamos tocar “Samba Jambo” e “Rock Comendo Cereja”. Você quer comentar alguma coisa a respeito?
M: “Samba Jambo” é um samba jambo que fala da felicidade daquele luxo,  tédio e prazer que coexiste com toda a luta do vale de lágrimas. E “Rock Comendo Cereja”, eu gosto de falar que a palavra “cantor” vem do antigo hebraico, e quer dizer “o rabino que canta pra Deus”. Todo cantor canta pra Deus,  seja o Deus dos judeus, dos muçulmanos e até mesmo dos ateus porque traz sempre a boa intenção de um mundo melhor e de um instante intransferível. Ah, e no “Rock Comendo Cereja” eu digo assim: “Viva a vida querida/Aqui agora neste momento”, que é sempre este momento intransferível que não volta nunca, que este momento agora do nosso papo não vai voltar nunca - a não ser que aconteça um milagre da eletrônica e eu repita várias vezes - mas aí já estamos na simultaneidade que faz esta sensação se repetir infinitas vezes... (Risos)
/.../
M: O vírus da aids é um outro fator da guerra bacteriológica, e da pulverização e do envenenamento do planeta que é uma questão que muito nos apavora e que nos faz ficar também muito conectados com a chamada política verde. Eu gostaria de citar aí o grande poeta Göthe, universal alemão, que dizia: “Cinza é toda a teoria, mas verde, meu amigo, é a cor da árvore da vida”. Então os nossos amigos do Partido Verde, o Sirkis, o Gabeira, o João Neshiling e o Ruschi dos beija-flores que morreu, não envenenado pelo sapo venenoso, mas sim por toda a lataria ocidental. E então esse “Tataraneto do Inseto” ao mesmo tempo é uma fábula sobre isso e uma fábula social também, da insurreição dos pequenos, do momento em que a paciência já estava muito... né? o saco estava cheio e explodiu. E de repente o mosquito decide julgar os seres humanos: “Canalhas! Arrependei-vos!”. E é também a velha missão de Israel internacional, que é produzir profetas; quando tudo estava bem, aliás, quando tudo estava ruim, muito sofrimento, como agora, os profetas vinham e davam esperança, dizendo: “não, vai ficar melhor, vamos fazer o Movimento da Figa, tem jeito...” Aí, quando tudo estava muito bom, que não é o nosso caso, eles começavam a ameaçar os ricos, os poderosos e seus palácios, que não estavam vendo o sofrimento da massa. Jeremias sempre dizia no deserto: “Canalhas, arrependei-vos!”, convidando todos a fazer uma imensa auto-crítica, a tentar mudar o curso das coisas, enquanto ainda é tempo, para evitar a sangrenta tempestade que se desenha no horizonte, se medidas imediatas, urgentes, necessárias, não forem tomadas em todos os sentidos, desde eleições diretas para presidente até a modificação total dos meios de comunicação, coma a abertura de emprego para todo mundo, alfabetização, mas em torno de carinho individual e dedicação, em que cada estudante brasileiro que saiba ler e escrever se torne um mensageiro, um missionário idealista por seus irmãos menos felizes, mais desamparados, instruindo, fazendo-lhes chegar a cultura e a informação, porque não tem outra maneira. Ou se adquire cultura e informação ou naufragaremos como nação.

- Programa Couvert Artístico, Rádio JB FM, 8 de setembro de 1995


Entrevistador: Hoje vamos saber um pouquinho mais sobre este alquimista da MPB e relembrar alguns sucessos que marcaram sua carreira de compositor. Você tem andado sumido, né? O que você tem feito?
Jorge Mautner: Eu tenho feito o que eu sempre fiz desde 1958: cantado, escrito e anunciado a boa boa nova do Kaos com K. Eu tenho feito isso por aí. Só que desta vez parece que estou de novo em evidência, graças a Deus, porque a Warner decidiu relançar os meus discos em forma de cd, e uma editora, a Relume Dumará, também decidiu relançar os meus livros. E principalmente a garotada do Brasil, a juventude, tá redescobrindo a música brasileira, então eu estou indo nessa grande onda, que sempre foi a minha onda.
E: Ok, Jorge. Você vem acompanhado de seu violino e do músico Nelson Jacobina.
J: Não só músico como maestro, compositor, parceiro, trabalha comigo há vinte e cinco anos.
E: Você vai tocar “Rock Comendo Cereja”.
J: Que aliás é uma música que nós sempre tentamos mudar pra abrir o show, mas é sempre ela que abre o show, porque ela é uma espécie de agradecimento ao fato estarmos vivos neste segundo, é uma música que celebra o encontro. É isso aí.
(Mautner canta “Rock Comendo Cereja”.)
E: Quais as músicas de sua autoria que fizeram mais sucesso? E quais as que deveriam ter feito sucesso e não fizeram?
J: A de maior sucesso foi o “Maracatu Atômico”, que foi primeiro gravado por Gil e hoje tem mais de quarenta e oito gravações e é de parceria com Nelson Jacobina.
(Mautner canta “Maracatu Atômico”, exclamando ao final: “O o mundo se brasilifica, ou virará nazista!”)
E: Cada uma de suas exclamações, interrogações e reticências contém a medida exata da sua indignação. Com alguns ilustres parceiros, entre eles Caetano Veloso, Gilberto Gil, você vem sempre acompanhado de uma plateia fiel. Como você definiria o seu público?
J: O meu público é o melhor público possível, são jovens estudantes, artistas, pessoas maravilhosas, pessoas de todos os tipos, mas principalmente isso, pessoas extremamente criativas, pessoas que são geralmente artistas, poetas, músicos, compositores... O coração do Brasil.
E: Vamos ouvir agora “O Vampiro”?
J: Esta música foi composta em 1958, e eu fui muito influenciado pela música mexicana e pela história mexicana.
E: Com quais partidos políticos você teve ligação? Conte-nos como foi a sua experiência em cada um dos partidos.
J: Eu acho que aí seria uma história muito longa, quase impossível (de contar). Mas eu desde que eu escrevo, desde 1958, que eu criei o Movimento do Kaos, e é do Kaos que eu gostaria de falar, porque eu estimo todos os partidos de esquerda, eu fui do Partido Comunista, fui do PDT, do PC do B, do PT, e meu coração está em todos, mas a principal mensagem é o Kaos com K, que quer dizer: Kristo Ama Ondas Sonoras, e o segundo item quer dizer: Kamaradas Anarquistas Organizando-se Socialmente, o terceiro item quer dizer: Kolofé Axé Oxossi Sarava, e o quarto cada um escreve o que quiser[283], porque é extremamente individual, extremamente libertário esse movimento da quarta dimensão. E eu gostaria de lembrar uma música dessa época que eu criei esse Kaos, e que é uma música que aparentemente não tem nada a ver, é uma música extranha, está entre as músicas que eu classifico de expressionistas, que é esse “Olhar Bestial”, porque a condição principal do poeta, dizem que o poeta vive distraído, olhando as estrelas, é verdade, “Ora, direis, ouvir estrelas!”, a gente ouve, né?, e também o principal pressuposto do pensar é o espanto, o filósofo e o poeta vivem espantados com tudo: “Uma mosca!!! Olha lá!”, espantado com tudo, parece meio bobo. Pois o “Olhar Bestial” tem um pouco desse espanto necessário.
(Mautner canta “Olhar Bestial”.)
E: Jorge, explica prà gente o que é o Movimento da Figa.
J: Ah, o Movimento da Figa foi um movimento que eu e Gil criamos quando nós fizemos o show “O Poeta e o Esfomeado”, no qual ele era o poeta e eu era o esfomeado, naturalmente. Nós fizemos quarenta e oito shows pelo Brasil, e convocamos mais ou menos seis mil pessoas para participarem desse movimento cultural. O Movimento da Figa na verdade era o Movimento do Kaos com outro nome, abrangendo mais o Kaos na opinião de Gil, (que ele achava que) já tinha uma apriorística e colocava uma ideia muito pessoal minha, então a Figa pretendia abranger, porque de fato, com a liderança dele, com o show dele, nós inscrevemos seis mil pessoas no movimento. Mas acontece que logo em seguida foi a época em que ele decidiu ir prà política, do que ele se arrepende hoje, ele diz que não quer ser mais candidato pra nada. Mas foi nessa época, e aí eu o acompanhei. E aí nós não continuamos essas atividades, preferiu ele a vida política direta, aquela história dele tentar ser prefeito em Salvador, e depois virou vereador, eu o acompanhei como chefe de gabinete, ou anti-chefe de anti-gabinete. Mas nós agora estamos voltando, e pra este ano ainda, em breve, nós vamos fazer o primeiro Congresso do Kaos, porque em todo lugar que eu vou, a juventude que vem ver nosso show ela pergunta por esse Movimento do Kaos, tem muitas pessoas interessadas, o próprio movimento estudantil brasileiro, a UEE de São Paulo, muita gente, então este ano a gente pretende ainda reativar firmemente. Hoje em dia com computador e fax dá pra organizar o inorganizável.
E: Qual é perfil ideológico dos integrantes da Figa?
J: Os integrantes da Figa são democratas totais, mas também tem revolucionários totais, mistura tudo, só não tem nazista, aliás até mesmo alguns deles se aproximaram. (Risos.) Porque mexe com o Brasil. O slogan por exemplo que eu já disse: Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista, é verdade.
E: Inclusive a Figa tende a oposto dos partidos políticos?
J: Não seria um partido, e sim um movimento cultural. A Figa Brasil e o Kaos com K pretendem fazer clubes filosóficos, nada de política direta, apenas fomentar a cultura que é a coisa mais importante do Brasil. Então a ideia seria que esse Kaos se propusesse a ser uma confederação nacional de todos esses grupos que já existem por aí, eu digo que eu sou o caixeiro viajante dessa ideia, porque eu viajando pelo Brasil eu ficaria reunificando e unificando, seriam vastas cooperativas na verdade, de pessoas interessadas em publicar coisas, em publicar cds, discos, vídeos, livros, poesias, enfim, seria ativar, isso é que seria a revolução cultural.
E: O que significa a quarta dimensão?
J: O Kolreuter, aquele famoso e incrível músico alemão que mora  no Brasil, ele tem um depoimento incrível na rádio sobre a quarta dimensão, ele era amigo do Einstein e ele morava na Alemanha, e quando começou o nazismo ele percebeu que o nazismo era tão profundo que o primeiro item de Adolf Hitler era: “A missão do nazista é interpretar os desejos do fuhrer.” Era muito profundo, e dava um baile na direita, na esquerda e no centro. O Kolreuter percebeu que a única maneira de se opor ao nazismo era fazer uma coisa mais profunda, e que era o quê?, era criar clubes filosóficos, desse tipo Kaos com K que eu proponho. E no entanto quando ele foi fazê-lo eis que o tio dele da Gestapo e da SS veio para prendê-lo, o próprio tio. Então ele se mandou para o Brasil, teve sorte, veio pra cá pro Brasil. A quarta dimensão é o mundo que Einstein revelou, é todo o mundo do relativismo, todo o mundo que o Paulo Coelho trata nos seus livros, os cristais, o Caminho de Santiago. A quarta dimensão é tudo aquilo que não é da terceira. A primeira dimensão é a lógica unidimensional, a segunda dimensão já tem sim e não, sim e não como o computador, a terceira dimensão já tem o terceiro elemento da perspectiva, da tese, atítese e síntese. Agora a quarta dimensão já é o dado do simultâneo, é o Pai, o Filho e o Espírito Santo e o mistério permanente, é o “Samba dos Animais”, é o tempo em que nós falávamos com os animais - sendo que isto também é uma fábula política.
(Mautner canta “Samba dos Animais”, e depois “Orquídea Negra”.)
E: No bloco anterior nós falávamos sobre o Movimento da Figa. E a Revista Kaos, que você e Caetano iam fundar? Vocês ainda pensam nisso?
J: Eu penso que essa reativação agora, deste ano de 1995 para 1996, nós vamos reativar esse Kaos com K, em breve teremos já um número pra que possam ligar. E a propósito, eu vou cantar uma música que tem a ver com isso, chama-se “O Tataraneto do Inseto”. Você sabe que a novidade são as experiências genéticas, bem... esta história aqui é verdadeira. E é totalmente Movimento do Kaos.
(Mautner canta “O Tataraneto do Inseto”. Nesta versão, o discurso do inseto ficou assim: “Ele era um mosquitinho muito nervoso/E aquele dia ele decidiu descansar/E pousar em cima das páginas abertas/Do filósofo Friedrich Nietzsche/Bem, esse filósofo não queria ser filósofo/Ele queria ser um sátiro/Ele vivia no século XIX/E ele disse que escrevia/Para ser dinamite para o século XXI/É, e entre muitas filósofo que queria ser sátiro/E escrever como dinamite para o século XXI/Ele inventou a seguinte frase:/A alegria anseia a eternidade/Bonito, né? Outra:/Aquilo que o amor quer/Ele o consuma além do bem e do mal/Outra frase do sátiro:/Somente quem tiver um caos dentro de si/Poderá dar luz à grande estrela bailarina/Pois é/Mas não foi nenhuma desses frases/Que o mosquitinho pousou/Ele pousou em cima da seguinte frase:/Os fortes quando tomam veneno/O veneno apenas os torna mais fortes ainda/Anh!!!/Quando o mosquitinho leu aquele frase ele disse:/Eureka!/Como Diógenes na banheira/Olhou para aquela bela e amarela e refulgente/E faiscante e fascinante e viciciante lata de DDT/À sua frente e não resistiu/Voou num voo direto em cima da lata/Amarela e refulgente de DDT/Enfiou sua tromba de mosquito dentro dela/E sorveu todo o seu veneno de um só gole/E foi Schlup!/Foi assim Nelson: Schchchchchchchlp!/E eis que nasceu o primeiro super-herói mosquito/De todas as gerações/E ele se comunica comigo/E ele me nomeou o seu porta-voz qualificado/Com a seguinte mensagem:/Canalhas seres humanos, arrependei-vos!/É chegada a vigésima quinta hora/Vós todos sereis julgados impiedosamente/Pelo Supremo Tribunal do Comitê de Salvação Pública/Do Movimento dos Mosquitos sob o MEU comando/Acusados de milhares e milhares de genocídios/Chacinas massacres torturas humilhações ofensas/E assassinatos em milhares de mosquitos/Mosquitos de todas as cores/Mosquitos brancos mosquitos negros/Mosquitos mulatos mosquitos cafusos/Mamulucos pardos/Mosquitos de todas as classes sociais/Mosquitos de todas as idades/Idade madura idade idosa idoso mosquitos/Mulheres mosquitos mulheres grávidas mosquitos/Adolescentes mosquitos menores mosquitos/Menores abandonados mosquitos/Canalhas!!! Arrependei-vos!!!/É chegada a vigésima quinta hora/E a guilhotina está preparada/Ouvi falar que uma barata biônica/De vinte e quatro metros/Vinte e quatro centímetros/Vinte e quatro milímetros/Fabricada no mesmo laboratório/Que criou o vírus da aids/Laboratório nazista evidentemente/E essa barata não se sabe por quê/Talvez porque a União Soviética acabou/E ela se viu sem serventia/Enfim, ela olhou para o espelho em frente/A si mesma e se viu/Como barata barata/E agora/Abraçada ao super-herói mosquito/Ela grita:/Canalhas! Arrependei-vos!!!/Ouvi falar também/Que recebeu novas adesões/Como por exemplo a diarreia vermelha/Que acabou de pintar lá em Manaus/Também o vírus o Ebola ou Ébola/Não sei/Do Zaire também se uniu/E também, imaginem, pasmem!,/Recebeu apoio recente/Do mais tradicional mosquito/O mosquito da malária/Ele é mais tradicional/Porque eu estive lá no Amazonas/E dizem/Que ele é o maior defensor da Selva Amazônica/Pois é/Com todos esses vírus ao lado/O super-herói mosquito grita/Grita aos quatro cantos do universo:/Canalhas! Arrependei-vos!!!/.../Mãe! Mãe!A professora de História/Me mandou/Ir ouvir aquele discurso//Que Getúlio Dornelles Vargas/Fez no Vale do Anhangabaú/Em 1941/Primeiro de Maio/Em São Paulo/Em que ele dizia:/A lei, ora, a lei.../Mãe ele disse num canto gaúcho/Ele disse assim olha:/A leeeeeei, ora, a leeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeiiiiiiii/Essa última lei se perde no infinito do pampa/Por que mãe?/O que será que ele queria dizer com isso?/Que o Brasil tem uma lei/E tem outra lei que anula essa lei/E aí tudo fica sem lei?/Será que é por isso mãe?/Por isso que ele disse:/A leeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... ora a leeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeiiiiiiiiiiiiiiiiiii...Ele também tinha um ministro/Dr.Coelho/Que dizia:/Vocês pensam que vocês pensam/Mas quem pensa sou eu/Mãe, á em cima, aliAliVinte e quatro milhões de mosquitosAí/No céu da Guanabara/Em cima do país continente/Gritando:/Canalhas! Arrependei-vos!!!)
E: Aproveite agora então Jorge e dê uma visão da sua vida de compositor, cantor e escritor. Aproveite também e fale-nos a respeito de seus livros e de suas músicas.
J: Eu tenho dez livros publicados, eu fui descoberto em 1958 pelo filósofo Vicente Ferreira da Silva, de quem Oswald de Andrade dizia ser o único pensador do Brasil, e também por Paulo Bonfim, Guilherme de Almeida, e em 58 eu escrevi Deus da Chuva e da Morte, que foi publicado em 1962, quando eu recebi o Prêmio Jaboti, que é o maior prêmio do Brasil de revelação literária. Foi esse livro Deus da Chuva e da Morte que influenciou Glauber Rocha, que a Anecy Rocha em 62 já havia levado pra ele ler, também influenciou Caetano Veloso, Gilberto Gil, daí o fato deles dizerem que eu sou o pai ou o avô do Tropicalismo, inclusive o Caetano, pouca gente sabe, o Caetano me homenageia em “Conteúdo”, me dedica a música em que ele fala do “poeta alemão”, mas principalmente em “Sampa”, quando ele fala assim: “Sua oficinas de florestas/Seus deuses da chuva/Panaméricas”, “seus deuses da chuva” ele se refere ao meu livro Deus da Chuva e da Morte. Este livro é o início da Mitologia do Kaos, tudo que eu escrevo é a Mitologia do Kaos com K. Daí a atualidade dele, que é Kaos contra o nazismo, Kaos contra o quarto reich disfarçado. O livro que se segue é Kaos de 63. Em 64 saíram dois livros: Narciso em Tarde Cinza e Vigarista Jorge. E foi aí que eu fui um dos primeiros a serem caçados pelo golpe de 64. O livro Vigarista Jorge foi apreendido por ser “subversivo e pornográfico”, incurso na Lei de Segurança Nacional, fui um dos primeiros autores, porque o Ato Institucional só se deu em 68, e eu já fui apreendido em 65. E também o meu primeiro compacto, que foi gravado pela RCA Vítor, chamado Não, não, não/Radiotividade, as duas eram músicas de protesto. Aí por sete anos eu fui exilado, quem me dedurou foi Sérgio Bittencourt, filho do Jacob do Bandolim, olha que incrível; quando eu voltei em 73 ficamos amigos novamente, ele falava: “Ah, você me desculpe aquela coisa que eu disse...” .Ele dizia assim: “Trotskista perigoso ameaça agora pelo som também”.  Enfim, eu fiquei nos Estados Unidos, aí encontrei Caetano no exílio em 71, época na qual eu fiz o filme O Demiurgo. Eu tenho ainda cinco mil páginas inéditas, quatro peças de teatro, muitos romances nos meus baús, eu tenho muita coisa escrita ainda. Discos eu tenho sete long play, que a Warner está agora relançando.
(Mautner canta “Relâmpago Dourado”.)

                         - Programa Couvert Artístico, Rádio JB FM, 1997
                                                  (Trecho)

/.../
E: Quem foi pra você o grande incentivador da sua carreira?
J: Lá na pré-história minha foi o meu pai. Depois do meu exílio, depois da volta em 72, sem dúvida alguma, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
E: Estilhaços de Paixão é o nome do seu mais recente cd. Eu queria que você falasse um pouco sobre ele prà gente.
J: Esse disco foi todo arranjado pelo Nelson Jacobina. “Estilhaços de Paixão”[284] foi composto em 1958, é um bolero fora do tempo e do espaço. É um disco romântico, expressionista, e tem as gravações de dois grandes sucessos meus que eu nunca havia gravado antes, “O Viajante”, que foi sucesso na voz do Raimundo Fagner, e “Orquídea Negra”, antes gravada por Zé Ramalho.
E: E por que “estilhaços de paixão”?
J: Porque a minha alma é estilhaçada...
(Mautner canta “Louca Paixão”.)
E: Há quanto tempo você e o Nelson se conhecem?
J: Nós nos conhecemos e tocamos juntos a partir de 1972, no disco “pirata” que não era pirata, era da Polygram, e a partir desse disco temos trabalhado juntos.
E: Além do Nelson, quem mais participou da elaboração desse cd?
J: O Nelson foi o arranjador, o maestro, na percussão Marcos Ama, bateria Silvinho Costa, contrabaixo Ricardo Feijão, e nos teclados Mário Jansen. Teve também a colaboração na voz, o backing vocal da Diana Dasha e também do Rubinho Rocha Pires Jacobina que é o irmão do Nelson, no cavaquinho[285].
E: E a capa deste cd? É uma capa muito bonita. De quem é o projeto gráfico? A ideia é sua?
J:  Não. É uma capa muito caprichada. A ideia foi inclusive dos que fizeram o meu único clip que eu tenho até agora, “O Vampiro”, Fernando Laszlo, fotógrafo e o diretor, eles são discípulos do grande Bob Wolffson de São Paulo. Esse vermelho da capa são pétalas de rosa mesmo[286].
(Mautner canta “O Viajante”.)
E: Jorge, você participou de alguns videoclips, você também dirigiu e atuou no filme O Demiurgo, que contou com a participação do Gil e do Caetano, entre outros. Você tem planos de voltar a atuar nessa área de cinema?
J: Talvez o ano que vem ou o outro, essa atividade de todas as artes reunidas está cada vez mais em moda, chama-se multimídia. Talvez o ano que vem eu pretendesse transformar em filme uma peça inédita minha chamada Brisa da Duçura e o Ser da Tempestade.
E: Chico Science fez questão de subir no palco em sua companhia durante o show de premiação dos melhores clips do ano da MTV. Na sua opinião, qual a mensagem que esse talentoso artista, criador do Mangue Beat, deixou prà história da MPB?
J: Eu acho que ele é um inovador e ao mesmo tempo com ele vem toda a memória da nação, que a descentralização do tropica, que é ao mesmo tempo o nosso passado mais remoto, que tá simbolizado pela Serra da Capivara, lá no Piauí, onde descobriram que o ser humano autóctone nasceu aqui nas Américas, e o futuro total que é o “Maracatu Atômico”, cheio de amor, e o Brasil novo, o Brasil universal que vem aí.
(Mautner canta “Olhar Bestial” e “Orquídea Negra”, esta com a introdução falada:Oh Satã Satã/Tu que és o rei dos anjos/Tenha piedade de nossa longa longa miséria/Atenção artilheiro/Quatro salvas de tiros de canhão/Em homenagem aos mortos/Da Ilha da Solidão/Mortos mas para sempre vivos/Em nosso coração/Atenção artilheiro/Apontar/Mirar/Disparar/Fogo!)
E: Você é bastante querido por artistas que variam de Gil, Zé Ramalho até Lulu Santos, o Rapa e Kid Abelha. Até o publicitário Washington Olivetto colocou uma canção sua em parceria com Robertinho do Recife num anúncio de televisão. Você se acha um artista eclético?
J: Eu, sem dúvida alguma , eu sou eclético. E tenho muitos amigos, graças a Deus.
E: Dos novos artistas, quem vem surgindo no mercado, quem mais te chamaria a atenção?
J: Olha, é tanta gente: Paulinho Moska, a turma do Karnac, o Abujamra, Corda Bamba, grupos de rock novos, mesmo aqueles com os quais eu fiz o clip com o Gardenberg em que eu estou de policial lá, é muita gente, o que eu gostaria de dizer é que a época é melhor que nunca, e eu tenho uma música que o Lulu Santos gravou, “Pipoca à Meia-noite”, que foi gravado no Anticiclone Tropical, e que vai virar um anúncio no ano que vem. Eu adoro porque eu não tenho nenhum preconceito, eu adoro que as minhas músicas façam sucesso, adoro jingles, e viva o mercado, a liberdade, o capitalismo e o capitalismo.
E: Você já pensou em investir nessa área?
J: Em jingles não especificamente, mas se uma já escolheram como jingle, e escolheram uma outra já, eu começo a pensar seriamente em fazer diretamente jingles.
(Risos. Mautner canta “Pipoca à Meia-noite” e “Samba dos Animais.)
E: Muito obrigado, muito sucesso pro trabalho de vocês, as portas da JB estão sempre abertas quando vocês quiserem vir aqui.
J: Eu só quero dizer que, quando eu estreiei, em 1962, o Jornal do Brasil publicou uma página inteira sobre mim e me entrevistou, e lá se vão muitos anos, e que Oxalá continue assim. Obrigado.

             Jornal do Brasil, 7 de janeiro de 1990, Caderno Ideias, seção “O que eles estão pensando”. Pergunta: A televisão é herói ou vilão na novela do Brasil?

Jorge Mautner - Compositor e filósofo: Vilão. A televisão brasileira é dominada por um monopólio que é o órgão supremo através do qual se comanda os destinos do Brasil. Este império eletrônico absoluto, apartheidiano, nascido do golpe de 64 pelas mãos da Time Life Corporation, é responsável pela destruição da cultura brasileira e pela imbecilização programada da sociedade.

             - Entrevista realizada pelo autor em 3 de abril de 1989, às 9:00 horas da manhã, na casa de Jorge Mautner, no Humaitá, Rio de Janeiro.

Luís: Como você se tornou escritor?
Mautner: Deus da Chuva e da Morte foi o meu primeiro livro, escrito entre 1958 e 1960,e publicado em 1962. Ele tem tudo. É um livro de mais de quinhentas páginas, porque nele eu falo tudo o que eu faço agora. Eu costumo brincar dizendo que eu escrevi o livro e aí eu fui fazendo tudo que eu escrevi no livro. Um livro escrito ao dezessete anos1
L: Você teve a iluminação.
M: É verdade. Aliás, a música “Iluminação” é dessa época.
L: Dessa época? Dezessete anos?!
M: Dessa época. “O Vampiro”, “A Bandeira do Meu Partido” também. A data de partida é 1958.
L: Você nasceu no Rio de Janeiro e foi pequeno pra São Paulo?
M: É, aos 7 anos.
L: E foi criado na cidade?
M: Eu ficava na cidade, mas em São Paulo eles tinham - coisa que eu mostrei muito no Deus da Chuva e da Morte - muita fazenda, muito sítio. Há o Sítio de Atibaia, que o meu tio por parte de padrasto, o tenor Liberato de Macedo, tinha lá. Eu ia sempre pra Atibaia, ficava muito tempo em Atibaia, em Avaé, que era outra fazenda de café dele, e Guarujá, que na época só tinha um prédio, e neste prédio meu tio tinha um apartamento.
L: E aquela coisa de candomblé a que uma babá te levava?
M: Foi aqui no Rio, na Cândido Mendes. Eu nasci no Rio em 1941, e fui educado nas mãos dessa babá do um aos sete anos, quando fui pra São Paulo.
L: E qual a influência de seu pai?
M: Meu pai era um montão de coisas. Ele era físico, matemático, filósofo. Ele vivia recitando Göthe para mim. Eu nasci, ele recitando Fausto de Göthe. Ele trabalhava como caixeiro viajante e viajava o Brasil todo.
L: E o contato com Mário Schemberg, como foi?
M: Quem primeiro me descobriu foi a turma do Vicente Ferreira da Silva, que era um filósofo brasileiro, inclusive ligado à direita, ele era amigo do Miguel Reale, que tinha inventado o integralismo, eles tinham sido nazistas - mas eram os únicos leitores de Heidegger, enquanto que a esquerda era stalinista, totalmente. Estranhamente, quem foi o primeiro a acolher a literatura de um quase refugiado de guerra - eu nasci aqui quase que por acaso, eu sou filho de refugiados de guerra, da Viena judaica - foram esses nazistas. Eles que sabiam Heidegger, Jung, eles não eram obliterados, eles falavam do inconsciente, enfim. E a esquerda logo após a guerra era muito stalinista, muito tremendamente stalinista. Gostavam da ideia, mas eu era mais ou menos podado. Foi aí que o Paulo Bonfim, poeta, me descobriu, e quem me levou pro Paulo Bonfim foi o João Quartim de Morais, que depois foi ser um grande guerrilheiro, e que agora é professor de filosofia grega em Campinas. Eu, o João Quartim de Morais e com João Roberto Piva fundamos em São Paulo, em 1957, o movimento niilista, que era contra todos os partidos, era um movimento anarquista radical. O Paulo Bonfim gostou dos meus originais e me levou pro Vicente Ferreira da Silva, que por sua vez tinha uma revista chamada Diálogo; e no número 13 dessa revista eu saí pela primeira vez publicado, com apresentação da esposa do Vicente, a Dora Ferreira da Silva. E logo em seguida eu conheci o Mário Schemberg que me mostrou que o Partido /Comunista/ não era burro, e além de Nietzsche ele ficou lendo zen budismo e Heidegger para mim. E eu fiquei fissurado! Depois, em 1958, eu fiz o Partido do Kaos junto com o pintor Aguilar, que foi meu personagem.
Eliane: E quanto ao Movimento Figa Brasil?
M: A Figa está mais submetida a interesses políticos.
L: E a ideia da Universidade Livre?
M: Esse é o meu interesse maior. Eu queria formar essa universidade, com curso de Tai Chi Chuan e aulas o tempo todo, conferências, palestras. E leituras - que é só isso, nada mais. O resto a pessoa mesma vai e faz. Eu acho que o que o mestre tem que fazer é ensinar Tai Chi Chuan e dar os toques, leituras, e aí, quem quiser... Eu vou tentar fazer isto pela Fundação Gregório de Matos, lá na Bahia. Eu quero começar isso agora.
L: E a eleição? Você não foi eleito...
M: Não, não fui eleito não.
L: Como foi?
M: Eu era do Partido Verde, e em São Paulo o Partido Verde se aliou ao PSDB, dos tucanos... não dava! Os meus amigos todos são do Partido dos Trabalhadores, e, principalmente, eu não tinha verba nenhuma, se o Franco Montoro fosse candidato eu teria pelo menos um dinheirinho por mês pra não precisar me preocupar com o aluguel daqui, estudos da minha filha etc. Eu era o único candidato que não só não tinha dinheiro, como ainda não tinha tempo para fazer a campanha, porque eu tinha que descolar o meu dia-a-dia, então não existe candidatura assim. Mesmo assim eu tive quatro mil votos, um pouquinho mais e eu era eleito, mais três mil votos e eu seria eleito. E não teve campanha de verdade, eu fiz mais campanha para o PT do que a minha. Fiz 25 showmícios no interior do estado.
(Aqui Mautner teve que sair para pegar um avião.)

             - Entrevista gravada em vídeo realizada pelo autor em 4 de outubro de 1996, à tarde, na casa de Nelson Jacobina, em Santa Tereza, com a presença de alunos de literatura.

Aluno: Jorge, como é a sua história?
Jorge Mautner: Eu sou filho de refugiados, meu pai era judeu vienense, minha mãe também é de Viena, ela era católica. O meu pai era da resistência judaica ao nazismo. Ele veio ao Brasil como parte de uma missão que foi vitoriasa, de fazer o Brasil se colocar ao lado dos aliados, porque o Brasil estava se passando para o Eixo. Tanto que depois, no governo Dutra, ele falou três vezes na Voz do Brasil, agradecendo. Ele era uma pessoa muito engajada. O meu pai era muito culto, um filósofo, um pensador. E minha mãe católica. Eles vieram pra cá e eu nasci, em 1941.
Luís: Qual era a profissão do seu pai na Áustria?
M: Ah, a família Mautner é muito importante na Áustria. Ele tinha o carro n° 2 em Viena. Ele era banqueiro.
L: E sua mãe veio grávida de você?
M: É. Aí eu nasci aqui. A minha irmã foi educada na Inglaterra, ela veio separada, uma irmã que eu nunca vi. Pra você ver o nível social dos Mautner, a minha irmã é amiga da família real inglesa, ela era casada com o ministro do comércio da Rodésia, que era o nome do Zimbábue. Meu pai não quis mais saber da Áustria e da Alemanha, ficou triste, e jurou nunca mais voltar para lá. Minha mãe, por causa desse trauma de não poder mais ver minha irmã que foi para a Inglaterra, ficou meio paralisada, e eu fui educado simultaneamente pelo meu pai recitando Göthe, Mefistóteles etc., e me educando contra o nazismo, por minha mãe e por minha babá, que na verdade era Ialorixá - então toda a cultura negra vem dela. Quando eu era criança ela me levava nos fins de semana para o candomblé onde ela me embalava nos braços. Eu tenho o corpo fechado desde criança. O candomblé ficava ao lado da Igreja da Glória. E eu tenho uma quarta influência, do meu padrasto, os meus pais tinham se separado, e este padrasto era professor de violino e tocava no Teatro Municipal de São Paulo.
L: Você disse numa estrevista que 99 % do que você faz vem do seu pai.
M: E é verdade! Você sabe que meu pai dava até aulas de filosofia em Londres. Ele ficava comigo no Village, ele tinha oitenta anos, em 65, 66, 67. Nós ficávamos falando de filosofia, eram palestras filosóficas, o prazer era esse, ficar conversando.
A: Quem fazia parte do grupo?
M: O pessoal que ia na casa do Caetano, o Macalé, Geselda Santos, Leilah Assunção, José Roberto Aguilar, Rubens Gershman, Gal Costa, muita gente...
L: Você foi forçado a se exilar?
M: Fui forçado. Em 65 o Vigarista Jorge foi incluso na Lei de Segurança Nacional, por subversão e pornografia. Foi aí que eu tive que sair do Brasil.
L: Vamos voltar no tempo. Você foi para São Paulo com oito anos de idade, e tinha muita angústia dessa ida. Em 1958 você conseguiu integrar tudo.
M: Foi quando deu o estalo. Eu tentava imitar todos os estilos para escrever. E me deu o estalo. Inclusive, foi depois ler o sermão do Padre Antônio Vieira em que ele conta que lhe deu um estalo e ele começou a escrever. Foi igual, a mesma coisa, comigo.
L: Você considera a sua prosa barroca?
M: Não sei... Tem o barroco, tem a Cabalah, tem mil origens, né? Essa história exemplifica tudo, os surrealismos, as fenomenologias, as visões da simultaneaidade, tudo isso... E é o auge da Cabalah. É no ano de 1680, não é isso, Nelson?
Nelson: Por aí.
M: Em Gaza. Os judeus já estavam na dispersão. E, de repente, na Faixa de Gaza, surge, uma comunidade judaica, um cara chamado Shabbatah Ismin. Ele sofre crises de depressão e de euforia, fica triste e fica alegre, e ele não sabe por quê ele é assim. Então ele vai consultar o rabino - como é o nome do rabino, Nelson?
N: Natan de Gaza.
M (com um gatinho no colo): Nata de Gaza! O célebre rabino Natan de Gaza. Esse Natan de Gaza fala: - “Você não sabe por que você é assim?” - “Não, por quê?” - “É porque você é o Messias!” - “Ah! Eu sou o Messias!” E aí, não se sabe por quê, isso é um mistério para os historiadores, porque pela lei judaica, quem disser que é o Messias tem que passar pela prova do apedrejamento, só quem sobreviver ao apedrejamento é o Messias. Daí que quem se candidatasse morria. Mas acontece que nesse caso não houve teste de apedrejamento. E toda Israel no exílio acamou em delírio Shabbatah Ismin como Messias. E ele disse: - “Bom, já quie eu sou o Messias, eu vou para Istambul e vou converte o Grão Paxá ao judaísmo.” E foi. Quando desembarcou nas costas da Turquia, os muçulmanos turcos pegaram e disseram: - “Ou você se converte agora ao ismalismo ou nós te matamos aqui.” Na hora o Messias de Israel se tornou muçulmano! E eis que de repente ele estava lá no minarete: - “Alah! Alah! Alah!”. Quando a notícia bateu na comunidade israelense dispersa no mundo todo e que festejava Shabbatah como Messias, metade disse: - “Ah...” Mas a outra metade disse: - “Eis a prova de que ele é o Messias. Somente o Messias faria uma coisa tão paradoxal, tão louca, porque Deus é tão misterioso que só o Messias agiria assim. Então, a partir daí começou uma coisa incrível: a Cabalah atingiu o seu ápice na absorção de todas as culturas, numa visão caótica de pegar tudo, mesmo o que está proibido nos dez mandamentos. Os judeus se batizam católicos ou viram muçulamanos, e, no meio da noite, eles viram judeus de novo. Então é o máximo do paradoxo, do surrealismo, da fenomenologia, do simultaneísmo. Metade da vida eles são bons católicos, vão à missa, fazem tudo; mas, secretamente, são judeus. E fazem todos os dois direitinho, como se tivessem duas personalidades simultâneas, não é incrível? E os outros, que são muçulmanos, também. Isso dá uma loucura tão grande porque na verdade o cara penetra na outra cultura realmente de coração. Então faz uma simbiose louca. E as comunidades vivem em dois estilos, umas vão ser ascéticas, e as outras vão ser orgiásticas. Você tem o paradoxo total!
(Risos. Mautner foi atender ao telefone.)
L: Nelson, como você conheceu o Mautner?
N: Eu estudava no Instituto Villa Lobos, que era na Praia do Flamengo, onde tinha sido a UNE. O prédio tinha sido queimado, e embaixo funcionava o Instituto Villa Lobos, que era dirigido pelo Reginaldo de Carvalho, e em cima era o Conservatório de Teatro. No início dos anos 70 o Instituto Villa Lobos aglutinava o que se chamava de vanguarda da música.. Em 1971, o lance todo estava começando, e o Mautner foi lá fazer uma palestra muito interessante, e a gente se conheceu. Eu me lembro que teve muita polêmica, um cara revoltado com o entusiasmo do Jorge com a técnica e a ciência, já era um precursor dos ecologistas que são conservadores disfarçados. Eles ficaram chocados. Depois eu e um grupo de pessoas fomos naturalmente falar com o Jorge.
L: E você chegou a participar do primeiro lp?
N: Sem dúvida.[287]
L: E antes, qual era o seu interesse, música clássica, popular?
N: Na Escola de Música os professores eram mais de vanguarda, a gente sabia mais música dodecafônica do que música tonal, que os caras negligenciavam um pouco, e eu só fui aprender depois. Eu fazia o curso básico, não cheguei a ficar dois anos, depois a polícia foi lá, prenderam professores, teve uma intervenção, veio um general, e esvaziou aquele clima. Na época que o Jorge foi lá estava no auge. Inclusive aglutinava pessoas que estudavam lá e não eram propriamente interessadas em música, era mais por causa do clima.
L: Era uma característica dessa época.
N: Tinha uma coisa de ser tudo ao mesmo tempo.
L: E era mais comunitário.
N: É. Tinha muita gente lá que não era músico nem queria ser músico, mas gostava das aulas.
L: Acabaram com o prédio por causa disso?
N: O prédio primeiro era da UNE, aí incendiaram o prédio e acabaram com a UNE. Depois deram o prédio (meio queimado) para o pessoal do teatro, e depois entrou o Villa-Lobos. O Reginaldo de Carvalho é que deu essa característica, no início era uma escola de música no térreo, o importante era a Faculdade de Teatro. Eu lembro que quando eu entrei lá tinha um ou outro que vinha por causa de música mesmo.
A: Quantos anos você tinha em 64?
N: Eu tinha onze anos.
A: E você ouvia falar no Tropicalismo?
N: O Tropicalismo foi mais em 67; eu conhecia, gostava. Todos nós desta geração somos produtos do Tropicalismo. Eu gosto muito de Caetano e Gil, da obra deles, essa é a base do Tropicalismo. Toda a brasilidade, tudo aquilo que a Bossa Nova tinha deixado de lado. Não era um movimento estético, o Tropicalismo era um movimento estético sim mas não era formal, a Bossa Nova era um movimento formal, era um estilo, o Tropicalismo não, era mais conceitual, digamos assim, do que formal, pegando as coisas que a Bossa Nova teve que deixar de lado.
(Mautner volta e começa a chover. A entrevista está sendo feita no pátio, entre plantas, com a paisagem de Santa Tereza sendo vista do alto.)
L: Está chovendo!
M: A chuva é uma espécie de saudação.
A: É verdade que houve uma guerra contra a entrada da guitarra elétrica na MPB, com passeatas e gente queimando guitarras?
N: Isso tinha muito. (A guitarra) era uma coisa clandestina. Tinha pessoas que eram contra, diziam que era americano, mas na verdade o que eles estavam contra era o rock, o jazz, e a coisa da canção americana mais tradicional, a atitude roqueira.
L: E os festivais da época tinham a força que dizem?
N: Tinha uma importância que hoje em dia não tem similar, porque as coisas já não são mais assim.
M: Até os festivais que não eram mais de revelação, os últimos festivais, tipo Woodstock, como o de Águas Claras.
L: Existe ligação entre o seu trabalho e o Tropicalismo?
M: Eu estreiei em 1958, dez anos antes do Tropicalismo, por isso me chamam de precursor, mas nós somos paralelos. Também é assim com o Cinema Novo, a Bossa Nova, o Concretismo, o José Agrippino de Paula, que escreveu PanAmérica influenciado pela minha literatura. Eu so de um tempo em que o rádio ainda tocava todos os estilos, música italiana, americana...
N: Música italiana tocava muito!
M: Tinha programas de bolero.
N: Mesmo até quase a década de 70, música francesa e italiana em quantidade igual à americana.
L: E quando a música brasileira passou a ser importante e a tocar muito?
N: Sempre foi!
M: Até hoje. Só o samba tem um monte de batidas diferentes. Quincey Jones fala que a música de século XXI tem todas as suas matrizes no Brasil. Porque aqui se deram as misturas profundas de matrizes cruzadas. A própria língua portuguesa nasce na música dos menestréis pré-renascentistas, nasce da alta poesia, conversa de intelectuais sofisticados, altos amores, saudades, tudo em poesia cantada, e daí nasce o português. Depois junta todas as nações indígenas, todas as nações negras, mistura ainda o resto do mundo também. Então, é a mistura total, é a prova maior da resistência genética. O contrário da raça pura é a raça da mistura.
L: Essa variedade musical só tem no Brasil.
M: É. Cocos, você tem milhões de cocos. Galope... Meu Deus! Dentro de cada ritmo há milhões de variações! Jongo, maxixe, cateretê...
N: E mesmo na música comercial pop.
L: O próprio rock brasileiro é diferente.
M: Nós temos toda a salsa e merengue, Jackson do Pandeiro no Rio, a influência do Caribe no Amazonas, o Pinduca...
L: Você tem resquícios da invasão árabe na Península Ibérica na música do nordeste.
N: É muito presente. Da Índia também.
(Mautner faz um canto nordestino para demonstrar.)
L: E uma coisa que eu acho interessante é que no trabalho de vocês está presente esta riqueza. Porque normalmente um cantor ou compositor brasileiro reflete um desses aspectos, e vocês refletem todos. É incrível! Como foi a experiência em festival? Vocês participaram em 74 do Abertura com “Bem-te-viu”.
N: Foi interessante. Tinha o maestro Júlio Medaglia.
M: Essa música ficou bem conhecida na época.
N: E depois você participou com o Robertinho do Recife de um outro festival com “O Encantador de Serpentes”.
L: E esses festivais refletem os anteriores ou tinha havido uma profunda mudança?
N: Aí já não era o que era na década de 60.
M: Foi a última vez, ou a penúltima.
N: O Abertura revelou o Djavan, de certa forma.
L: O Luiz Melodia também, com “Ébano”.
N: É, tinha o Melodia também.
L: É interessante que a sua música é intempestiva, ela não está marcada como sendo de uma época.
M: O maior exemplo disso é o “Maracatu Atômico” gravado pelo Chico Science quatro vezes.
(Aí foram citadas gravações feitas por outros cantores.)
M: A primeira pessoa a gravar uma música minha (depois do meu compacto de estreia) foi o Gilberto Gil no lp em inglês, nossas parcerias: “Babylon”, “Three Mushrooms” e “Crazy Pop Rock”.
L: O que você fazia nos EUA?
M: Eu trabalhei nas Nações Unidas, na UNESCO, fui lavar pratos em restaurante, fui massagista (eu faço Tai Chi e Shao Lin), depois eu fui secretário literário do poeta Robert Lowello.
L: Engraçado, porque é difícil pegar o espírito de uma língua estrangeira para fazer poesia.
M: Tanto que a revista “Rolling Stone” acbava que as letras que eu fiz para o Gil eram de um poeta americano ou do Canadá. Bem, e nos EUA eu fui amigo do Paul Goodman, que é o grande filósofo do anarquismo pacifista. Ele é o pai do “politicamente correto” e dos valores pacifistas da esquerda. O anarquismo se divide em Bakunin, que é a linha da bomba, e Kropotikin, que acha que as modificações são através da cultura e das manifestações pacíficas, o máximo de desobediência civil, mas em manifestações pacíficas e culturais. Na época os anarquistas tinham abandonado essa visão e adotavam uma solução mais de guerrilha, luta armada, e Paul Goodman dizia: - “Quem agora me segue são os técnicos da NASA, os cientistas”.
L: E dos EUA você foi para Londres?
M: Eu ficava viajando. E em Londres, através de um amigo comum, que é o Artur de Melo Guimarães (ele foi quem fez o espetáculo “Rosa de Ouro” que lançou Paulinho da Viola e Clementina de Jesus), na casa dele estavam hospedados Caetano e Gil, e ele nos apresentou, eles queriam me conhecer.Caetano já conhecia Deus da Chuva e da Morte e as músicas que ele ouvira da Rita Lee, porque eu fui o primeiro a lançar Os Mutantes num show em 1965 num lugar chamado Urso Branco, ao qual pouca gente foi, produção do Muracy Durval. E os Mutantes mostraram minhas músicas para o Caetano. Eu os conheci em Londres e essa amizade continua até hoje, em nome do desvelamento do ser do Brasil.
L: Você fez o Movimento do Kaos no exílio também?
M: O Movimento do Kaos, onde quer que o Messias ande lá ele estará! A minha vida sempre foi isso. Mesmo nos momentos particulares, eu sou o Kaos. Eu comecei o Kaos aos doze anos, mas comecei a organizar o partido aos dezessete, em 1958, e as primeiras ações estão descritas no volume Kaos. Em 1962, 1963, o partido cresceu tanto que, só na faculdade de direito, o nosso partido tinha mais de 2000 filiados, sob o comando de um tal de Paulo Azevedo dos Santos. Era no auge da guerra fria.
A: Jacobina, qual foi a sua experiência com o chá de cogumelo e com a coisa psicodélica?
N (ri): O chá de cogumelo eu só tomei uma vez. Eu experimentei o ácido, na época. Eu nem tomei tantos, tomei alguns. Foi muito impressionante. É uma coisa que muda você, é um marco pra sempre.
L: Você acha que a arte pop foi muito influenciada pela experiência psicotrópica?
N: Claro, sem dúvida. Aquela coisa de liberar o inconsciente, a quebra do superego, o desmascaramento da sociedade. E as drogas nesse sentido levavam para isso. Depois houve outras correntes, orientais etc. Mas tudo fazia parte dessa tentativa.
L: A pessoa experimentava de tudo, né?
N: Na busca do que se chamava na época de expansão da consciência, outros estágios de consciência.
L: Você tem algum dissabor? Você acha que houve uma expansão nas décadas de 60 e 70 e um retrocesso depois?
N: Em alguns aspectos, sim. Mas eu acho que são reações. É aquela coisa do yin e do yang. Depois houve uma reação contra tudo aquilo. Sem dúvida que as últimas décadas foram a tentativa de uma outra postura, mais careta. Mas mesmo assim, muitas coisas mudaram muito, os comportamentos, nem se compara. Mesmo naquela época era uma minoria, havia uma repressão bem maior, em todos os sentidos. Justamente por isso que tinha essas coisas. Hoje em dia o problema da aids trouxe uma espécie de freio moralista para a chamada revolução sexual. Mas mesmo assim nunca voltou ao que era antes, aquela rigidez social. Os tabus sexuais eram muito mais fortes.
L: Parece que naquela época havia a expectativa de uma mudança radical, um ultrapassamento, a chegada da Era de Aquárius.
N: Mas é assim, sempre tem as projeções.
L: Mas você acha que isso é possível e vai acontecer?
N: Não sei, essa busca de um absoluto, de um paraíso. Ao mesmo tempo não ser não quer dizer que isso seja ruim. Hoje em dia há uma volta aos anos 60. A postura careta yuppie está pedindo uma outra oicsa. O fato é que nunca voltou totalmente, foi um meio caminho, reações, e agora tem uma reação contra as reações. E, é claro, o moralismo cresce. Os fundamentalismos, desse tipo, contra. Você vê os crentes, os fundamentalistas islâmicos, na verdade são posturas contra isso.
L: E os adoradores do capital.
N: Tem um lado opressivo, a “nova ordem mundial”, mas ao mesmo tempo tem o ocidente...
L: Como você vê a situação política do Brasil hoje?
N: A situação do Brasil é muito crítica, é um país muito difícil, estruturas arcaicas de escravidão que estão entranhadas e são difíceis de mudar. Mas ao mesmo tempo eu vejo com otimismo, eu acho que está mudando para melhor, politicamente. O Fernando Henrique (Cardoso) é o melhor presidente que a gente já teve.
L: Como é a vida de músico no Brasil?
N: É difícil.
L: Uma vez eu ouvi o Mautner dizer que músico brasileiro ganha bem.
N: Eu não acho que ganhe bem. Depende de onde. Tem uma tabela da Ordem dos Músicos, que é razoável, mas não quer dizer que todos ganhem o que está na tabela. A maioria não ganha, e mesmo quem ganha não ganha sempre, ou é autônomo, e não tem trabalho sempre. Isso também depende muito da época. Agora a gente está numa fase mais recessiva. Os maiores sucessos sempre são brasileiros, mas a gente consome também muito lixo internacional, e muita coisa boa. Mas a música nacional toca. As rádios talvez não toqeum outros estilos de música, talvez não tenham abertura, tem poucas rádios que tocam outro estilo que não o comercial padrão, que tem coisas ótimas, tem coisas boas e tem coisas ruins. Mas não sai daquele esquema industrial da gravadora. Tem pouco mercado para coisas fora disso.
A: Como foi gravar o clip de “O Vampiro” depois de vinte anos de ter feito a música?
M: A música é de 58 e foi gravada em 88[288].
A: E por que o clip só agora?
N: Foi ideia dos meninos que fizeram o vídeo. E a gente gostou.
A: E vocês vão fazer outros clips?
N: Estamos pretendendo, com esse disco novo.
A: Depois do Tropicalismo houve mais abertura no rádio e na televisão?
N: Houve uma abertura dos estilos.Antes tinha a coisa compartimentada. O Tropicalismo, inspirado na antropofagia, mistura tudo, o popular com a cultura de massa, traz outra visão do Brasil que não a visão europeia. O Tropicalismo veio mostrar que o verdadeiro Brasil não era aquele que se pensava. E junto com isso veio a vanguarda internacional e brasileira também, a poesia concreta, a música de Rogério Duprat, que participava das músicas tropicalistas. O Caetano diz que a estética do Tropicalismo é Carmen Miranda, está tudo ali, e Jorge Ben. Havia a poesia de Torquato Neto e Capinam, nas artes plásticas o Hélio Oiticica, o cinema novíssimo de Rogério Sgarnzella e Júlio Bressane, que fugiu do cinema novo, mais baseado no cinema europeu. Eles gostavam de cultura de massa, que os outros diziam que não gostavam.
A: Antes do Tropicalismo havia dificuldade para a música experimental tocar?
M: Ah, sim. Mas já a Bossa Nova tinha essa música estranha. Eu faço tanto música estranha quanto música simples. Agora o principal que houve foi a modificação da moral. Entre as décadas de 50 e 60 aconteceu a revolução ética quanto aos costumes sexuais. Era muito careta, muito moralista, as pessoas não podiam nem namorar, você tinha uma noiva e você não podia beijar na boca. As pessoas enlouqueciam de repressão secual. Não os homossexuais, os pervertidos, não, as pessoas comuns, casais eternos, noivos. Tem até filmes sobre isso. Era um ambiente pesadíssimo.
L: E o Partido do Kaos?
M: O Partido do Kaos pegou muito forte, mas como era anarquista, começou a tocar em questões que naquela época deixavam os stalinistas chocados, tanto os que eram de esquerda quanto os de direita. E começou a entrar muita gente. E aí eu esvaziei o Partido do Kaos porque entrei no Partido Comunista, pelas mãos do Professor Mário Schemberg (aliás, tem uma Ala Mário Schemberg e uma Ala Jorge Mautner na FUNARTE de São Paulo), então eu entrei nessa época no Partido Comunista, entramos eu e o Aguilar em 1962 (ele só quis as lideranças do Partido do Kaos). E o Kaos continua existindo sempre, até hoje, em pregações de clubes filosóficos, que é a forma mais profunda e mais bonita, que é a cultura e o pacifismo, que fazem a transformação das coisas.

                         - Entrevista com Jorge Mautner (Publicada originalmente in Tecnogaia Revista independente de cultura, pesquisa e saber, Rio de Janeiro, 2006)

Parte 1

2 de julho de 2005, das 15 às 18 horas
Na casa de JM, no Leblon, e depois na casa de Nelson Jacobina, em Santa Teresa. Participaram da entrevista Nelson Jacobina, parceiro de Jorge, Cid Prado Valle, Luís Carlos de Morais Junior e Cláudio Carvalho, repórteres da Revista tecnoGaia, e Dandara, cineasta e escritora, que se juntou ao grupo em Santa Teresa.
Jorge Mautner nos recebeu com muita simpatia e bom humor, respondeu a todas as nossas perguntas e ainda contou sobre seus novos projetos na música, cinema, tv e literatura, como o programa Cantos Gerais no Canal Brasil e o livro de entrevistas com Gilberto Gil, bem como seu livro autobiográfico. Neste, relata seu encontro com Getúlio Vargas, quando ele, menino de quatro anos de idade, era todo dia levado a brincar nos jardins do palácio do Catete por sua babá Lúcia, que também era mãe de santo num terreiro na Glória. Um dia um negro alto e bem vestido com terno branco pede a bênção da sua babá, é Gregório Fortunato, que falou que ia apresentar o menino ao presidente. E isso de fato aconteceu. Getúlio perguntou ao menino se sabia quem ele era. Jorge se perfilou, bateu continência e falou: “Presidente do Brasil!”. Getúlio lhe perguntou a sua nacionalidade, e Jorge lhe respondeu: “Brasileiro, graças a Deus!”, e a nacionalidade de seus pais, ao que o menino lhe informou: “São estrangeiros, coitados.”
Cid Valle: A proposta da Revista tecnoGaia é fazer uma fusão de linguagens. Nós somos pessoas que vieram a encontrar uma válvula de escape para suas expressões artísticas, por meio da academia, não somos pessoas da academia, não somos pessoas da academia, mas o caminho foi a academia. Então nós acabamos fazendo uma revista que busca a linguagem acadêmica, mas ao mesmo tempo busca destruir essa linguagem acadêmica.
Jorge Mautner: Eu quero parabenizar. Essa é uma ideia que mais uma vez explode uma fronteira, que separa a cultura acadêmica da cultura não-acadêmica. A gente não tem mais - o poeta mais modernista precisa ser antiacadêmico - uma relação do crime, e do pensamento do crime, pelos românticos, onde talvez fosse necessário ser transgressor, porque hipocrisia existia, Croce e Nietzsche, e todo mundo, e de hoje em dia em que não há mais essa hipocrisia, há democracia, dois em dois anos votação. Então o namoro com o crime não se justifica, é complicado. (Risos)
Luís Carlos: Desculpa Jorge, só uma coisinha. Aí você acha condenável, ou pelo menos tolo, fazer um livro chamado Larápio na atual conjuntura.
JM: Não, não, ao contrário, aí tudo fica mais claro, o larápio é bem claramente larápio.
CV: O modernismo estabelece uma relação de deslumbramento com a tecnologia, que aparecia como regeneradora da humanidade e da Terra. O nome da nossa revista é tecnoGaia, então a gente fala Terra Gaia. Já o pós-modernismo, após as tragédias do século tecnológico, que Eric Hobsbaum chama de era dos extremos, com seus milhares de mortos, vítimas dos avanços técnicos, demonstrados nas grandes guerras, culminando em Hiroshima e Nagasaki, passam a ter uma relação de descrença no futuro da humanidade, e da Terra, Gaia. Como se insere nesse dilema o seu conceito de Kaos com k, presença constante em sua obra?
JM: Eu acho que de novo é a amálgama, ou a simultaneidade. É aquele livro do Heidegger sobre o Parmênides, que dizia que tudo era parado, e Heráclito, que diz que tudo se movimenta, ambos dizem a mesma coisa. Então, um trilho meu é ecologia. Admiro as plantas, os animais, tudo, através do taoísmo, do tai chi. Mas ao mesmo tempo o outro trilho é futurista. Por exemplo: minha obra é acintosamente futurista, sempre fui a favor de qualquer e toda experiência científica. Sem limites, sem fronteiras. Ainda mais agora, que nós estamos na alvorada da maior reviravolta da história humana, através do mapeamento do genoma, da nanotecnologia e dos auto-replicantes, que vão dar energia infinita. Vamos reconstruir o ser humano, um ser sem doenças, com longevidade, um tempo de vida indeterminado. É Jean Paul Sartre, a conquista da morte e a conquista das estrelas. Nós vamos iniciar esse patamar agora, nos próximos trinta anos. Minha obra sempre foi muito isso, misturada um pouco com science fiction. Mas eu acho que todas as visões da science fiction são pessimistas, porque elas são baseadas, é claro, na realidade de hoje com projeções apenas. Mas será o admirável mundo novo. Um novo sistema nervoso, sobre o qual eu falo sempre, é isso aí.
Cláudio Carvalho: Você tocou no admirável mundo novo, e isso me dá oportunidade de falar, o Admirável Mundo Novo de Huxley é insuportável.
JM: Mas você sabe que ele escreveu o Admirável Mundo Novo revisitado, no qual ele aprova tudo...
CC: 1984, também...
Nelson Jacobina: A ficção científica sempre está falando do momento presente.
JM: Do momento presente. Eu falei isso agora.
NJ: Tanto a ficção científica quando o romance histórico.
JM: O passado também fala do presente. Quem fala do futuro fala do presente. Na verdade tudo é o mesmo pensamento. Mas mesmo o presente eu acho maravilhoso. Mesmo esse passado terrível do século passado, o bolchevismo, o fascismo, o nazismo, foi excitante, porque venceu o lado correto, e nós tivemos invenções, como a divisão do átomo. E Hiroshima e Nagasaki, não foi um crime perpetrado. Foi um momento da Segunda Guerra Mundial, os japoneses não iam se entregar, os fuzileiros americanos iam morrer, milhões de pessoas, não jogaram a bomba em cima de Tóquio nem Kioto, houve rendição imediata e o Japão passou a ter alinhamento automático. Você sabe que o General Douglas McCarthur quando chegou, havia uma recomendação do exército pra ele tomar cuidado, em primeiro lugar, eles tinham jogado dois artefatos, e a reação dos japoneses era imprevisível, que ele se preparasse para qualquer demonstração. Às cinco da manhã ele é acordado por um ordenança, diz: “que que foi, que que foi, eles tão atacando a gente?”, ele falou: “Não, eles estão querendo entrar no nosso exército. As filas dobram os quarteirões, e há vários ex-kamikases na fila”. (Risos)
CV: Inclusive o próprio McCarthur trabalha na elaboração da constituição japonesa.
JM: Isso, exatamente, ele até contrabalança, os jornalistas dizem: “mas essa constituição é muito à esquerda”, ele diz: “mas se for muito à direita, é desmoralizada”.
CC: Como é que você se situa diante do tropicalismo? Como é que você se situa diante, portanto, do modernismo e das vanguardas? A minha pergunta vai no seguinte sentido: as vanguardas lá na virada do século XIX pro século XX, não tiveram um excessivo viés cientificista, na medida em que precisavam de um projeto teórico pra fazer arte? Será se isso não era uma espécie de submissão ao discurso científico da época, que o artista precisa de um projeto pra despertar artisticamente, ou precisa pertencer a um rebanho, um determinado grupo, pra sustentar a sua arte?
JM: Nesse caso, eu sou totalmente o oposto. Sou o vulcão do romantismo aqui, sem dúvida, o coração, o instinto, o irracional, a intuição. Eu acho por exemplo que Augusto dos Anjos era mais sério cientificamente do que a vanguarda. Eu acho que essa mania, essa submissão é errada, mas lembre-se bem, naquela época, todo mundo queria ser científico, o Freud era científico, o espiritismo era científico, tudo era científico, o comunismo era científico. O que não fosse científico não tinha graça. Eu acho que a exceção era o fascismo.
NJ: Mas...
JM: Mas também tinha um viés. O futurismo, Marinetti.
NJ: Todos os sistemas achavam que, o que dava credibilidade a um sistema, era ser científico. Como também hoje em dia o chamado liberalismo.
JM: Agora, nesses próximos trinta anos, com o mapeamento do genoma, a nanotecnologia e os auto-replicantes, vai ser uma loucura. Agora essa mania científica passou pros concretos, também. Eu me lembro do Augusto de Campos lendo pro Haroldo de Campos embevecido uma bula de farmácia: “Olha! Nitrocitrolito...” (Risos)
LC: E quando você coloca a definição dos elétrons, da eletricidade e da eletrônica no seu poema?
CC: Mas aí ele tá desconstruindo.
JM: É! É! É! Mas eles tão domesticados à visão do... chimpanzé enlouquecido! (Gargalhadas.) O dominante é o chimpanzé!
LC: Mas tem a ciência nos textos do Mautner.
JM: Tem, eu já tive muitos leitores científicos. Eu tive muito vis-à-vis. Meu pai que ensinou o quanta, a relatividade, eu tô escrevendo O filho do holocausto, minhas memórias, o tempo todo nós falávamos sobre isso, depois o Mário Schenberg.
LC: Na crítica que ele faz a você ele fala no misticismo oriental.
JM: Inclusive, quando ele me encontrou, eu havia criado o partido do Kaos, eu com o Aguilar, seis meses, foi uma loucura em São Paulo, a gente usou uma garagem com a bandeira, tinha saído Deus da chuva e da morte, que tinha mais de 3000 partidários, em poucas semanas. Na Faculdade de Direito, inclusive, ganhamos a eleição, porque tinha os conservadores clássicos a e a esquerda, de repente surgiu um movimento que não era nem uma nem outra coisa, e aquilo, e o sucesso do meu primeiro livro, em 62, que ganhou o prêmio Jaboti. Aí o Mário Schenberg foi pessoalmente lá na sede do partido do Kaos, onde eu estava naquela tarde com o Aguilar, ele falou assim: “Não, esse negócio de Nietzsche, Dostoievski, tudo muito bom, esse irracionalismo, mas nós aqui, por exemplo, eu acabo de vir da China, falei com Mao Tse Tung, e olha esses livros aqui.” Eu não conhecia o taoísmo e ainda não fazia tai chi, em 1958. E ele então me mostrou o zen budismo e o budismo e o próprio taoísmo como superiores como superiores à literatura ocidental. Mas o mais importante é que ele disse assim: “Só interessam pro partido vocês dois, o resto...” (Risos) Foi um modo de esvaziar também aquela loucura.
LC: Mas você falou que na atualidade essas questões que levaram à marginalização dos artistas do romantismo já não são tão prementes, porque há uma democratização maior. Mas muita gente hoje se coloca, muito filho de classe média vai buscar o morro, ou então, o Paulo Coelho fala no Zahir que há uma tribo que faz piercing pra marcar que eles são os rebeldes, não são como os hippies que foram padronizados. Você não percebe que existe uma insatisfação mesmo com a aparente liberação?
JM: Um momentinho. Insatisfação faz parte da satisfação. O sentir-se na estranheza e ser estranho eu acho que é o início de qualquer nível de consciência. Nossa estranheza. O que nós estamos fazendo aqui, falando aqui? Isso é estranhíssimo. A minha gatinha é estranha, essa planta, essa folha, é a coisa mais estranha do mundo. Essa pêra. É tudo muito estranho, gente! Essa capacidade de (perceber) essa diferença e essa estranheza o tempo todo é que vai marcar o artista, o pensador, e também todo mundo, hoje em dia está tudo massificado, democratizado, né? O big brother é um exemplo disso.
LC: Mas essa massificação causa uma angústia.
JM: Tudo! A angústia é inerente ao ser humano. Eu digo mais. Eu tenho até um verso que eu fiz pro Afroreggae que começa com o paciente Gregorius Malta que chega pro Doutor Drácula e diz assim: “Mas, doutor, o meu problema é o seguinte, eu gosto de viver na melancolia dos poetas românticos”. E pra eles a angústia era a condição sine qua non pra você existir, quando mais angustiado melhor. Se não tivesse nenhuma angústia você era um ser plástico, um bobo, uma coisa assim, um alienado.
CC: Esse é um tema muito importante, muito interessante pra gente, que é a coisa da...
JM: E eles chamam de depressão.
LC: Mas aí entra até na questão patológica, tem gente que faz loucuras.
JM: Entra. Mas tem gente que diz assim: ah, você tem razão, essa angústia é criativa, mas se petrificar, aí já é depressão. Mas peraí. Eu conheço meu grande mestre, Nicolai Gogol, que queimou a última parte de Almas mortas de Tchekov, que era o demônio comprando almas pela Rússia disfarçado de agente de seguros, e ele arrependido queimou o original da segunda parte, petrificado perante um monge na Itália, e jejuou até a morte. Então, era um acesso de melancolia profunda, de petrificação. Claro, hoje em dia eu acho certo tomar antidepressivo, mas esta é uma questão muito importante. O quanto essa insatisfação...
CC: E o quanto a gente, culturalmente... Você tem alguma ligação com, por exemplo, década de 70, poder jovem, “Alegria, alegria”, e o quanto nós vivemos uma cultura que hegemonicamente nega essa angústia criativa e qualquer tipo de angústia, e onde a alegria é quase que exibida publicamente.
JM: É, ela é mecanizada e é eufórica, como distrói. Sabe o que eu acho? Interessante. Imagina só. Primeira Guerra Mundial, República de Weimar, a loucura, no meio da República Social Democrática, dois loucos, (?) e Rosa de Luxemburgo, decidem dar o golpe militar bolchevique, contra as ordens do próprio Partido Comunista, eles é que vão provocar a subida de Hitler. Pois vem a Segunda Guerra Mundial, e aí então o inferno foi construído, segundo Hanna Arendt, nos campos de concentração, ele não tinha existido em nenhum outro lugar. Aí todo mundo vem com uma consciência de vida total. Mas o que se canta é a dor. Lembra Hölderlin, que dizia: “Na alegria não consigo expressar a alegria, só aqui na mais profunda tristeza, é que eu consigo cantá-la”. Então todo mundo, até Dolores Duran, que dizem que lia Albert Camus, ela adorava Albert Camus, as letras eram profundas, tinha aquela coisa, porque tinha a ver com a guerra, com a dor da guerra, eu acho. Depois explode a Guerra da Coreia, e todo o tropicalismo vai se desenrolar durante a Guerra do Vietnã, também. E também do quê? Da ditadura militar. Então tem antagonismos sociais muito claramente colocados motivando a... E hoje não tem mais. Tem o terrorismo internacional.
LC: Mas os tropicalistas tinham uma base filosófica, o Caetano está citando Sartre na “Alegria, alegria”. Tem uma inspiração marxista e existencialista. Mas o que foi feito depois com isso, como a questão do axé...
CC: Eu voltei de Salvador em setembro, completamente fora da época do carnaval, e andei passando ali pelo Pelourinho. Parece uma disneylândia africopercursiva para turista. É uma coisa folclorizada adaptada ao mercado. Não tem espontaneidade nenhuma. Aí eu fico me perguntando assim: até que ponto a Bahia da axé music é uma construção discursiva daquele momento, década de 70, 80, é um fruto daquilo.
NJ: É um pouco também. Na verdade é um fruto de toda uma cultura baiana. Só que agora adaptada ao mundo, globalizada.
JM: Massificada.
NJ: Mas muito daquilo é isso, é aquilo virando pop.
LC: Mas aquilo é espontâneo.
NJ: Que é espontâneo, sem dúvida, como nada é espontâneo. (Risos.) Surgiu espontaneamente. Mas claro, tem uma produção, um mercado. Como o trio elétrico, que na década de 70 era uma coisa de resistência. Todos os carnavais do Brasil tavam imitando o carnaval carioca. Eu me lembro que em 71 teve desfile de escola de samba em Salvador, patrocinado pela prefeitura, lá por aqueles órgãos. E começou com Caetano fazendo “Atrás do trio elétrico”, o bloco afro tinha ainda um, que era Os Filhos de Gandhi, que o Gil fez a música, depois Moraes Moreira, e a partir daí houve um movimento pró trio elétrico, pró carnaval baiano, que hoje em dia virou tudo isso. Claro também que foi uma iniciativa de artistas que tinham liderança pra salvar, porque se fosse deixar, vamos supor, o acontecimento normal, seria também uma globalização que seria imitar o carnaval carioca que era o modelo que todos estavam seguindo. Foi aí que se descobriu o carnaval da Bahia, de Pernambuco.
JM: Você tem toda a razão, mas veja bem o que aconteceu. Essas guerras, o fim da Segunda Guerra, a Guerra da Coreia, a Guerra do Vietnã, vem o governo militar, e nós éramos todos a cabeça feita, ou pelo mundo comunista, que investia, ou era o mundo capitalista, que também investia, investia com social-democracia, Hebert Marcuse, tudo também de esquerda, e os neutros! Então todo mundo tinha que ter uma postura política. Você pega assim o mais desavisado cantor ou interprete da música popular de rádio, eles tinham posturas políticas, o Jorge Veiga, o Blecaute... (Risos) É impressionante. Era uma condição sine qua non. Por exemplo, na época do governo militar... todas as músicas eram politizadas durante o Jango, durante todo o período, o tempo todo, era tudo muito, o Partido Comunista. Depois veio o CPC. Não havia quem escapasse disso. Mesmo, por exemplo, eu me lembro, de caras que eram ricos, milionários, eles tinham que se fingir de esquerda, senão não tinham namorada. (Risos) É o nível, vocês não imaginam como é que era. Era um outro mundo. E outra coisa. A queda do muro de Berlim, o fim da guerra fria, e o início da outra, agora, houve a paz, a democracia, e a música, porque antes se usava o entretenimento para passar mensagens cifradas, acabou, então ficou o entretenimento em si, junto com o domínio das lentes, você vê, a música está quase subordinada à imagem, também, hoje em dia. Tem o dvd, você compra o disco, você quer ver o show. Mas passou a ser coisa pra ter só prazer mesmo, sem nenhuma, vamos dizer, cabeça. O que fez a instituição do movimento de massas, da periferia, como o hip hop, o funk, e o rap, que, esses sim, vêm com ideologia política. Não é gozado isso?
LC: Mas no seu cd com Caetano você faz três músicas contra o terrorismo...
JM: Ah, mas eu...
LC: Você é transtemporal!
JM: Eu sou o que Splenger classificaria, eu estou mais na Grécia e em Roma. Mas eu não tenho jeito.
LC: Mas essa questão do terrorismo, e também da droga, que você fala em “Coisa assassina”, são questões complexas, porque a tua geração é uma geração que usou as plantas de poder e as substâncias psicotrópicas, de uma forma muito boa, muito positiva, de expansão de consciência. Ou não?
JM: Eu posso lhe dizer: quantos não morreram, quantos não enlouqueceram? Tá olhando pra mim? Eu não sou louco. (Gargalhadas) Quantos não ficaram, né? Agora, eu me lembro, mais uma vez eu volto àquela época. O cara, a pessoa assim, que tava no meio das meninas gostosas, se ele não tomasse droga, ele tinha que fingir que tomava, e ele tinha que fingir pelo menos que era bissexual, senão não rolava... (Risos). Olha a loucura. Era um outro mundo. Então, hoje em dia, tem milhões, os partidos viraram indústrias em si, você tem... Agora, as drogas tinham também aquela coisa de expansão da consciência. Eu não preciso falar, o Nelson gosta muito de falar, do Timoty Leary, que começou oficialmente a serviço da Central Inteligency, não é Nelson?
NJ: Você leu aquele livro dele o Flashback?
LC: Não.
NJ: Ele era um professor de Harvard, ele vai mudando de companhias, terminou com os marginais, os artistas. Chegou a ter um processo que ele tava dando LSD no presídio de Nova York.
JM: ... chega e pergunta: é permitido isso?
NJ: Ele ia aplicar o Bob Kennedy, aí sujou, ele fala até que ligou e já não atendia. Aí começaram a mudar as coisas pra ele, começaram a cortar as verbas, depois até proibirem o LSD.
CC: Tem um livro chamado A contracultura do Theodor Rosac, em que ele vai cair dentro do Timoty Leary. Vai cair dentro no seguinte sentido: o cara inventou a liberdade em pílula. O problema não está tanto em demonizar quanto em glorificar a droga. A droga é a droga, é uma pêra, uma maçã, uma uva...
JM: Na pêra cê volta. (Risos)
NJ: Droga é droga, é a drogaria. Aí também, algumas coisas fazem mal, ou dependem...
CC: Ou fazem mal pra alguns, não pra outros, que têm uma suportabilidade maior ou menor.
NJ: Eu acho que deviam sempre desincentivar as drogas. Mas liberá-las.
JM: Isso é o Nelson.
NJ: Eu acho.
LC: Você não é a favor da liberação não?
JM: Só se for com a obrigação de tomar. (Risos)
NJ: Nada de livre arbítrio!
JM: Eu não respondo essa pergunta, porque, veja bem... E é interessante citar que no Brasil, e essa glória cabe ao exército brasileiro - o Roquete Pinto e o Marechal Rondon, quando fizeram o Amazonas e levaram a Teodoro Roosevelt o cipó. O próprio William Burroughs, no Naked lunch, ele fala que de todas as drogas, a mais rara, a melhor, a mais misteriosa - é a Ayauasca, do Santo Daime, que foi tombada pelo exército brasileiro.
LC: E não é proibida.
JM: Até o último mandato de Fernando Henrique, a Drugs and Foods Agency tentou colocar como psicotrópico proibido, mas a Cofem resistiu, e agora parece que os próprios Estados Unidos admitiram, com vários exames lá. Enfim, ela é um psicodélico saudável. Eu tenho amigos meus que eram traficantes viraram monges. Na Europa e no Japão vendem oficialmente nas farmácias. O problema todo é político. Atualmente, eu acho, as famílias, o medo das crianças. Se você legalizar, você não tem breque. Eu não sei o que eu acho. A maioria absoluta quase de todos os meus amigos, meus colegas, artistas, poetas são a favor da legalização.
LC: Mas só da maconha, ou de todas?
JM: Não, de todas. Por que vai se escolher de repente uma ou outra? Aí você entra num terreno louco.
NJ: Porque realmente proibir a maconha não tem sentido. Ninguém morre de overdose de maconha.
LC: De álcool sim, e o álcool é liberado.
JM: Ficção. Liberada a maconha e o haxixe e o skank, mas é proibida a cocaína e a heroína. No entanto, ela é vendida à vontade, essa cocaína e heroína, aí nas praças, porque, se tá legal, uma abre o precedente jurídico prà outra.
NJ: Mas já não tá vendendo à vontade a cocaína? E é proibido, quer dizer, eu acho que o fato de ser proibido...
JM: Porque aí o garoto de Budapeste, de Washington, inicia a guerra mundial atual.
LC: O garoto que vai comprar, ele vai se envolver com marginais, com bandidos, com um monte de coisas que ele não se envolveria...
NJ: Igual ao álcool, você vê quanto burguês...
JM: Vocês não precisam do meu voto. (Risos)
NJ: Ele não precisa se envolver com bandido, você vê quanto burguês alcoólatra. A gente tem que ver o seguinte: quantas pessoas por ano morrem de overdose e quantas morrem na venda da droga?
LC: E os outros problemas que o envolvimento com a droga traz.
(Nesse e em outros momentos todo mundo fala junto, não dá pra saber o que cada um diz.)
JM: Vocês querem é liberar a droga... (Risos)
LC: Vamos mudar de assunto, então.
JM: Eu só vou dizer uma frase de pessoa muito paradigmática dessa época, e de outras, porque ele vai ficar na história, John Lennon, que disse a seguinte frase: o álcool e as drogas me deram asas para voar, e depois me tiraram o céu.
NJ: Isso é outra coisa, é saber parar. Eu sou contra as drogas, mas o fato de ser contra as drogas não quer dizer que seja a favor da proibição.
LC: Da criminalização daquele que usa.
NJ: Isso é outra coisa.
CV: A gente falou sobre cientificidade, eu quero falar sobre o seu processo criativo, ele é cientifico ou ele é caótico? (Risos)
JM: Ele é o super-científico kaótico. (Risos)

Parte 2

Quase cinco horas, Jorge Mautner e Nelson Jacobina tinham que pegar sua amiga cineasta Dandara em Botafogo e levá-la prà casa de Nelson em Santa Teresa, para ver na sua tela grande com dvd o filme que Dandara fez. Jorge Mautner chamou dois táxis, que chegaram juntos. Indecisão na hora de embarcar. Jorge entrou com Nelson no táxi da frente. Cláudio e Cid sentaram no banco traseiro do táxi que vinha atrás, eu entrei na frente e falei pro motorista: “Siga aquele táxi”, cujas letras da placa guardei, o que foi muito bom, porque várias vezes o nosso motorista já ia confundindo os carros amarelos que via à frente.
Em Botafogo esperamos os vários minutos de praxe e Dandara surgiu linda com sua filha Iara, de dez anos. As duas entraram no táxi da frente. Na praia, Cláudio Carvalho falou: “Para o táxi que eu quero descer”, ao que Luís Carlos replicou: “Só se você deixar conosco o gravador e a grana do táxi”, o que Cláudio fez de bom grado aparente.
Chegamos na aprazível vivenda de Nelson, com seus gatos e cachorros, nos instalamos na sala, e Dandara começou a falar de A vingança das amazonas, o romance que escreveu. Pedi licença e liguei o gravador, o que foi uma espécie de continuação do papo com Jorge, agora com Dandara também. Várias vezes todos falaram ao mesmo tempo, o que torna incompreensível a gravação.
Depois do papo vimos o documentário Negro ingrato (2005), 64 minutos, sobre a vida e a obra de Abdias do Nascimento, de Dandara.
Dandara: Sim, mas eu acho que tudo isso, assim, na minha visão, começa no ideal positivista, de que o homem é o progresso, que o progresso é uma coisa maravilhosa necessariamente. O progresso infinito. O mundo vai crescer mais cinco por cento. Gente, o mundo vai crescer até quando? Quando vai começar a hora de dividir, de organizar? Até quando só o crescimento qualitativo é a solução? É meio isso assim.
LC: Mas o qualitativo não anda junto com o quantitativo? Por exemplo, hoje em dia um cara assalariado tem muito mais recursos que um rei da era moderna, porque ele tem essa tecnologia, então ele tem geladeira, ele tem fogão, ele tem vídeo...
D: Olha, eu não pensei sobre esse ponto. O livro que eu fiz ele fala sobre uma questão de como gerir, como lidar com os recursos naturais. Então eu vejo que na verdade como parte desse ideal positivista, isso associado a uma cultura que nasceu no deserto, a natureza tropical que é caótica, heterogênea, ela é associada ao mal. Ele precisa ser limpa. O ideal todo é esse no Brasil. Ela tem que ser limpa, pra então você começar a pegar aquele espaço e fazer uma projeção infinita da sua mente, da sua vontade.
LC: Uma europeização da natureza tropical.
D: É a mente de um povo que vem com uma cabeça e uma adaptação humano-ambiental que ela tem a ver com outra circunstância, eles não entendem esse espaço.
LC: Então eles não entendem a cultura desse espaço e a natureza desse espaço?
D: Eu acho que é muito mais do que entendimento. Não é coisa consciente. Eu acho que é toda uma maneira cultural de se relacionar, que passa muito pelo inconsciente, passa pela noção do belo, do prazer. Se você olha e analisa, tem um estudo de literatura florestal, desde a carta de Caminha. Se você analisa o ponto de vista do ocidental, ele tem uma sensação de desprazer e de choque cultural, de opressão, aquilo é um inferno verde.
LC: Você não vê um maravilhamento na carta de Caminha?
D: Eu vejo um maravilhamento na praia com as mulheres nuas.
LC: É.
D: O momento em que começa a haver uma penetração no território, uma relação com aquela natureza, toda a história é assim, “em se plantando tudo dá”, quer dizer, ele não pensa em conhecer, que aquilo é algo, que você pode criar uma vida a partir da convivência. Ele tem uma visão prévia, um pré-conceito.
LC: Você pode dizer o nome do seu livro prà revista?
D: A vingança das amazonas. É um livro que faz uma crítica ao positivismo, e propõe na verdade um Brasil do futuro que é uma ginecracia tecno-florestal. Que é engraçado, é um livro que tem muito humor, mas que tem muito estudo também, tem muita erudição sobre o que é possível fazer de positivo e de bom com a floresta como ela é. Tem um estudo meu de robótica floresta. Você sabe que a Suécia tem robôs florestais.
LC: Que legal.
D: A Suécia ganha muita grana com floresta. Eles empregam muita gente. E a floresta deles cresce a cada ano. Por que a gente não ganha tanto dinheiro? Por que a gente tem tanto desempregado que não tá na floresta plantando? Entendeu?
JM: A tecnologia que é responsável por todos esses fatores, e a política.
D: Então a política, eu tava conversando com ele antes, eu acho que nem é só uma questão de entendimento, é uma questão visceral de uma preparação mental muito profunda, entendeu? De achar que isso não tem valor, que isso não é belo, de uma sensação de desprazer, de uma necessidade de dominar esse ambiente, uma tentativa de apagar isso, limpa, e agora vamos fazer prédio, vamos fazer cana-de-açúcar, vamos inventar uma monocultura, vamos... A indústria florestal hoje ainda é isso. Na Bahia tá se tirando toda aquela vegetação nativa pra botar eucalipto.
LC: Você gosta da tecnologia.
JM: Ih, meu Deus do céu! E o mundo que será sacudido nesses próximos 30 anos, pelo maior feito? Nem a roda, nem a domesticação do fogo, nem a industrialização, nada se lhe compara, nem a desintegração do átomo. É a nanotecnologia possibilitando, através do mapeamento do genoma, a reconstrução da natureza humana em direção ao fim de todas as doenças e com longevidade indefinida indeterminada, e com energia infinita pelos auto-replicantes. E a instalação de chips, que não são necessariamente ruins, tipo Matrix.
D: Eu também acho que não.
JM: Porque se você botasse um programa incrível tecnoflorestal no chip.
D: Economiza séculos de educação. (Risos)
JM: Esse aspecto fáustico é o momento triunfal da humanidade agora.
LC: Mas sempre tem o perigo do controle estatal. Grupos que podem botar um chip em você e podem manipular.
JM: Aí eu respondo como Heidegger, que Nelson corrigiu: “O futuro virá através da cibernética num planeta em que todos serão controlados e controladores”, de novo a simultaneidade, é a amálgama do real e do virtual, da democracia e da ditadura. Então,  é claro que a democracia pela, é outro mundo. E o Nelson diz que a frase é errada, que devia ser assim: “O mundo através da cibernética será um planeta mantido por descontroladores e descontrolados”. (Risos) É a simultaneidade, é difícil você não enxergar a simultaneidade. A simultaneidade é tamanha que o próprio acusado Roberto Jefferson reverteu o processo e passou a acusador, simultaneamente.
D: E quem deu um soco na cara dele? Aquilo é um soco na cara que ele reverteu rapidamente a seu favor. Aquilo é um gênio. Agora, eu fiz esse estudo da coisa do Asimov, por exemplo.
JM: Ah, ele é maravilhoso.
D: Pois é. Então, os robôs florestais que eu criei, eles são em cima da coisa do Asimov, que você não tem que fazer uma criação pra destruir, isso é um problema psicológico que deve ser corrigido com os chips. (Risos) Eu acho isso uma esperança. Porque milhares de anos pra convencer as pessoas pelos caminhos comuns. Então, eu acho que...  Isso me impressionou muito quando eu li na obra dele. Uma faca não vem cortar a sua garganta.
JM: Lógico. A fenomenologia já tem isso como base. Um cinzeiro pode ser usado pra você botar cinza, pode se tornar uma arma, pode lhe rachar o crânio, pode ser um misterioso totem de uma tribo desconhecida, pode ser uma arte-cinzeiro e não ser cinzeiro, e por aí vai. É o uso que você faz que lhe dá o sentido.
D: E na verdade, a coisa mais misteriosa pra mim, que eu coloquei nesse romance, é que essas amazonas elas criam uma nova forma de vida, elas criam um robô que é uma criatura selvagem, que não é pra ser tratado como uma coisa que você aperta aqui, “vem cá, agora bate palminha”, não é. Ele é um ser que foi feito pra ser adaptado ali, pra exercer uma função ali, e que a pessoa não pode querer dar mole, que nem cobra, onça. Ele é um ser selvagem. Ele não tolera determinados tipos de coisas.
LC: Você se baseou nas três leis da robótica do Asimov?
D: Mas eu fiz a quarta.
LC: Qual é a quarta?
D: É a lei do eco-equilíbrio da selva, é a lei da questão nova mesmo.
LC: Mas ela tá subsumida, então, antes vem a sobrevivência humana, em quarto lugar vem a da selva?
D: É que ela fica recessiva, até que haja a necessidade de matar ou morrer.
LC: Mas entre atacar um homem e salvar a selva...
D: E salvar o conjunto? Ela ataca quem for. Ela tá lá pra trabalhar pelo conjunto.
LC: Então ela vai se sobrepor às outras três leis?
D: Ela é recessiva, mas no momento, ela se torna uma coisa que, eu sinto muito, mas é a lei da sobrevivência selvagem.
LC: Uau.
D: Cada um por si e Deus por todos.
JM: É Darwin reinstalado. Certíssimo. Darwinismo reinstalado. Muito bom.
D: E é uma coisa engraçada. Que tem sacanagem. O que seria o sexo numa época em que as mulheres estão no poder, quais são os arranjos. Quais são as brincadeiras.
CV: Esse romance você já lançou ou ainda vai lançar?
D: Não, eu terminei tem um ano e meio, eu recebi três nãos e fui fazer meu longa. Eu não insisto muito não, eu tenho essa coisa pouco fálica, digamos. Eu espero que um dia, uma hora, entendeu? Eu fico muito triste quando recebo um não.
LC: É horrível a rejeição, já recebi .milhões.
D: Ninguém gosta, né?
LC: Não é ninguém gosta, a questão toda é mercado. Se você for fulano de tal. Se você for a mulher da banheira da Gugu, você publica. (Risos)
D: Ninguém gosta de receber um não.
LC: É chato.
D: Mas a mulher da banheira do Gugu deve receber não pra outras coisas.
LC: Vem cá. As amazonas existiram? Existem ou existiram?
D: Eu acho que existem muitas...
LC: É um mito ou é uma lembrança?
D: É uma lembrança também.
LC: Você acha que os mitos recobrem lembranças antigas?
D: Em geral eu acho que o mito sempre tem um fundo de verdade. Mas em particular, eu diria que, eu estudei, e existem indícios antropológicos.
LC: Do matriarcado.
D: A reação ao início do patriarcado. Quando você tem umas mulheres quer resolvem parar de caçar e de ralar, e esperar que algum cara resolva, tem umas mulheres que eu acho assim, que descobrem que existe um ficar em casa, parindo uns filhos, fazendo a coisa mais leve. É essa reação a essa coisa do matrimônio.
LC: A coisa é mais complicada. Porque a mulher desenvolve a inteligência humana, porque a revolução neolítica, de acordo com as pesquisas atuais, quem criou a tecnologia foi a mulher.
JM: As mulheres é que governavam Creta.
LC: Então não é ficar em casa, parada, esperando o homem chegar da caça.
NJ: Num sistema mais tribal, havia, é claro, sempre o homem, como a força física, e a mulher é mais sedentária.
JM: Na época da Creta.
NJ: É, Creta também foi, mas, normalmente, nas culturas assim, é quando começa a haver um sedentarismo, uma liberdade, começa a aumentar o poder do homem. A própria divisão de poderes é meio assim, né? Quanto mais vai se sofisticando a sociedade, não é sofisticando, porque uma tribo também é sofisticada, mas...
LC: Segundo Engels, é a sociedade com estado que se torna patriarcal. Ou vice-versa.
JM: A exceção é Creta. Robert Grace, repetido por Simone de Beauvoir. Quem inventou toda a cultura helênica foram as mulheres, em Creta, onde elas eram desenvolvidíssimas. Elas tinham matemática, geometria, toda a escultura. Só que elas exerciam um domínio sobre os homens justamente, pela cultura ser tão sofisticada, pois elas guardavam o segredo de dar a luz. Então elas enganavam e controlavam os homens cretenses, que eram submetidos. São só os jônios, patriarcais, bem selvagens, que arrastam mulher pelo cabelo, que, ao atacarem Creta, não caem nessa onda, e revertem tudo. Mas mesmo assim o poder das mulheres é tão imenso, que elas vão se refletir mesmo na ordem olímpica. Zeus Porta-égide está sempre em briga com Hera. Hera, a esposa dele, está sempre armando armadilhas - reminiscência dessa época. Em alguns lugares mais bravos, onde a luta se deu mais intensamente para sufocar o poder das mulheres, Hera vira Medusa, etc. Mas em outro lugar foi tão forte que elas continuaram politicamente com o poder, intelectualmente com o poder, que é a ilha de Lesbos. O que aconteceu é que, antes disso, no auge da Creta, segundo Robert Place, endossado por Bachofen, que acreditava nisso, Engels, Simone de Beauvoir, é o seguinte (porque pros outros não, era apenas um ligeiro matriarcado): elas é que inventaram tudo, foram os gênios, porque elas também chegavam ao cúmulo de imitar a colmeia de abelhas; ficava um ano só o homem casado com ela, o príncipe-consorte, e depois morria, em sacrifício. Mas elas desenvolveram tudo. A poesia ao máximo. E tanto quem vai sugar aquilo, transformar em arché como caráter, é Homero, e depois Hesíodo.
LC: Fazendo uma visão masculina, patriarcal. Também tem uma substituição de deusas. As deusas matriarcais foram se tornando más.
NJ: Numa volta ao primevo, uma coisa mais matriarcal que seria o politeísmo.
LC: E a figura de hetaíra na polis, porque ela tem a permissão de estudar. O homem precisa ter uma figura de mulher forte, mesmo dentro do patriarcado, mantendo a mulher livre.
JM: Zeus Porta-égide, além de sufocar, ele mata Chrónos, mas os irmãos dele não ficam satisfeitos, que parece que ele tinha prometido uma assembleia constituinte e tomou o poder. (Risos) Atlas, Sísifos, Prometeu, todos tramam, já, contra ele. E no entanto ele sufoca essa revolta dos titãs. Mas ele tem muitos problemas ali em casa, que Hera a esposa dele divide o poder com ele, armando, ela é um pouco inferior a ele, mas ela mesmo assim arma todas as complicações possíveis. E mais ainda: ele, no auge do poder patriarcal, ele nega até a capacidade da mulher de dar a luz. Não só Dionisos, numa das lendas, nasce de uma coxa dele, como Palas Ateneia nasce de uma dor de cabeça, ao invés da dor do parto é a dor de cabeça.
LC: E a Hera tentou ter um filho sozinha, e nasceu um monstro.
NJ: Eles são irmãos.
D: Vocês sabem que aquela ilha, isso estudando recentemente, a ilha que é hoje um dos lugares patriarcais mais terríveis, que é a Arábia Saudita, península, sei lá o que é aquilo, ali era um lugar que tinha uma série de dinastias femininas chamadas Kindesi, e a Rainha de Sabá era uma delas.
JM: Exatamente.
LC: Cultura negra, cultura africana?
D: As Kindesi eram negras. Mas você tem o negro na Índia, quer dizer, o negro ser africano é uma coisa também muito relativa.
JM: O ser humano nasceu africano.
D: Nasceu negro.
JM: Boa parte foi prà China e Irã, e depois a mesma voltou lá pra cima, pro norte, aí ficaram com as diferentes colorações.
D: Eu sei que existe uma tese popular que...
JM: Isso o dna que provou agora.
D: ...é a seguinte: não se chuta cachorro morto. Onde a mulher é mais perseguida e mais maltratada é onde ela teve o poder maior e mais absoluto. Então, a Arábia Saudita é um dos lugares mais terríveis. E a Rainha de Sabá era chefe de estado que foi fazer uma visita diplomática e de negócios e teve um caso com o rei, além de todos esses negócios, ela teve um caso com o rei.
LC: E é impressionante porque esse texto, do poema em que ela declara o amor sexual pelo rei, é o único texto erótico da Bíblia, isso é impressionante. O texto de uma rainha negra. Ela diz: “Nigra sum sed formosa”, quer dizer já é o preconceito racial também, “Sou negra porém formosa”.
D: Tem a coisa da Cleópatra também. Eu agora estou trabalhando num museu que chama-se Black Beans, eu estou trabalhando pra tentar viabilizar fora daqui. Então eu estudei também essa coisa da Cleópatra, o impacto da Vênus negra em toda a cultura romana. Tem um livro que eu peguei outro dia, que diz que ela construiu a chegada, ela fez um carnaval.
NJ: Ela era grega, na verdade, ela é de uma dinastia grega. O nome Cleós é grego.
D: Embora ela tenha sido a última rainha do Egito.
LC: Mas de cultura grega ou de etnia grega?
NJ: De etnia grega. O Ptolomeu era general de Alexandre. Quando ele invade o Egito, ele deixa Ptolomeu lá. Esse filme agora do Alexandre é narrado pelo Ptolomeu, que seria o primeiro ancestral.
JM: Deixa eu só falar uma coisa. Na verdade, o mundo todo gira em torno da invenção de uma mulher negra. O deus invisível de Akhenaton foi inventado por sua esposa Nefertiti. Ela inventou então o monoteísmo, o deus invisível, e por consequência então até o ateísmo. Então a invenção mais importante, que mudou a humanidade pra sempre, é de Nefertiti, essa não tem dúvida, acharam a estátua. E Akhenaton fazia questão, ela era faraó igual a ele, na verdade era mais que ele.
D: Eu escrevi uma peça sobre isso quando era bem novinha.
LC: Foi ali que o Moisés aprendeu o monoteísmo, né?
JM: A revolução de Akhenaton e de Nefertiti, ela foi sufocada, o próprio filho, em vez de Tutankaton vira Tutankamon, e apagam tudo, assim como ele apagou os nomes dos deuses apaga-se o nome dele e de Nefetiti. Mas na nobreza aquilo fica, vamos dizer, fica aquele partido comunista na ilegalidade. Até chegar com o Moisés. E aí coincide, o deus único, inventado pela abundância, que foi esse Atom, e o deus único, que nasceu da escassez, que era um deus arcaico (isso Mircea Eliade que conta), os judeus mais antigos tinham um deus único também, mas é por escassez, que se chamava Yahoo, que morava nas cavernas e nas grutas, e que saía de dentro da gruta de noite, pra sugar o sangue dos crentes! Ele nem dava nada, ele ainda sugava o sangue dos crentes. (Risos) Veja bem, quando Moisés vê deus único da abundância, Moises vai se acoplar com aqueles escravos que tinham o deus da escassez. Daí a contradição do Deus judaico, ele mediar esses extremos de escassez e excesso de abundância, essa colagem.
CV: O monoteísmo judaico é anterior a Moisés?
JM: Em estado arcaico.
LC: Esse é o nome impronunciável, que eles grafam com quatro letras, é esse som?
JM: É, Yahoo. Yahav depois no judaísmo.
D: Esse deus da escassez ele virou moda.
JM: Ele vai até buscar o sangue das pessoas.
NJ: Vários nomes de deus, eram vários deuses.
CV: O provedor principal da informática hoje em dia é o Yahoo.
JM: Olha lá, exatamente! (Risos) Você vê só, aqui não há coincidências.
LC: E os rastafaris têm uma religião baseada na ganja, que é africana, mas que adora Jah, que é o mesmo Deus.
JM: A Etiópia também foi aliada dos judeus.
D: O problema do rastafari é o preconceito contra a xoxota.
LC: Mas também você vê o preconceito contra a xoxota em toda lugar.
D: Eles não fazem sexo oral com a mulher. Eu não vejo em todo lugar não, eu vejo lugares onde a xoxota é muito feliz e adorada, e respeitada, e temida. Mas eu acho que, o problema pra mim, eu como mulher negra, vou dizer a você, sabe aquele grupo...
LC: Os Mulheres Negras.
D: Não, grupo de reggae jamaicano, Still Fo, pois é, eles estiveram no Brasil há um tempo atrás, e eu conheci aquele chefe do Still Fo que tem um cabelo de xaxim, que parece uma letra judaica. Aquele cabelo é um... é um hieróglifo. E ele cismou que tinha que me levar prà Jamaica. E eu falei: “Meu amigo, não vai dar certo, porque eu vou chegar lá, vou ensinar as pretinhas todas a exigir o Sweetest taboo”.
LC: Isso é que é o Sweetest taboo?
D: É. Tanto que a coisa da Shade é ela com um homem branco dizendo: “você me deu o Sweetest taboo”.
LC: O cunilingus.
D: É. Você me deu uma coisa que eu jamais imaginaria.
LC: Mas eles não aceitam porque é um tabu pra eles?
D: É um tabu.
LC: Pro negro em geral? pro jamaicano?
D: Acho que não. Você não pode generalizar assim.
LC: Na cultura africana.
D: Na cultura rastafari.
NJ: A cultura rastafari é uma leitura jamaicana da cultura da Etiópia.
LC: Mas a Etiópia é muito influenciada pelo islamismo, né? O Jorge Benjor...
NJ: E também o judaísmo. Os judeus eram de lá.
JM: A Arca da Salvação está lá.
NJ: Parece inclusive que os rastafaris são monoteístas. É uma religião que vem daquela coisa judaica. Vem daquela fonte.
D: Eu acho lindo esse clipe da Shade.
NJ: Da Shade. Eu adoro ela.
D: É. Muito bonito como que ela fala. Ela tem uma fala assim muito rara na música do mundo, que é essa fala de uma mulher negra que de repente se ocidentaliza e consegue libertar esse texto do que que é essa sensualidade, do que que é essa sexualidade. Eu acho muito rara essa fala no contexto da música pop. Você tem muitas cantoras que cantam (hoje tá mudando isso) o que o compositor homem fala, isso é muito estereótipo. Essa fala mesmo sincera, Queen of Soul, é uma coisa maravilhosa, e muito rara.
LC: É interessante que no nascimento da canção lusitana a mulher falando na música era o homem que escrevia, né?, que era a cantiga de amigo. Então o homem falava a voz da mulher e a do homem também. A mulher não tinha permissão.
D: Agora vamos falar o contrário. Eu quero dizer o seguinte: eu percebo, na história da evolução da humanidade, como na minha própria vida, a importância do masculino, como algo que permite que você crie, que você particularize, que você individualize. Eu acho que sem isso, eu, na minha vida, por exemplo, seria uma pessoa totalmente soterrada pela energia da minha mãe e da minha vó. Eu jamais seria essa pessoa que eu sou hoje, entendeu? Se eu não tivesse esse aspecto na minha própria personalidade, a relação com o meu pai, a relação com os homens da minha vida. Eu acho que é fundamental. Então eu acho que esse excesso de raiva, de ódio contra o feminino, ele nasce de uma tentativa de, de um reflexo da humanidade e do mundo de equilibrar uma coisa que foi muito excessiva. Eu acho que o poder da mãe é terrível, a mãe absoluta, a mãe abelha rainha. É uma coisa que... E o neolítico inteiro ao que se diz, o homem não sabia que ele gerava também, o neolítico inteiro todos são sujeitos ao poder de geração da mulher. Então, escreveu não leu amigo, até logo. Então eu vejo que isso é um equilíbrio. Que a gente está, eu espero, chegando perto, quem sabe mais cem, duzentos anos, quinhentos, de alguma coisa onde haja mais... talvez os chips adiantem. (Risos) Essa história, entendeu? Eu vejo isso. Eu vejo que nada mais fértil que uma mulher que tem prazer. E mesmo que você na ilha de Lesbos considere que o homem é descartável, eu vou te dizer, eu como mulher, eu acho o seguinte, que você tem partes da sua vida, do seu corpo, da sua essência, que você nunca descobre, sem uma relação com o homem. Então eu acho que também tem que se tomar cuidado nesse resgate do que, ah, o feminino também não é o começo. Até porque se Deus é pai a gente nasceu da mãe, mora aqui no corpo da mãe.
LC: Mas o equilíbrio é valorizar os dois. Valorizar o feminino no masculino do homem, o masculino da mulher.
CV: O equilíbrio não destrói o prazer? (Risos)
JM: É a luta pela questão do equilíbrio.
LC: O equilíbrio é luta, Heráclito.
NJ: O equilíbrio não é ficar numa coisa do meio, é movimentado.
D: Isso é uma loucura. Eu acho que o equilíbrio é basicamente impossível por mais do que quinze segundos, um minuto.
LC: Eu tava falando em termos sociais, quer dizer, uma sociedade em que a mulher não seja oprimida, nem o homem seja oprimido, todos sejam cidadãos.
NJ: A gente está tendendo a isso. Nunca teve uma sociedade tão perto de, cada vez mais perto disso.
JM (severo e irônico): Então por que vocês a criticam?!?!?


                         FONTES

                          LIVROS

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Revista Delfos, Rio de Janeiro, 1975/1976, n° 15/16.

                         DISCOGRAFIA MAUTNERIANA

1965 - Compacto Simples: NãoNãoNão/RadioatividadeRCA Victor, LC-6229.
1972 - LP Para Iluminar a Cidade. Polydor, 825.826-1.
1972 - Compacto: Planeta dos Macacos. Polygram.
1973 - Compacto: Rock da Barata. Polygram.
1973 - Participa do LP Fono 73 com a música “Rock da Barata”.
1974 - Compacto: Bem-te-viu. Som Livre.
1974 - Participa do LP Abertura com a música “Bem-te-viu”.
1974 - LP Jorge Mautner. CBD PHONOGRAM, 2451.051.
1975 - Compacto: Relaxa Meu Bem, Relaxa. Polygram.
1976 - LP 1001 Noites de Bagdá. Philips, 6349.175.
1977 - Compacto Simples: O Filho Predileto de Xangô/O Boi. CBS.
1979 - Faixa “Samba dos Animais”no LP da ONU-UNESCO Declaração dos Direitos do Homem. RCA.
1981 - LP Bomba de Estrelas. WEA, BR 824.950-1.
1981 - Compacto Encantador de Serpentes. RCA.
1985 - LP Antimaldito. Polygram, 824.950-1.
1988 - LP Árvore da Vida. BMG-Ariola, 670.0131.
1994 - CD Pedra BrutaRock Company, RCCD 002.
1997 - CD Estilhaços de Paixão. Velas, 11-P253.
1999 - CD Duplo: O Ser da Tempestade - Compilação. Dabliu Discos.
2002 - CD parte de Mitologia do Kaos, com regravações e uma faixa inédita com leitura musicada de fragmentos de Floresta Verde Esmeralda.
2002 - CD Eu Não Peço Desculpa, com Caetano Veloso, Universal Music, 04400645192.
2007 - CD Revirão, independente.
               














[1] DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição, p. 212; Lógica do Sentido, p. 261, apêndice I.1, “Platão e o Simulacro”.
[2] Estava procurando um signo para a obra-aprendizado que faria, e encontrei esta pichação num muro de São Paulo.
Na publicação de estreia de Mautner, na Revista Diálogo número 13, Dora Ferreira da Silva o apresentou como “Ouroboros”, v. Panfletos da Nova Era, p. 35 e Trajetória do Kaos. A coincidência é impressionante.
Podemos aventar também a hipótese de que o grafiteiro fazia um diálogo com a obra plástica de Ligia Pape Eat Me, que fala da relação de dominação homem/mulher em nossa sociedade.
[3] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Zona Fantasma”, in Antimaldito. Esta canção é muito interessante, pois, além de se tratar de uma espécie de marchinha (quase sempre o ritmo das melodias de Mautner e de Jacobina é misturado e difícil de determinar em seus componentes, além de apresentarem harmonias variadas e complexas; como outros exercícios de estilo, Mautner faz questão de compor samba popular, bossa nova, xotte, baião, fado, marcha, cantiga infantil, hino etc., lançando mão, eventualmente, de acordes dissonantes ou “jazzísticos”), tem sua letra construída como uma ficção científica bem humorada, onde um indivíduo se vê numa espécie de limbo entre os vivos e o além, profundamente envolvido com o que acontece na Terra, e sem poder no entanto interferir, como se fosse um homem invisível, ou um “ectoplasma” (uma das interpretações cabíveis seria a kardecista, porém a interpretação de literatura fantástica ou científica tem de ser aqui reconhecida). Note-se ainda a introdução falada, em que Mautner mais uma vez brinca com citações filosóficas, especialmente de Nietzsche, para, bem consoante com a vontade do filósofo, negá-lo, ao afirmar que o que queremos é o “humano, demasiado humano” (Era meia-noite/Olhei ao meu redor/E vi a sombra do vulto de Zaratustra passando/Zaratustra a ponte para o super-homem/Sim/Mas nós não queremos esse super-homem/Nós queremos apenas o humano/O demasiadamente humano/Mergulhado até as lamas da condição humana ). O personagem da letra recusou-se a ser um super-homem, e preferiu, em uma inspiração existencialista, ser humano, demasiadamente humano; por ironia, foi condenado a ficar exposto aos raios da criptonita, que é justamente a tortura do super-homem das histórias em quadrinhos!
[4] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 31.
[5] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, pp. 42-43.
[6] Proteu é um ensaio baseado na Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira pela UFRJ, de mesmo nome, que defendi em julho de 1992; nos anos de 2000 e 2002 o texto foi revisto, atualizado, enriquecido e ampliado, e teve sua primeira edição em setembro de 2004 pela HP Comunicação. Em 2011 o texto foi novamente revisto, ampliado, corrigido e atualizado, e editado pela Litteris.
Em 1992, poucos dias depois da defesa, fui levar uma cópia do trabalho para Mautner, em um show que ele fazia em uma casa noturna em Botafogo, acompanhado de Nelson Jacobina ao violão e do vocal de Celso Sim, um novo cantor de bela voz, longo alcance e afinadíssimo, revelado por Mautner. Celso Sim é paulista (Mautner o encontrou nas ruas de São Paulo cantando “Os Alquimistas Estão Chegando” de Jorge Ben Jor, e o convidou para trabalhar com ele; Celso participou até agora dos cds Pedra Bruta, Estilhaços de Paixão e O Ser da Tempestade), e sua prosódia e inflexão sofrem a influência do incomum estilo de cantar de Jorge Mautner.
Na plateia também estava o percussionista Repolho, que acompanhava as músicas percutindo pratos, talheres e copos. Aí aconteceu o lindo momento em que Celso se enrolou numa enorme bandeira do Kaos, ladeando, juntamente com Nelson Jacobina e Repolho, que subira ao palco e fazia o ritmo com uma colher e um copo, Jorge ao centro, que cantava e dançava. Ali na plateia estava eu, com a cópia da tese para lhe entregar.
Tive a visão de um exército, Jorge atraindo seguidores para a causa trans-pessoal do Kaos.
Fiz-lhe então uma dedicatória mais ou menos assim: “Para Jorge Mautner, uma contribuição deste soldado das fileiras do Kaos.”
[7] “Cientistas são místicos, a matemática enlouqueceu poeticamente a Albert Einstein que despertou isso, tocava violino e acreditava em Deus-Jeová com até mesmo passaporte de Israel. /.../ Voltando a Einstein, ele dizia que quando ‘pensamos’ (não raciocinamos) estamos percorrendo as linhas de força do universo. Que louco genial este nosso irmão e principal fabricador da Nova Era!”
MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 29.
[8] “Nos campo das perfomances visuais é preciso falar de Flávio de Carvalho, fluminense de Barra Mansa, nascido em 1899 e formado engenheiro na Inglaterra, que retornou ao Brasil exatamente em 1922, onde se entusiasmou com as propostas de Oswald de Andrade, com que conviveu, tornando-se arquiteto, escultor, autor de teatro e performer antropofágico (em 1931 atravessa na contramão e de boné uma procissão de Corpus Christi). Criador incansável, vanguardista convicto, soube captar o sentido profundo daquele momento em que a sedução das ideias se aliava ao gosto da ação. No alvorecer dos anos 30 e durante toda a sua longa vida, vamos encontrá-lo em múltiplos cenários, ora erguendo a voz em congressos de arquitetura para defender as teses antropofágicas, que viriam a virar pelo avesso as concepções de arte e de inserção do Brasil no mundo, ora participando do Salão Revolucionário no Rio de Janeiro, ora unindo-se aos pioneiros que fundaram o Clube dos Artistas Modernos.
Primeiro “performer” brasileiro, criou ainda o Teatro da Experiência e, como desdobramento, levou ao palco, de maneira inovadora, a sua peça O bailado do deus morto, que será remontada no Teatro FAAP. De espírito inquieto e determinado a recriar paradigmas, foi mais do que um artista. Foi uma personalidade extraordinária, de imaginação e energia invulgar. Montou cenários e figurinos para bailes de Carnaval, participou de bienais e foi autor de uma arquitetura futurista. /.../. Para Flávio de Carvalho, a complexa escala da dimensão humana era como luz da chama. É exatamente o que transpira dos retratos que fez de intelectuais, artistas e nus femininos.” CARAVALHO, Celita Procópio, in Flávio de Carvalho 100 Anos de um Revolucionário Romântico, folheto da exposição do CCBB.
[9] Expressão comum na prosa de Mautner, ao invés de dizer “havia carros” ele diz “os carros existiram”, “a música tocou” fica “a música existiu” etc. Também ocorre nos outros textos ficcionais; não ocorre nos ensaios, nem na poesia nem nas letras. A sua prosa parece música mas a sua música e a sua poesia não parecem com a sua prosa, que tem elementos de discurso bílblico, poesia de Walt Whitman, surrealismo e prosa beatnik, eivada de coloquial, confessional, monólogo interior. O verbo existir colocado no lugar de estar e outros não é influência do alemão (e menos ainda dos improváveis inglês e francês). Pode ser um recurso proposital, que dá ao texto um tom bíblico e um distanciamento profético, e nos faz pensar no hebraico e no grego (Panfletos da Nova Era, p. 113-114: “/.../para mim, pelo menos capricórnio e meio grego, pois minha mãe é da Macedônia, e por isso repito como os antigos gregos: viver é ser prisioneiro da terra”). O português de Mautner é perfeito e não traz marca de que é sua segunda língua.
[10] MAUTNER, Jorge. Deus da Chuva e da Morte, pp. 6-7.
[11] MAUTNER, Jorge. “Hiroshima-Brasil”, in lp A Árvore da Vida.
[12] MAUTNER, Jorge. Panfletos da  Nova Era, p. 100.
[13] MAUTNER, Jorge. Entrevista à revista Bizz, ed 45, ano 5, n° 4, abril de 1989, pp. 45-46.
[14] Mautner se posiciona politicamente e faz a crítica do neocolonialismo, citando Fanon e indo além dele; todavia não recomenda o ressentimento com os militares (representantes da casta guerreira, necessária), nem com a direita (recomenda diálogo, sínteses democráticas das posições) e principalmente com os artistas ele adota uma atitude antipatrulha, de anistia (v. suas considerações sobre Simonal em Panfletos da Nova Era, pp 119-120, bonita porque corajosa, a única voz na época a não inculpar o cantor que foi tão covardemente perseguido pelos autoproclamados “democratas”, uma atitude que em entrevista à Revista Bundas, Ano 2, N° 58, 25 de julho de 2000, p. 47, Nelson Motta só foi rever no ano 2000, e com a qual, mesmo então, Ziraldo teve dificuldade em concordar. V tb. MOTTA, Nelson. Noites Tropicais, pp. 211 e ss.).
[15] MAUTNER, Jorge. “Estrela da Noite” in Para Iluminar a Cidade.
[16]Na conferência de 6 de setembro de 2000 no CCBB nosso autor declarou que sua grande referência e seus maiores mestres literários são os escritores russos Tolstoi, Dostoievski, Gorki, Gogol etc.
[17] Ver a esse respeito “Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino-Americana” por Haroldo de Campos, in MORENO, César Fernández (org.). América Latina em sua Literatura, pp. 281-305. Haroldo de Campos estuda muitos autores latinos, e, entre os brasileiros, Souzândrade, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Caetano Veloso; não alude a Jorge Mautner, porém suas observações podem também podem ser aplicadas a nosso autor.
[18] NIETSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra,  p. 34.
[19] DUMÉZIL, Georges. Mitra-Varuna. Ver tb DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. “Tratado de Nomadologia: a Máquina de Guerra”, in Mil Platôs, vol. 5 da trad. brasileira, pp. 11 e ss., no original pp. 434 e ss.
[20] HESÍODO. Teogonia, p. 29, p. 30, p. 31 e p. 46.
[21] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Lógico-Philosophicus, p. 142.
[22] ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno, passim.
[23] ROSSET, Clément. A Anti-natureza, p. 31.
[24] _______. Lógica do Pior, p. 13.
[25] MAUTNER, Jorge. “Samba dos animais”, in Jorge Mautner, lp. Esta música também foi uma faixa do lp O Banquete dos Mendigos, pela Declaração dos Direitos Humanos da ONU/UNESCO.
[26] Ao falar com os animais, o homem também podia falar com os deuses:
/.../ Novas cores, novos horizontes, diziam os poetas do fim do século passado, antevendo a avalanche que viria. Ela já estava aí, como flores selvagens irradiando perfumes e visões, os delírios do oriente e das hervas /sic/ mágicas nos puseram a falar com os deuses como outrora, quando nós ainda andávamos a cavalo e a nudez do nosso corpo era como a beleza das pétalas e das estrelas.
Fragmentos de Sabonete, p. 28.
[27] Meu pai foi radialista durante toda sua vida, tendo trabalhado na Rádio Gaúcha do Rio Grande do Sul, sua terra natal (ele é de quatro cidades ao mesmo tempo, Santo Ângelo, Livramento, Uruguaiana e São Gabriel), e em todas as grandes emissoras de AM do Rio de Janeiro, entre as décadas de cinquenta e oitenta. Suas principais atividades foram operador de áudio, repórter, locutor/apresentador de programa e cantor (de música sertaneja) com o pseudônimo de Speed Luiz. No início da década de setenta ele tinha como personagens de seu programa os “bonequinhos” Nicolino e Nicolina, que tinham a mesma voz da segunda parte desta gravação de “Samba dos Animais”. Perguntei-lhe como ele produzia o efeito, e sua explicação é a seguinte: gravava sua própria voz no gravador profissional Ampex na velocidade de 7 e ½ polegadas por minuto, com uma bucha de durex no eixo principal da fita, para atrasar mais ainda a gravação, depois ele tirava a bucha e passava a mesma gravação em 15 PPM (polegadas por minuto). Perguntei-lhe se ele achava que o mesmo procedimento tinha sido feito no disco produzido por Gilberto Gil; ele comentou que provavelmente Gil teria um modelo mais moderno de gravador, que permitia alterações manuais analógicas de velocidade de gravação (as diferenças de timbre entre a voz de Nicolino e Nicolina eram feitas pelo falsete de sua voz na hora de gravar, Nicolino sempre cantava músicas famosas para Nicolina, cujos vocais eram alterados pelo mesmo processo).
[28] “Existem várias histórias paralelas à história tida como a principal. Assim como todo tipo de contradições na contradição tida como principal.
“A má-fé habita as sombras da atitude humana. X era um crítico fanático e dogmático de um jornal da cidade, escrevia bobagens sem parar e o ressentimento era sua matéria-prima. Sua pregação: o fanatismo, o chauvinismo, a intolerância, usando a música, escrevendo artigos sobre a música, ele usava essa arte (situada a milhões de anos-luz além de sua pobre e pequena cabeça) para pregar a intolerância, vai nisso certa ironia dialética: a arte das harmonias e que sabe resolver seus conflitos na profundidade das dissonâncias e divisões de ritmo, usada como instrumento da intolerância linear!
“Pertencia integralmente a um dos canais mais oblíquos de televisão da história, e pensava ser este o único canal verdadeiro. Quantos espaços de miopia separam o olho do homem do olho da formiga? Fofocas de província.”
MAUTNER, Jorge. Fragmentos de Sabonete, p. 40.
[29] GUATTARI, Félix. “O Capitalismo Mundial Integrado e a Revolução Molecular”, in Revolução Molecular pp. 211-226.
[30] Como na pesquisa desenvolvida pelo cientista norte-americano Stephen LE BERGE, v. Sonhos Lúcidos.
[31] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipopassim.
[32] VELOSO, Caetano. Verdade tropical, pp. 443-444.
[33] “O Paul era um grande jogador, me parece... e no fim das contas, se você for ver, o mundo é regido pelos jogos. É a velha disputa entre o Einstein (com a sua relatividade) e os quânticos - Deus joga dados, diziam eles. Isso para uma mentalidade racionalista, onde tudo tem uma causa e um efeito (que é o cerne absoluto da sua civilização) é uma afronta. O jogador, num determinado momento, aposta tudo. Aquele é um momento de ruptura, em que sincronicidades e acasos entram em ação. Ele é atemporal, é só o momento que vale. O Paul Mautner era uma destas figuras.” Depoimento de José Roberto Aguilar, in Trajetória do Kaos.
[34] MAUNTER, Jorge. Deus da chuva e da morte, pp. 72-74
[35] Idem, ibidem.
[36] Na entrevista com o autor.
[37] Em entrevista para o autor deste trabalho, ver capítulo 8.
[38] No CCBB Mautner contou que o partido ia crescendo na proporção de mil filiações por semana, e que ele e Aguilar saíam para pichar a cidade de São Paulo com o símbolo do Kaos, até que uma noite foram presos por milicianos para-militares judeus ilegais, que pensavam que o Kaos fosse um movimento neo-nazista.
[39] O PC do B e o PSB inclusive utilizaram a canção em suas propagandas políticas de rádio e tv, mas a música foi feita para toda a esquerda. Mautner comentou no CCBB que os judeus não aceitavam hinos de guerra, por isso ele a compôs como uma canção infantil. Esta canção se tornou um sucesso em termos de temas de propaganda política, e a singeleza de sua melodia e o idealismo de sua letra comovem muita gente.
Os versos que afirmam que “a mais bela” e “a primeira” é a “verde-amarela” “bandeira brasileira” incomodam a alguns, ou por parecerem naïves demais, ou por lembrarem o verdamarelismo que sabotava a antropofagia modernista, ou o integralismo, ou ainda o ufanismo tão acentuados nos períodos mais assumidamente ditatoriais, como na época de Getúlio (que JM conta em debate com Caetano na Trajetória do Kaos que conheceu criança) ou dos generais, quando havia tanta coisa do tipo “eu te amo meu Brasil, meu coração é verde, amarelo, branco e azul de anil”.
No entanto podemos observar que JM, como disse Caetano, brinca com o lugar comum com a originalidade de um extra-terrestre (que na época se dizia “marciano”), assim também com o “surrado tropo” das nossas cores, que todavia afetam realmente a sentimentalidade nacional.
Devemos entender que a colocação da letra nos mostra uma síntese política que rejeita um colonialismo de direita ou de esquerda, e que afirma nossa diferença e a diferença de um possível nosso socialismo.
Estes versos são inspirados em uma canção do folclore nordestino por recolhida por Cecília Guarniere, esposa de Gianfrancesco Guarniere, no sertão da Paraíba, e passada para ele, que a gravou no seu primeiro lp Para Iluminar a Cidade, cujos surrealistas versos são (“Sapo Cururu”):
Esse sapo cururu
No andar de bicicleta
Mas ele anda dizendo
Que a lua é careca

Se a lua fosse careca
Ela usava cabeleira
Ah! Como é bonita
A bandeira brasileira!
[40] MAUTNER, Jorge. “A Bandeira do meu Partido”, in Antimaldito.
[41] Entrevista concedida ao autor.
[42] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 22.
[43] Entrevista ao autor.
[44] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 23.
[45] Informações extraídas de BUENO, André e GOES, Fred. O que é geração beat, passim.
[46] Idem, ibidem, pp. 66-67.
[47] Idemibidem, p. 37.
[48] DELEUZE, Gilles.Lógica do Sentido, pp. 71-72.
[49] O signo da cidade ou o signo do cosmos? A arte e a vida, ou a matéria e o pensamento?
[50] MAUTNER, Jorge. Vigarista Jorge, pp. 71-72.
[51] SADOUL, Jacques. O Tesouro dos Alquimistas, p. 25. Trata-se do início da Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegistos.
[52] Palavra-valise (mot-valise) criada por Caetano Veloso para designar o texto de Haroldo de Campos Galáxias, e que pode ser adotada como a expressão que nomeia um terceiro tipo de texto, além da prosa e da poesia, que carrega características de ambos e outras, suas próprias, novas.
[53] Há uma identificação ontológica pela univocidade, o ser do relâmpago é sempre o mesmo onde ele está, onde aparece (e a aparência é a essência), não há metáfora em poetas e pensadores da univocidade, não há metáforas em Jorge Mautner, como diz Don Juan para Carlos Castaneda, “no mundo do homem de conhecimento nada é feito de outra coisa”.
[54] É um estado de super-sensibilidade diagnostica pelo médico em Caetano Veloso, e que ele cita em sua canção “Outras Palavras”, referindo-se a si mesmo e a Chico Buarque.
[55] MAUTNER, Jorge. “O Vampiro”, in A Árvore da Vida.
[56] A MPB nos ofereceu quatro artistas que revolucionaram para o grande público brasileiro nos anos 60 e 70 a imagem da sexualidade masculina, feminina, homossexual e bissexual, cronologicamente, Jorge Mautner, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Ney Matogrosso, depois vieram outros.
[57] Como em “Matemática do Desejo”, in lp Jorge Mautner, a ligação desses dois extremos aparentemente irreconciliáveis, porém para ele há uma matemática, uma razão e uma lógica do desejo, assim como também existe um desejo irracional no mais estrito racionalismo.
[58] MAUTNER, Jorge. Narciso em Tarde Cinza, p. 13.
[59] _______. “Bolinhas de Gude”, in Mil e Uma Noites de Bagdá.
[60] _______ e JACOBINA, Nelson.  “Mil e Uma  Noites de Bagdá”, ibidem.
[61] MAUTNER, Jorge. “Chuva Princesa”, in Para Iluminar a Cidade.
[62] _______. “Quando a tarde vem”, in O Ser da Tempestade.
[63] _______. Vigarista Jorge, p. 67.
[64] Esta relação de sua obra com a alquimia é o próprio Mautner quem faz em vários momentos, como quando cita Hermes Trismegistos:
“Acorde
recorde que voce eh um homem
que veio de uma estrela
que está em uma estrela
que irá para outra estrela

pouse suave
os mensageiros orientam”
                                      Hermes Trismegistos
Fragmentos de Sabonete, p. 64.
[65] “Nós os humanos somos os netos do mar.”
_______. Narciso em Tarde Cinza, p. 17.
[66] ______. Narciso em Tarde Cinza, pp. 35-37.
[67] MAUTNER, Jorge. Fragmentos de Sabonete, pp. 27-28.
[68] Jornalista, radialista e também compositor, filho de Jacob do Bandolim.
[69] Revista Ele e ela, ano XX, n° 237, março de 1989, p. 6; n° 238, abril, p. 8, n° 239, maio, p. 12.
[70] Mautner tinha escrito a cena final em que os norte-americanos desembarcavam e tomavam conta de tudo, libertando Edson. Comentei que Neville deve ter evitado essa alternativa pois poderiam achar que era proposta a sério. Mautner disse que naquele tempo já havia patrulha ideológica. Como o Hitler da cena inicial, os americanos salvadores seriam ironia e denúncia.
[71] VELOSO, Caetano. Verdade tropical, pp. 442-3.
[72] VELOSO, Caetano. “Conteúdo”, in Temporada de Verão.
[73] V. lp Abertura.
Além deste, Jorge participou com “O Encantador de Serpentes” (de autoria dele e de Robertinho de Recife, os dois cantaram e tocaram a música juntos, havia uma serpente teatral que deveria subir durante a música, porém o efeito falhou ou foi sabotado) de um dos festivais da Globo dos anos 80.
[74] VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria, p. 165.
[75] A letra é cantada em português por Caetano e depois falada em inglês por Arto Lindsay, instrumentista norte-americano que cresceu no nordeste brasileiro, fala português, grava muitas músicas brasileiras e produziu Estrangeiro.
[76] _______. “Ele me deu um beijo na boca”, in Cores Nomes.
[77] DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição, pp. 108 e 205.
[78] “, , s. m. //ordem,  boa ordem//decência//conveniência//disciplina//organização, constituição//ordem do universo//cosmos, universo, mundo//o céu, os astros//adorno, adereço, gala, honra, glória.
“,  ou , s. m.()//caos//imensidade do espaço//fig. tempo ilimitado.
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português, pp. 330, 625.
[79] MAUTNER, Jorge. Fundamentos do Kaos, p. 18.
[80] Conferir este trecho do “Marx da literatura” Artur Rimbaud:
O Poeta se faz vidente através de um longo, imenso e consciente desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; pesquisa a si próprio, esgota em si mesmo todos os venenos para conservar deles apenas a quintessência. /.../
Portanto o poeta é na verdade ladrão de fogo.
in FAUSTINO, Mario. Poesia-experiência, p. 96.
[81] Que surpreendentemente, como Heiddeger, foi nazista.
[82] O mesmo ano em que sai o lp Roger Waters supracitado.
[83] GLEICK, James. Caos - a criação de uma nova ciência, pp. 4-5.
[84] ANDRADE, Oswald.  Os Dentes do Dragão, p. 237, frase dita por OA em uma de suas últimas entrevistas
[85] Nunca existiu poema-piada, isso é uma incompreensão atroz, uma total falta de sensibilidade e de informação estética. Em Aspectos da Literatura Brasileira Mário de Andrade critica o que ele chama de “poema-piada” como uma fase de decadência da poesia em Luiz Aranha, que se mostrou grande em seus poemas longos, e só no seu quarto livro Cocktails, de poemas curtos, fracassa nas composições, justamente por estar abandonando a poesia e por cometer “poemas-piada”. Hoje em dia, diante do conhecimento de cummings, poesia concreta, haikai, koan, graffite, poesia práxis, poema processo, poemas digitais e minimalismo, a fatura poética de OA se mostra riquíssima e prenunciadora, superinformada, não tendo nada da irresponsabilidade e.superficialidade que nela viam seus detratores e críticos de primeira hora (sem instrumental teórico nem interesse de entendê-la, e que no entanto criaram uma tradição de leitura). Em “O bonde, a carroça e o poeta modernista”, do livro Que horas são?, Roberto Schwarz mostra a profundidade de um desses mínimos poemas de Oswald.
[86] Há uma outra montagem possível dos capítulos de Proteu: “vampiro e antropófago” sendo o capítulo inicial, que propõe os três vértices, “cebola” nos fala da antropofagia estética, “amor amazônico” trata da antropofagia política e “máscaras” é sobre a antropofagia filosófica ou melhor ontológica.
[87] ANDRADE, Oswald. Os Dentes do Dragão, pp. 226-227. Oswald conhecia filosofia muito bem e isso se pode observar neste trecho, assim como em sua tese filosófica A Crise da Filosofia Messiânica, com a qual concorreu a uma cadeira de professor de filosofia na USP, não tendo obtido o cargo por supostamente não ter preparo técnico. Isso é um absurdo. Oswald além de ser um grande conhecedor de filosofia foi o único brasileiro em seu tempo a produzir um pensamento original, que retomava o pensamento de Espinosa e Nietzsche e antecipava algumas colocações de Pierre Clastres e Gilles Deleuze e Félix Guattari.
[88] Esta expressão tem um duplo sentido, além do nazismo de Hitler e da Alemanha da segunda guerra mundial, há um nazismo espraiado por todas as práticas políticas dentro do estado, o capitalismo e a “democracia” liberal sob a batuta norte-americana são propriamente nazismo, o estado é nazista; a outra leitura é complemento desta, e diz que a ideia de universal, que nasce em Aristóteles e vem até os dias de hoje via Hegel e Habermas, formalizando a epistemologia, a estética e a política estatais, é sempre e necessariamente nazista; isto pode ser dito assim, o universal é nazista.
[89] DERRIDA, Jacques. Gramatologia.
[90] Fundamento estatal da disciplina e da correção de que nos fala Michel FOUCAULT em Vigiar e Punir.
Fausto WOLFF comenta na revista Bundas (de certa forma a continuação de O Pasquim, com o qual JM brigou, em sua fase áurea, nos anos 70, mais especificamente, com Millôr Fernandes e Sérgio Cabral, que JM considerou paternalistas e retrógrados) que o pesadelo real atual é bem pior do que os imaginados por George ORWELL em 1984 e Aldous HUXLEY em Brave New World, pois nos romances ainda havia a possibilidade de revolta, havia um fora do sistema.
Hoje, com rede de informação, câmaras que filmam o cidadão em todos os lugares (e a inscrição irônico-fascista: “Sorria, você está sendo filmado.” ou programas tipo Big Brother em todos dos países) e todos hipnotizados por telas, prisioneiros de condomínios, academias (num sentido ainda pior do que o platônico, e com o mesmo significado, só que burro) e shoppings, ainda há e sempre haverá a possibilidade da linha de fuga, do escape do nazismo, do enfrentamento do status quo insuportável, como nos mostram por exemplo Oswald de Andrade, Jorge Mautner, Fausto Wolff etc.
[91] Oswald se refere à segunda guerra mundial; note-se como ele já antevia o estado de coisas posterior, ou como captava o sentido menos óbvio do que estava acontecendo em seu tempo.
[92] Entendo que tal afirmação tem sentido relativo, ao final do capitalismo (que parece bem próximo), um novo modo de produção terá que aparecer, e este, segundo Oswald, será o socialismo; depois outros surgirão, nem o socialismo será eterno. Mautner fala numa espécie de síntese do melhor do socialismo com o melhor do capitalismo.
[93] ANDRADE, Oswald. Os Dentes do Dragão, p. 214.
[94] MAUTNER, Jorge. “Yeshua Ben Joseph”, in Árvore da Vida.
[95] Fragmentos de Sabonete, p. 21.
[96] ANDRADE, Oswald. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias, p. 13. Podemos observar que Oswald desde a época do Manifesto Antropófago já tinha bem claras as ideias fundamentais que iria desenvolver posteriormente em sua tese filosófica A Crise da Filosofia Messiânica.
[97] MAUTNER, Jorge. Kaos, p. 303.
[98] Há uma evidente ironia nesta definição de verso, apesar de ela ter uma abrangência pragmática, visto que hoje e sempre todas as características extra-tipográficas que se encontram na poesia também podem se encontrar na prosa, o verso como tendo rima e/ou métrica fixa não é mais obrigatório, e já não o era na Antiguidade, muitas vezes a poesia era cantada e acompanhada com instrumento musical (e esta parece a sua característica mais exclusiva), porém hoje não o é, e essa seria a origem da lírica, sendo que encontramos um número incontável de textos líricos em prosa, ou que apresentam características mistas de gêneros e de prosa/poesia.
[99] Aceitamos em parte os textos de Jorge como confessionais, mesmo sabendo que, como todos os grandes memorialistas da história da literatura, Santo Agostinho, Marcel Proust, Henry Miller, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e outros, não existe o menor compromisso de que suas memórias sejam in toto verídicas ou pelo menos verossímeis, e mesmo é assumido que o surrealismo e outras formas de invenção fantástica são ali aceitas, e muito bem aceitas, como as únicas que podem mostrar o que foi a “realidade” vivida pelo autor (ou por seu personagem, que pode ser um duplo seu ou vice-versa).
[100] Esta prosaica observação, a falta de papel carbono para fazer as cópias completas dos panfletos de seu movimento, é índice de um problema que todo o artista enfrenta, e da maior seriedade; o dinheiro que compra o material pertence aos burgueses que de certa forma abominam a arte (apesar de fruí-la; porém para se tornarem grandes capitalistas eles devem se dessensibilizar) e de forma absoluta e peremptória não toleram o pensamento (servindo então de crivo da leviandade da arte). O artista precisa de dinheiro para poder fazer arte, mas o dinheiro está nas mãos dos que sabotam a arte ou a querem alvar, inócua, debilóide. Lembremos que em Cinema II Deleuze revela a equação: em cinema D = T, dinheiro é tempo. Em arte o dinheiro é tempo e material, publicação e divulgação (e o que isso tem a ver com a arte?).  Mautner ao cantar os versos de “Relâmpago Dourado” em seus shows: “Quando o relâmpago bateu aqui/Na minha calça Lee”, acrescenta com seriedade: “Infelizmente não é merchandising!”
[101] MAUTNER, Jorge. Kaos, p. 303.
[102] _______. Vigarista Jorge, p. 36. Na mesma entrevista à Revista Bizz citada na nota 13, Mautner afirma que teve a sua “iluminação” e conseguiu integrar os seus opostos irreconciliáveis, o seu Deus e o seu demônio, depois de ler Vieira, que, como ele, não conseguia escrever, até que um dia teve a iluminação.
Um bom exemplo de imagem barroca pós-contemporânea é a letra de “Anjo Infernal”, um “anJo que tenta e que não guarda”, como no soneto de Gregório de Matos Guerra.
[103] Idemibidem, pp. 35-37.
[104] MAUTNER, Jorge.  Vigarista Jorge, pp. 39-40.
[105] “Dona Culpa ficou solteira” de Jorge Ben Jor.
[106] E alguma vez nós fomos brasileiros? O primeiro título que pensei para este trabalho foi: “Vocês nunca foram brasileiros”.
[107] MAUTNER, Jorge. Fragmentos de Sabonete, pp. 23-25.
[108] Apud NIETZSCHE.
[109] DELEUZE,Gilles e GUATTARI, Félix. “Tratado de Nomadologia” in Mil Platôs, pp. 11 e ss, e passim.
[110] É o corpo expressivo, intenso, energético, que se diferencia do corpo orgânico e funcional. V. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo.
[111] MILLER, Henry. Trópico de Capricórnio, p. 11.
[112] ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar, p. 13.
[113] V. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia e Diferença e Repetição.
[114] Cláudio ULPIANO foi o mestre que me ensinou filosofia. Em uma aula ele nos disse: “O afeto é a nega-entropia”. Neste sentido podemos entender o verso de “Bumba-meu-boi em Beijing” de Mautner: “Jovem como Peter Pan” in Pedra Bruta.
[115] MAUTNER, Jorge. “Orquídea Negra” in RAMALHO, Zé. Orquídea Negra, lp. Em sua interpretação Zé Ramalho ainda exclama entre as quadras: “Chama!”, como um feiticeiro conclamando as salamandras, o que é ilustrado pelas fotos da capa.
[116] Com a engenharia genética e os transgênicos não se pode dizer assim sem mais nem menos que determinado tipo de ser vivo “não existe”, pois todos os centauros e minotauros se tornaram possíveis.
[117] Orchos em grego é testículo, e tal nome foi dado a essas flores pelo formato de testítjlos de suas raízes, razão pela qual, ao longo da História, têm-lhe sido atribuídos poderes afrodisíacos.
[118] Na verdade as orquídeas não são parasitas, o equívoco se deve ao fato de que algumas espécies são epífitas, isto é, usam os galhos de outra planta como suporte para crescer, sem no entanto parasitá-la; porém, a crença popular justifica a ilação.
[119] ROSSET, Clément. A Anti-natureza e Lógica do Pior.
[120] GUATTARI, Félix. Caosmose.
[121] Segundo a expressão de Caetano no texto da capa de Para Iluminar a Cidade, “clichê com originalidade de marciano”. Já conforme os concretistas Augusto e Haroldo de CAMPOS e Décio PIGNATARI, que ao invés de ouvir o Mautner preferiram ouvir o eco (não se interessaram pelo nosso poeta, pois havia uma palestra do filósofo e escritor italiano Umberto ECO, na mesma festa paulistana [v. Panfletos da Nova Era pp29-30: “Só Rogério /Duarte/ respondeu: ‘Eu fico aqui com o som, depois vem o eco’”]; eles podem não ter entendido o trabalho de Jorge Mautner, diferentemente de Arnaldo ANTUNES, por exemplo, que foi “apadrinhado” por Haroldo de Campos, devido ao “titã” demonstrar em seus textos características herdadas do concretismo; já Mautner parece passar incólume a estes experimentalismos, se bem que os tenha, de outro jaez [ele é amigo dos Campos e brinca que fez o mais famoso poema concreto, o “Maracatu Atômico”]; no entanto não há aqui crítica ao concretismo e aos seus criadores, que me parecem ser fundamentais para a inteligência brasileira; penso que seu “estilo” ou suas propostas podem conviver muito bem com outras, que podem ser complementares), a literatura se preza pelo aumento da “temperatura informacional do texto”; e é isso que acontece com o estranhamento e outros efeitos de nova fatura em Jorge Mautner.
[122] Fragmento de entrevista que Sergei (Sérgio Augusto Bustamente) concedeu no Programa do Jô, ao comediante, escritor e entrevistador Jô Soares, em 11/10/2000: Sergei: 67. Jô: 67 o quê? Você está com 67 anos?. Sergei: To. Que que eu vou fazer, rapaziada? /.../ Eu mudei tudo. Eu não sou homossexual, eu não sou bissexual, eu não sou trans-sexual, eu não sou porra nenhuma. Agora eu sou pan-sexual. Jô: Qual é a diferença do pan-sexual? Sergei: É uma liberação total do sexo.
[123] Tal “influência”, ou melhor, contaminação, não precisa ser manifesta nem óbvia, e nem mesmo consciente ou proposital por parte de nosso poeta; mesmo que ele não tivesse lido os textos de Oswald de Andrade, ou os tivesse lido pouco, a contaminação diz respeito às linhas de força dentro da arte e do pensamento brasileiro, linhas que são consciência mas também são pré-individuais, coletivas e plurais.
[124] “Le scarabée d’or” - Imagem do Sol e do Ouro, significa transformação, ressurreição”.ENAJ. Arcanum. “Bibliologia”. 1974 (Imprimerie Jeanne d’Arc, Le-Puy-em-Velay), p. 51; apud HUTIN, Serge. A Tradição Alquímica, p. 158,  nota 20.

[125] Porém, v. MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era,  p. 47:
O otimismo realçado contra 90 % de opiniões pessimistas de certos setores da “intelligentzia” ou “burrítzia” (como dizia Oswald) nacional, que por certa tendência ao pesadelo dramático de origem ibérica-fatalista gostam de enxergar a desgraça no horizonte mais forte do que o canto do samba e do sabiá.
[126] Preservando-se as grandes exceções, o Brasil tem muitos gênios em todas as artes, porém tem sido dominado pela idiotia teleguiada, que nada tem a ver com a genuína expressão da cultura popular, isto é, o povo não gosta de programas de auditório nazistas, músicas debilóides e novelas vazias e niilistas, ele é forçado a gostar dessas coisas, da mesma maneira que alguém com sede no deserto bebe qualquer líquido que se lhe dê.
[127] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs, vol. 1, pp. 11-37.
[128] MAUTNER, Jorge. “Iluminação”, in lp Antimaldito.
[129] MAUTNER, Jorge. “Iluminação”.
[130] V. nota 151.
[131] Meio-dia que é a hora do despertar do espírito em Nietzsche.
[132] GIL, Gilberto Gil. “O Sonho Acabou” e MAUTNER, Jorge. “O Relógio Quebrou” in VELOSO, Caetano, GIL, Gilberto e COSTA, Gal. Temporada de Verão. Mautner também grava “O Relógio Quebrou”  no lp Jorge Mautner.
[133] MAUTNER, Jorge e VELOSO, Caetano. “From Faraway” in Para Iluminar a Cidade.
[134] A música africana não usava exatamente as mesmas notas que a europeia, havia diferenças de comas (intervalos musicais mínimos, entre dois tons ou notas há nove comas, se o itnervalo for feito com menos comas haverá outra nota não ocidental), que foram incorporadas aos acordes pelos músicos de jazz, e que são imitadas imperfeitamente com acordes de sétima (notas não originalmente pertencentes ao acorde). O músico negro norte americano mantém as blue notes em certos instrumentos preparados, em outros criados dentro de sua tradição como o saxofone, e no canto, como o de Billie Holliday, e até mesmo no canto negro do Brasil, em Clementina de Jesus e Jorge Mautner (o cantor de funk aqui e lá centuplica a tradição).
[135] MAUTNER, Jorge. Fundamentos do Kaos, p. 48.
[136] MAUTNER, Jorge e GIL, Gilberto. “O Rouxinol”, in O Ser da Tempestade (interpretação de Vânia Bastos).
[137] Designação que Maiakovski dava a Khliebnikov, que fazia uma poesia experimental e difícil, não conhecida do grande público, mas que alimentava e acionava os poetas que o liam, e iriam eles depois ser lidos pelo público.
[138] ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófagoin Do Pau-brasil à Antropofagia e às Utopias, pp. 13-19.
[139] _______. Manifesto da Poesia Pau-brasilibidem, p. 6.
[140] FERNANDES, Fábio. “Sonho Realizado”, in Isaac Asimov Magazine, n° 9, 1991, p. 17.
[141] MAUTNER, Jorge. “Relâmpago Dourado”, in Antimaldito.
[142] Não datada; só saiu o primeiro número. Nota-se aí também a influência deste filósofo maior que nós tivemos, que em seus grupos de estudos ensinou a mais potente filosofia para todos os tipos de profissionais, artistas, cientistas e filósofos: Cláudio Ulpiano.
[143] Revista Caos, n° 1, /s.d./, pp. 16-17. Em 1992 foi editada uma revista pelo Centro Acadêmico de Filosofia do IFCS da UFRJ, como o título de Kaos, sem nenhuma menção a Jorge Mautner. Kaos, n° 0, abril de 1992. Editores: Danilo Zimbres et alii.
Quanto à citada Revista Caos, é claro que, além de ser nítida a postura antropofágica de seu grupo, e de sua ligação manifesta com a filosofia da expressão (ou da diferença), não só o seu título que demonstra ligação (mesmo se involuntária) com Mautner, mas principalmente a disposição de fundir gêneros em novas sínteses, que produzam novas sensibilidades estéticas para gerar novas formas de ver e de viver (“fotodramático” “visualização poética” etc.). O que pode parecer modismo geral e que na verdade é raramente pensado e realizado com seriedade.
[144] É surpreendente a inquietação a universalidade dos interesses de Mautner, ele experimentou tudo, esteve em todas. JM investe sobre múltiplos sentidos, “Ta-ta-ta” pode ser uma rajada de metralhadoras, o batuque do samba, o balbucio de alguém, o dadá do bebê, uma resposa afirmativa (tá bom), ou a resposta do mestre zen.
[145] É impossível classificar rigidamente estes textos, eu os vejo principalmente como poemas, Mautner mesmo os classifica como ensaios.
[146] V. Kaos, pp. 150-151.
[147] V. ENGELS, Friedrich. A Origem da Propriedade Privada, da Família e do Estado. A origem da tese do  matriarcado, tão importante para a formulação dos pensamentos de Nietzsche, Marx e Engels, está na obra de BACHOFEN, Die MuterrichO Matriarcado, lançada em 1861.
[148] MAUTNER, Jorge. “Iluminação”, in Antimaldito. A citação “guerra e paz” nos traz também aquela que segundo o próprio autor é a sua grande influência literária, os romancistas russos, aqui todos citados metonimicamente na pessoa de Leo Tolstoi.
[149] COLLI, Giorgio. O Nascimento da Filosofia, pp. 14-17.
[150] MAUTNER, Jorge. “Super-mulher” in lp Para Iluminar a Cidade.
[151] ANDRADE, Oswald de. A Crise da Filosofia Messiânicain Do Pau-brasil à Antropofagia e às Utopias, p. 79.
[152] V. MAUTNER, Jorge. Narciso em Tarde Cinza, p. 30.
[153]Panfletos da Nova Era, vol. 1, pp. 77-78. E à página 32 da mesma obra: “Temor perante uma Razão Linear”.
[154] VELOSO, Caetano. “Língua”, lp Velo.
[155] MAUTNER, Jorge. “Estrela da Noite” in lp Para Iluminar a Cidade.
[156] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Salto no Escuro”, in lp Jorge Mautner.
[157] ANDRADE, Oswald de. “Meu Testamento” in Do Pau-brasil à Antropofagia e às Utopias, p. 29.

[158] Revista Bizz, ed. 45, ano 5, n° 4, abril de 89, p. 43.
[159] MAUTNER, Jorge. Entrevista para a revista Bizz ed. 43, p. 49.
[160] Outra prova da afinidade do pensamento de Jorge Mautner com o de Oswald de Andrade é essa relação privilegiada que os dois veem entre poética e política. Cf. o livro de Oswald de ANDRADE, Estética e Política, organizado por Maria Eugenia Boaventura em 1992; v. tb. o livro O Poético e o Político de Gilberto GIL e Antonio RISÉRIO, de 1988.

[161] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, pp. 51-52.
v. TB. Frank CLOSE intitulou de Cebola Cósmica, sobre a teoria quântica e a estrutura da matéria.
[162] MAUTNER, Jorge. “Não, não, não”, in O Ser da Tempestade (reprodução remasterizada da faixa do compacto simples de 1966, “Radioatividade/Não, não, não”).
[163] Mautner considera que houve três movimentos fundamentais para a sedimentação da cultura brasileira posterior na MPB: a Bossa Nova, a Jovem Guarda e o Tropicalismo, v.  Panfletos da Nova Era, pp. 32-34.
[164] V. ANDRADE, Mário. O Banquete.
[165] Festa de Ugo GIORGETTI (1989). Elenco: Antonio Abujamra, Adriano Stuart, Jorge Mautner, Iara Jamra, Otávio Augusto, Ney Latorraca, José Lewgoy, Lao Dahreinzelin e Patrícia Pilar.
Além de dirigir O Demiurgo em Londres e escrever o argumento do filme Jardim de Guerra de Neville de ALMEIDA, Mautner também atuou em outros filmes, como em O Olho Mágico do Amor (Ou: O Buraco do Amor) de José Antonio GARCIA e Ícaro MARTINS (1981). Elenco: Carla Camuratti, Tânia Alves, Sérgio Mamberti, Cida Moreira, Jorge Mautner, Nelson Jacobina e outros. Os dois músicos são uma das muitas visitas sexuais que uma prostituta (Tânia Alves) recebe sob o olhar voyeur da adolescente (Carla Camuratti) que espia tudo de um buraco na parede do escritório onde trabalha. Mautner e Jacobina vão juntos para a cama da prostituta, com quem cantam e tocam “Lenda do Pégaso”.
[166] MAUTNER, Jorge.  “Nababo ê” in Jorge Mautner.
[167] MAUTNER, Jorge e MOREIRA, Moraes. “Tá na Cara”, in lp Bomba de Estrelas.
[168] “Pérola Negra” é o nome do primeiro lp de Luiz MELODIA. A citação inicial de Nietzsche que JM faz na parte falada também pode ser entendida assim: “Somente quem tiver o KAOS dentro de si poderá dar luz à grande estrela bailarina”, pelo forma gozosa como JM pronuncia a palavra.
[169] MAUTNER, Jorge. “Negros Blues” in lp Bomba de Estrelas. Esta canção foi motivada pelo suposto “ataque” de Belchior contra Caetano Veloso em “Apenas um rapaz latina americano”, onde tem os versos “em que um antigo compositor baiano meu dizia/Tudo é divino/Tudo é maravilhoso/.../Nada é divino/Nada/Nada é secreto/Nada/Nada é misterioso”. Mas o “Negros Blues” ganha um sentido muito mais amplo e supera de muita a questão menor de “defender” Caetano.
[170] ANDRADE, Oswald de. Ponta de Lança, p. 62.
[171] Mautner escreve à página 40 de Panfletos da Nova Era:
A boneca, o machão, a mulher-objeto, não existem. São caricaturas da imaginação fascista, que divide o mundo em castas, classes, raças, hierarquias, superiores, inferiores, etc. Definições rígidas para definir o ser, que é esse mistério, e que somos nós, suspensos por um fio invisível entre o horror e a maravilha, a morte e a vida, e que através dos séculos os gregos sabiam definir o ser como inquietude trágica e reveladora, pois, eternamente consultando novos enigmas dos Oráculos de Delfos? O ser é todas as possibilidades. Isso é abertura, anistia, o resto é eufemizar a permanência do terror. V. MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Cidadão-Cidadã” in Bomba de Estrelas.
[172] ROSSET, Clément, em Lógica do pior diz que se há tarefa da filosofia é curar os homens de sua loucura.
[173] Na contracapa de Panfletos da Nova Era vem escrito:
      JORGE MAUTNER, CANTO CONTRA AS PATRULHAS

Um dos artistas mais visados pelas chamadas “patrulhas ideológicas”, Jorge Mautner forma num time cheio de craques como Caetano, Gil, Glauber Rocha, Rogério Duarte e José Celso Martinez Corrêa. Um time que busca seu espaço à margem da cultura oficial, centralizada, dominadora.
Apontado pelo crítico Luis Carlos Maciel como o mais contemporâneo de nossos artistas, Mautner desenvolve um trabalho onde é bastante perceptível a contínua mutação, em busca da descentralização da liberdade de criação.
[174] MAUTNER, Jorge e MOREIRA, Moraes. “Lenda do Pégaso” in O Ser da Tempestade.
[175] Que também nos lembra da canção “Força Bruta” de Jorge Ben pelo título e pela inspiração alquímica. Novamente a alquimia como simbologia mautneriana, desta vez com a presença da Pedra, que é o signo máximo dos alquimistas. É notável a relação consciente-inconsciente entre os dois Jorges, que, no entanto, ainda não fizeram nenhuma parceria, que seria a mais óbvia, a mais esperada: Ben Jor liga o mundo negro à tradição cultural europeia, Mautner faz a ponte inversa. Parecem ser tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes, matéria e antimáteria, Jorge Mautner é elétrico e eletrônico, Jorge Ben Jor é magnético.
[176] MAUTNER, Jorge. “Pedra Bruta” in Pedra Bruta.
[177] É interessante a inversão de sentido da palavra, mostrando o quanto Mautner sente que o seu espaço é na poética política (mais do que na política poética).
[178] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 54.
[179] É importante lembrar que na década de 70 Raul Seixas junto com Paulo Coelho fundaram a Sociedade Alternativa, que tinha até uma sede-comunidade-rural, o que só foi brecado pela repressão da ditadura militar.
É nítida aí a influência das comunidades hippies, mas até que ponto as ideias e a atuação de Mautner com seu Kaos com K não influenciaram os dois poetas do rock?
[180] V. capítulo 7, “Fontes”, Entrevistas.
[181] MAUTNER, Jorge. “Louca Paixão” in Estilhaços de Paixão.
[182] Cf. DELEUZE, Gilles, A Lógica do Sentido e Diferença e Repetição.
[183] MAUTNER, Jorge. “Sirene da Ambulância”  in Estilhaços de Paixão.
[184] Como ele gosta de chamar “Chove chuva/Chove sem parar” de Jorge Ben, um de seus maiores sucessos de início de carreira, minimalista e ideogrâmica também, e como em Jorge Mautner com o sentimento constante da chuva.
[185] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “A Vingança é a Origem das Leis”, ibidem.

[186] MAUTNER, Jorge. “Vivendo sem Grilo”,  ibidem.
[187] MAUTNER, Jorge. “Olhos de Raposa”, ibidem.
“Como a vida humana é realmente absurda! Tudo depende de uma escolha baseada no abismo. O olho do abismo atrai porque ele é a saída para uma outra dimensão. Freud tinha medo de analisar Nietzsche porque ele havia olhado demais para o abismo. O mesmo se pode dizer de Dostoievski, mas ele segurava a mão de Jesus Cristo.”
-------. Fragmentos de Sabonete, p. 26.
[188] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “O Boi” in cd Estilhaços de Paixão.
[189] Muito antes da publicação no final da década de 80 do livro Três Ecologias de Félix Guattari, Mautner em Panfletos da Nova Era (escrito quase todo na segunda metade da década de 70) já demonstra a mesma preocupação do filósofo francês (e dos Partidos Verdes e do Green Peace) com a interdependência dos três níveis ecológicos: meio ambiente, meio social e meio psíquico.
[190] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 107
[191] MAUTNER, Jorge. Fragmentos de Sabonete, p. 26.
[192] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Samba da Gillete”, ibidem.
[193] Esta questão da impossível convivência retorna com força em Miséria dourada, especialmente no último conto, e no episódio da lista de vinte e quatro nomes, que faz um curto-circuito em várias coisas, principalmente na moral e na convenção da ficção e da realidade, pois neste ponto do livro ele “vaza” e as duas se mostram brilhante e insuportavelmente indiscerníveis.
[194] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Alcaçuz” ibidem.
[195] -------- e --------. “Canto do Espanto” ibidem.
[196] MAUTNER, Jorge. “Viajante” in Estilhaços de Paixão.
[197] Mas os versos: “Maldita seja essa coisa assassina/Que se vende em quase toda esquina/E que passa por crença, ideologia, cultura, esporte/E, no entanto, é só doença/Monotonia da loucura e morte” que se aparentemente são sobre a droga podem estar falando do senso comum ou até mesmo do sistema como um todo.
[198] MAUTNER, Jorge e VELOSO, Caetano. “Graça Divina”, in Eu Não Peço Desculpa
[199] MAUTNER, Jorge. “Urge Dracon”, ibidem.
[200] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Manjar de Reis”, ibidem.
[201] MAUTNER, Jorge. Sexo do Crepúsculo, pp. 139-140.
[202] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p 55. O símbolo da nova antropofagia eletrônica é o “maracatu atômico”.
[203] Idemibidem, pp. 55-56.
[204] MAUTNER, Jorge. Deus da chuva e da morte, p. 52.
[205] MAUTNER, Jorge. Miséria Dourada, in Mitologia do Kaos, v II, p. 493.
[206] Faros em grego quer dizer “teia, vela de navio, coberta de cama, manto, véu”, (v. PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Protuguês e Português-Grego, p. 608.)
[207] Informações colhidas na coleção Mitologia, São Paulo, Abril Cultural, /s d./. Vol I p. 230, vol II p. 329, vol III p. 628. Dicionário de Mitologia Greco-Romana. São Paulo, Abril Cultural, /s. d./, p.  159.
[208] Utilizei também a simbologia alquímica para tentar dar conta do “problema” que uma obra como a de Mautner é para a crítica literária e musical, e Proteu é o símbolo alquímico da matéria prima.
[209] MAUTNER, Jorge. “Quero Ser Locomotiva” in Para Iluminar a Cidade.
[210] DELEUZE,Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs, vol. 4, pp. 11 e ss.
[211] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 17
[212] Panfletos da Nova Era, pp. 31-32.
[213] Este verso diz tudo, e retorna a identidade de Parmênides e Heráclito, o mestre de nosso poeta, a eternidade da diferença ou o “ser da tempestade”; na expressão de Deleuze: “o ser da diferença” (Cf. Diferença e Repetição). MAUTNER, Jorge. “Rainha do Egito” in Mil e Uma Noites de Bagdá.
[214] São vários ritmos inventados, tanto por Mautner quanto por Jacobina.
[215] Ou que outro nome lhe deem os geopolíticos, os países “barrados no baile”.
[216] A edição original de Panfletos da Nova Era omite o nome destes autores (Aloísio COSTA e Enéas BRITTES, “Exaltação à Mangueira”), bem como o de Paulo VANZOLINE, logo depois.
[217] Outro paralelismo: Henry Miller escreveu sua Rozy CrucifitionA Crucificação EncarnadaSexusNexus e Plexus sobre uma paixão total que mudou sua vida e na qual ele se sentia crucificado.
[218] Também aqui não saiu o nome do autor, que é o Paulo VANZOLINE (“Volta por Cima”). A citação feita foi: “Sacode, levanta a poeira e dá a volta por cima”.
[219] No texto da primeira edição está Jimi Hendrix.
[220] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 111.
[221] Título de um conto de Guimarães Rosa.
[222] Expressão do cineasta (também artista plástico, poeta e escritor) Glauber Rocha
[223] GIL, Gilberto. “Mon Thiers Monde” in O Eterno Deus Mu Dança. É intrigante que o nome do deus grego Pan retorne no nome do deus tupi Tupan (que em português costuma-se grafar Tupã).
[224] Na verdade Mu é o nome da Lemúria, mítico continente desaparecido do Oceano Pacífico.
[225] _______. “De Bob Dylan a Bob Marley”, ibidem.
É preciso porém tomar cuidado com este lugar-comum tão difundido de que Michael Jackson seria a face auto-racista do pensamento negro em sua mais exemplar forma, pois ele é um criador muito singular e suas metamorfoses físicas, de cor, de corpo, de cara, são como que elementos de sua dança e de sua música, são atitudes pop, e criticá-lo pode esconder uma espécie de patrulha ideológica racial tão ruim quanto. E como falar de auto-racismo diante de uma obra prima de conscientização racial alegre que é o vídeo/canção “Black or White”?
[226] MAUTNER, Jorge.  Fundamentos do Kaos, p. 49.
[227] “Nunca vi pensamentos mais positivos que os meus. Como chamar de maldito um cara que diz que a fauna flora grita de amor, faz esportes, toca violino e dança frevo?”, declara e pergunta Mautner em entrevista a Joaquim Ferreira da SILVA, in Jornal de Música, Rio de Janeiro, Maracatu, /s.d./, in Rock: A História e a Glória, p. 18.
[228] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Tataraneto do Inseto” in Antimaldito.
[229] Sobre o canto trágico em Panfletos da Nova Era,  p. 38:
Sérgio Cabral apresenta o LP de Nelson Cavaquinho “desculpando-o” em sua apresentação na contracapa do dito LP perante o público por causa de sua “voz rouca”. Ora, mais uma vez colonizado e reacionário por que não explicar ousadamente que esta voz rouca é marca registrada dos blues, dos grandes traumas vencidos pela força da vida destes ex-escravos cantando a alegria? O contrário justamente da “pureza abstrata falsa e cristalina”daquele bel-canto de toda uma Europa imperial? Sérgio Cabral ignora isso. E por isso deixa de informar.
[230] V. p. ex. Do Romance ao Galope Nordestino, lp do Quinteto Armorial.
[231] BEZERRA, Miguel. “Toada do Brasil Caboclo” in A Arte da Cantoria, vol 4, Cangaço, vários.
[232] Exemplo desta interpretação em PROENÇA, Ivan Cavancanti. A Ideologia do Cordel. O quanto isto é triste se recordamos que o crítico é nordestino e entusiasta da arte do nordeste e está tentando preservar e difundir o conhecimento sobre a poesia popular nordestina.
V. tb. RIBEIRO, Maria Aparecida.  “As várias faces do cordel” in Revista Delfos n° 15/16, pp. 41-51, onde se chega à falta de perspectiva de catalogar personagens de um romance de cordel como “planas”, e outros absurdos devidos à deformação acadêmica da crítica.
[233] VILANOVA, Ivanildo e FERREIRA, Severino. “Mourão respondido” in A Arte da Cantoria.
[234] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 32.
[235] CAMPOS, Augusto de. “Um dia, um dado, um dedo” in Verso, Reverso, Controverso, p. 257.
[236] FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, pp. 5-6.
[237] MAUTNER, Jorge. “Iluminação” in Antimaldito.
[238] MAUTNER, Jorge. Poesias de Amor e de Morte, pp. 30-32.
[239] E reeditado em 1995, revisto e ampliado, pela editora Relume Dumará. À página 11 da primeira edição de 1976, o “profeta” ou futurólogo Mautner prevê a internet.
[240] MAUTNER, Jorge. Fragmentos de Sabonete, p. 22.
[241] MAUTNER, Jorge.  Fragmentos de Sabonete, pp.  12-13.
[242] Que disse que “fazer dinheiro é arte”. Andy Wahroll foi uma espécie de Leonardo da Vinci que não pintou a Gioconda, um gênio do mundo de consumo, mostrando que de tudo e a partir de tudo se pode - pensar - fazer arte; seu atelier, como os dos mestres renascentistas, tinha vários aprendizes trabalhando, e se chamava Factory, Fábrica (v. pp. 39-41) de Fundamentos do Kaos.
[243] Mautner retoma esta ideia com outras implicações e complicações a partir do futuro próximo surgimento dos clones humanos em Floresta Verde-Esmeralda.
[244] Jorge Mautner e Gilberto Gil, in GIL, Gilberto. Todas as Letras, p. 122.”Three mushrooms”, “Crazy pop rock” e “Babilon” foram feitas em parceria com Gil, em Londres, e gravadas no lp inglês deste, são de 1971.
A primeira canção tem letra de Mautner e Gil e música do Gil, as outras duas têm letra de Mautner e melodia de Gil.
[245] Filosofia da diferença, melhor dita filosofia da expressão. Este termo remete ao terceiro elemento da fusão de DELEUZE, Baruch ESPINOSA, que também poderia ser chamado para pensar os textos de MAUTNER. Aqui porém nos detivemos mais no vértice bergsoniano, por motivos que a leitura a seguir indicará; todavia quando Mautner se posiciona na contemporaneidade filosófica sem dúvida ele também está em ligação com as questões do “Cristo da Filosofia” (que é Espinosa, e a Ética é a sua Bíblia) .
[246] BERGSON, Henri. Matéria e Memória, p. 133.
[247] -------. A Evolução Criadora.
[248] -------. As Duas Fontes da Moral e da Religião.
[249] Ao núcleo da cebola, segundo Jorge Mautner.
[250] DELEUZE,  Gilles e GUATTARI, Félix. O Que é a Filsofia?
[251] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. ‘Maracatu Atômico” in Jorge Mautner.
[252] Raul SEIXAS também percebeu que o xote, o baião e outros ritmos do nordeste têm o mesmo “pique” do rock e do pop. Charles A. PERRONE faz importantes observações sobre a fusão de ritmos brasileiros e pop, em Jackson do PANDEIRO, Jorge MAUTNER e Chico SCIENCE, em “Do bebop e o Kaos ao Chãos e o triphop: dois fios ecumênicos no escopo semimilenar do tropicalismo”  (in Linha de Pesquisa, Revista de Letras da UVA, ano 1, número 1, outuhro de 2000, pp. 155-170). Charles Perrone faz também um estudo sobre o trabalho de JM em seu livro Letras e Letras da MPB.
[253] Como já observei esta terminologia mudou rápido, entre a dissertação original datilografada na máquina Remington mecânica e a nova versão revista e ampliada digitada no computador com processador Pentium no programa Word do Office 2000. Aqui foi necessário manter o termo ultrapassado por causa do trocadilho; terceiro mundo de qualquer forma no texto não significava países subdesenvolvidos, e sim uma nova concepção de democracia racial e vivência enriquecida de cultura branca com cultura negra e com cultura indígena e o que mais vier.
[254] DELEUZE, Gilles. Foucault, pp. 141-142.
[255] NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra, p. 85.
[256] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Rock da Tv” in Jorge Mautner.
[257] WATERS, Roger. “Radio Waves” in Radio K.A.O.S.
      HAGEN, Nina. “Universal Radio” in Nina Hagen in Ekstasy.
      HARRISON, George. “Devil’s Radio” in Cloud Nine.
[258] BERGSON, Henri. Introdução à Metafísica, Pensadores, pp. 17-45.
[259] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Herói das Estrelas” in lp Jorge Mautner.
[260] CASTANEDA, Carlos. Erva do Diabo. P. 15.
[261] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 28-29.
[262] MAUTNER, Jorge. “Homenagem a Oxalá” in Mil e Uma Noites de Bagdá. Esta música é um ponto de umbanda ou candomblé.
[263] ­­­­_______. Fragmentos de Sabonete e Outros Fragmentos, 2 ed, Quinto Fragmento, p. 115.
[264] Idemibidem, pp. 116-117.
[265] Ala Jorge Mautner, publicação da Funarte - São Paulo, p. 11.
[266] MAUTNER, Jorge. “Os Marcianos” in Pedra Bruta.
[267]  “Nietzsche o Profeta total”, in Panfletos da Nova Era, pp. 140-142.
[268] V. Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI, O que é a Filosofia,  “Do Caos ao Cérebro”.
[269] WISNIK, José Miguel. “O Dom da Ilusão” in GIL, Gilberto. Todas as Letras, p. 17.
[270] Fragmentos de Sabonete, pp. 39, 42-43 e 46-48.
[271] VELOSO, Caetano. “Língua” in Velô, Philips, 8240241, 1984.
[272] MAUTNER, Jorge, Outros 500, pp. 82-83.
[273] Afirmação feita por Mautner em sua conferência pronunciada na “Roda de Leitura” do Centro Cultural Banco do Brasil, em 6 de setembro de 2000.
[274] MAUTNER, Jorge. Kaos, pp. 135, 136.
[275] Idem, ibidem, p. 172.
[276] Zero Hora, 15 de outubro de 2004, Segundo Caderno, p.4
[277] MAUTNER, Jorge. “Todo Errado” in Eu Não Peço Desculpa.
[278] Foi justamente no disco Cinema Transcendental que Caetano Veloso (cineasta virtual também, e real também, ao dirigir Cinema Falado) vai fazer sua única gravação de canção de Jorge Mautner em disco seu: “O Vampiro”, que ele mesmo havia cantado no filme que Mautner dirigiu: O Demiurgo.
[279] Lembrando da “função K” que Deleuze e Guattari atribuem a Kafka em Por Uma Literatura Menor.
[280] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Ressurreições”, in Revirão.
[281] In Outros 500, p. 76.
[282] O Movimento da Figa-Brasil é uma máscara do Movimento do Kaos.
[283] Minha escrita: Kaósmicas e Amantes Ondas do Ser
[284] Refere-se à música “Louca Paixão”.
[285] Nelson Jacobina: violão, guitarra, programação de percussão eletrônica e voz; Ricardo Feijão: baixo, percussão eletrônica; Mário Jansen; teclados; Marcos Zamma: tchimbaua, bola, repique, pandeiro, congas, moringa, timbau, reco-reco, caixixi, tcheco, tamborim, zabumba, ganzá e triângulo; Rogério Lucas: Violão slide; Marcos Vianna: waha; Sílvio Silva: bateria, tamborim, surdo e chocalho; Rubens Jacobina: cavaquinho; Chico Azevedo: bongô, congas e block; Celso Sim: voz; Diana Dasha: voz; Jorge Mautner: voz e violino.
Arranjos: Nelso Jacobina, Ricardo Feijão e Mário Jansen.
Na faixa “Olhar Bestial” podemos ouvir o bandolim de Jorge Mautner, como já o tínhamos ouvido no lp Para Iluminar a Cidade inteiro e no “Samba dos Meses”. Já o seu violino ouvimos em todos os discos.
[286] Projeto gráfico: Noris Lima; Fotos: Fernando Laszlo; Coordenação: Sophie Denannoy e Liça Isak; Cenografia: Nanni Brisque; Produtora gráfica: Wilde Célia Melhem.
[287] Músicos que participaram do show no Teatro Opinião nos dias 27 e 30 de abril de 1972, que resultou no lp Para Iluminar a Cidade: Carneiro e Sérgio Amado, violões; Alexandre, baixo; Tide e Otoniel, percussão; Jorge Mautner, voz, bandolim e violino. Carneiro era o apelido de Nelson Jacobina na época.
[288] Por Mautner e Jacobina em Árvore da Vida. A gravação de Caetano é de 1979.